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Como a comida controla o cérebro

O que você come influencia diretamente o que você sente. Veja como a alimentação pode mexer com os seus neurotransmissores, alterar estruturas cerebrais, desregular o apetite – e até estimular ansiedade e depressão.

Texto Bruno Garattoni e Eduardo Szklarz | Ilustração Felipe Del Rio | Design Carlos Eduardo Hara

Qual foi a última coisa que você comeu? Uma maçã, um bife, um pedaço de pizza? O processo digestivo, seja qual for o alimento, é sempre o mesmo: o organismo quebra as moléculas e extrai a energia contida na comida. E o órgão que mais consome energia é o cérebro. Ele é responsável por 20% da taxa metabólica basal (calorias que o corpo gasta em repouso, simplesmente para sobreviver), e queima até 320 kcal por dia. O cérebro recebe a energia na forma de glicose, um açúcar que o sistema digestivo obtém dos carboidratos (e também pode, caso necessário, sintetizar a partir de proteínas e gorduras). Mas novos estudos têm demonstrado que a coisa não é tão simples assim. A comida tem o poder de aumentar ou reduzir os níveis de neurotransmissores, provocar alterações em tecidos cerebrais, estimular ansiedade e depressão ou influir no comportamento de maneiras mais insidiosas. Inclusive, até, controlando o que e quanto você vai comer.

Depois que você faz uma refeição, o intestino produz um hormônio chamado uroguanilina. Essa substância age, de forma ainda não plenamente compreendida, sobre os rins, o coração e o próprio sistema digestivo. Ele também está relacionado à saciedade: é um aviso para o cérebro de que o corpo recebeu calorias suficientes, e ele pode cortar o sinal de fome, para que você pare de comer. Isso foi demonstrado pela primeira vez em 2011, quando cientistas de duas universidades americanas criaram ratos de laboratório geneticamente modificados, incapazes de produzir uroguanilina (1). Isso eliminou o controle de apetite dos bichinhos, que comiam de forma insaciável e invariavelmente se tornavam obesos. Nos anos seguintes, pesquisas examinaram a ação da uroguanilina em humanos e constataram que ela desempenha um papel similar. Mas o mais interessante veio em 2016, quando pesquisadores das universidades Stanford e Thomas Jefferson, nos EUA, voltaram aos camundongos de laboratório para fazer um teste: o que acontece com a uroguanilina se você pegar ratos normais, que produzem esse hormônio, e deixar eles se esbaldarem de comida? 

Durante 14 semanas, os camundongos tiveram acesso irrestrito, 24 horas por dia, a uma dieta altamente calórica (2). Resultado: a superalimentação estressou as células do intestino, que pararam de produzir uroguanilina. E, sem esse hormônio, o cérebro não disparava os sinais de saciedade. Percebeu? O consumo excessivo de comida, num período contínuo (equivalente a 10% do tempo de vida dos ratos de laboratório), tornou as cobaias biologicamente incapazes de parar de comer.

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Segundo os cientistas, a chave do problema está no retículo endoplasmático, uma organela das células que fabrica proteínas e hormônios. Ele foi sobrecarregado pela alimentação excessiva e parou de funcionar. Comer demais, e de forma crônica, pode desregular os mecanismos hormonais e cerebrais de controle do apetite.

Alimentos ultraprocessados também têm o poder de fazer isso. Foi o que descobriram cientistas do Instituto Nacional de Saúde dos EUA (3). Eles dividiram 20 voluntários saudáveis, sendo dez homens e dez mulheres, em dois grupos por 15 dias. O primeiro grupo se alimentou de alimentos in natura, pouco processados (frutas, verduras, carne, peixe, leite, ovos, grãos), e podia comer o quanto quisesse. O segundo grupo também tinha essa liberdade, mas com uma diferença: passou os 15 dias comendo alimentos altamente industrializados, ricos em gordura trans, xarope de milho com alta frutose (HFCS) e todo tipo de aditivo. Depois das duas semanas, as dietas foram invertidas entre os grupos e o estudo prosseguiu por mais 15 dias. Os participantes fizeram a mesma quantidade de exercícios.

Em média, as pessoas ficavam satisfeitas depois de comer 2.600 calorias diárias quando estavam na dieta pouco processada – mas, com a alimentação industrializada, só paravam depois de 3.100. E isso também tem a ver com hormônios que agem sobre o cérebro. O estudo descobriu que, quando as pessoas estavam na dieta composta por alimentos in natura, tinham maiores níveis do hormônio PYY, que inibe o apetite, e menos grelina, hormônio que dispara os sinais de fome. O que você come influi diretamente sobre os mecanismos de controle do apetite – e ganhar ou perder peso não é só uma questão de força de vontade. Longe disso.

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O cérebro tenta impedir os gordos de emagrecer, num círculo vicioso que mantém a obesidade. A primeira pista disso veio em 1994 com a descoberta da leptina, um hormônio que é produzido pelas células adiposas e avisa ao cérebro que o corpo está com bastante energia estocada (na forma de gordura corporal). Com o tempo, o corpo dos obesos se torna menos sensível à leptina, e o cérebro passa a não detectar os sinais de saciedade.

Comer muito pode fazer você comer mais. E isso não é só uma questão de força de vontade: envolve uma disfunção neurológica.
Comer muito pode fazer você comer mais. E isso não é só uma questão de força de vontade: envolve uma disfunção neurológica. (Felipe Del Rio/Superinteressante)

Em 2013, pesquisadores da Universidade Brown, nos EUA, descobriram que outro hormônio entra na equação. É o alfa-MSH, que suprime o apetite e promove a queima de calorias. Durante 12 semanas, eles alimentaram um grupo de ratos (4) com uma dieta hipercalórica e outro grupo com uma dieta normal. Os animais superalimentados ficaram obesos, e isso impediu a produção do alfa-MSH. A raiz do problema, de novo, estaria no retículo endoplasmático – ele fica sobrecarregado e para de fabricar o alfa-MSH, o que descontrola o apetite e realimenta o processo, num círculo vicioso.

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A boa notícia é que comer bem pode condicionar positivamente o cérebro – e modificar naturalmente o apetite. A chave disso está no chamado “sistema de recompensa”, um conjunto de neurônios que engloba três regiões cerebrais: o nucleus accumbens (ligado à motivação), a amígdala (relacionada ao estresse) e o córtex pré-frontal (responsável pela tomada de decisões). Esse sistema libera dopamina, um neurotransmissor relacionado a sensações prazerosas. Em obesos, ele é ativado quando o indivíduo vê imagens de alimentos altamente calóricos. Mas cientistas da Universidade Tufts, nos EUA, provaram que é possível treinar o cérebro para abandonar a fissura por junk food. Durante seis meses, eles acompanharam 13 adultos com sobrepeso, que foram divididos em dois grupos: um comeu normalmente, como sempre, e o outro seguiu uma dieta saudável, com direito a encontros semanais por videoconferência e lições sobre alimentação. O cérebro dos voluntários foi escaneado, via ressonância magnética, no começo e no fim do estudo (5).

O grupo da dieta perdeu em média 6 kg, enquanto o outro ganhou em torno de 2 kg. Mas isso é óbvio. O surpreendente estava nos exames de ressonância magnética. O primeiro exame mostrou que o sistema de recompensa era ativado, em ambos os grupos, quando as pessoas viam fotos de comidas muito calóricas (frango frito, por exemplo). Após seis meses, porém, o grupo da dieta demonstrou mais ativação cerebral ao ver alimentos saudáveis, como um sanduíche natural. Seu cérebro havia mudado. No fim das contas, não precisamos abrir mão do prazer na hora de sentar à mesa. Só precisamos transformar o círculo vicioso em nosso favor, tendo cautela com certos alimentos. Alguns deles, mais do que simplesmente desregular o apetite, podem provocar alterações de comportamento – e estimular ansiedade e depressão.

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Os aminoácidos e os danos

Junto com as calorias, a alimentação também nos fornece vitaminas, minerais e os nove “aminoácidos essenciais” – que o organismo não consegue sintetizar, e obtemos diretamente na alimentação. Dois deles, o triptofano e a fenilalanina, são especialmente críticos para as funções cerebrais. A fenilalanina, que está presente em alimentos como ovo, frango, carne, feijão, lentilha, ervilha e abacate, é transformada pelo organismo em tirosina e depois dopamina. Já o triptofano, contido no leite, na carne, no pão e nos ovos, é a matéria-prima da serotonina, outro neurotransmissor crucial (a maioria dos antidepressivos age sobre ele, inclusive).

Antes que você pergunte, não adianta se entupir desses alimentos para tentar bombar a produção dos dois neurotransmissores: o cérebro tem mecanismos que limitam automaticamente a quantidade deles. Basta manter uma dieta saudável e variada. Por dia, o corpo precisa de 25 miligramas de fenilalanina e tirosina (somadas) a cada quilo de peso corporal. Isso significa que uma pessoa de 70 kg, por exemplo, precisa ingerir aproximadamente 875 mg de cada um desses aminoácidos por dia.

O corpo depende de nove “aminoácidos essenciais”, que só obtemos diretamente a partir de certos alimentos. E a falta de dois deles pode estar ligada a ansiedade e depressão.
O corpo depende de nove “aminoácidos essenciais”, que só obtemos diretamente a partir de certos alimentos. E a falta de dois deles pode estar ligada a ansiedade e depressão. (Felipe Del Rio/Superinteressante)

Não é difícil chegar lá. Você pode comer um pãozinho francês com um copo de leite no café da manhã, um omelete e um filé de frango no almoço, mais um iogurte e um sanduíche com duas fatias de queijo no lanche da tarde, e já terá ingerido a dose necessária de triptofano. E a fenilalanina? Só o peito de frango já fornece tudo. O que você não pode fazer é deixar de ingerir os aminoácidos essenciais – porque aí, sim, haverá efeitos ruins. Isso já foi bem estabelecido. Uma meta-análise feita por cientistas da Universidade de Amsterdã, que analisaram 53 trabalhos científicos sobre a fenilalanina e o triptofano publicados ao longo de quatro décadas (10), constatou uma relação direta entre a falta dessas substâncias e o risco de depressão, especialmente em pessoas com histórico familiar da doença.

A ingestão de determinados alimentos, e não apenas sua falta, também pode causar problemas. “Nossos estudos mostram que o consumo excessivo de açúcar altera a bioquímica do cérebro e a maneira como os circuitos se comunicam”, diz a neurocientista Selena Bartlett, da Queensland University of Technology, na Austrália. Em 2019, ela e outros pesquisadores revisaram mais de 300 estudos (11) sobre o tema, e concluíram que há “evidências esmagadoras” de que uma dieta rica em açúcar está associada a ansiedade e depressão. A equipe de Bartlett demonstrou, numa experiência em ratos de laboratório (12), que o consumo crônico de açúcar provoca alterações anatômicas no cérebro, encurtando os dendritos (as pontas dos neurônios). São danos evidentes, que não acontecem só em cobaias de laboratório – alterações do tipo já foram encontradas em cérebros humanos (veja quadro abaixo).

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O açúcar não é o único alimento capaz de provocar mudanças anatômicas no cérebro. O sal também pode fazer isso. Dietas ricas em sódio são associadas a maior risco de doenças neurológicas, mas até há pouco tempo os cientistas não sabiam explicar bem por quê. Como o sal aumenta a pressão arterial, acreditava-se que o problema estivesse na redução do fluxo de sangue no cérebro. Mas pesquisas recentes mostraram que uma dieta rica em sal aumenta o risco de demência mesmo em quem não têm hipertensão. Como é possível?

Costantino Iadecola, professor da Faculdade de Medicina Weill Cornell, decifrou o enigma. Ele alimentou camundongos com uma dieta contendo entre 8 e 16 vezes a quantidade normal de sal (13). Após dois meses, os animais se saíram mal em testes cognitivos: não conseguiam reconhecer objetos e demoravam mais para sair de um labirinto. Iadecola pensou que o excesso de sal estivesse causando danos pela redução do fluxo sanguíneo. Mas, ao analisar o tecido cerebral, ele viu outra coisa acontecendo: havia acúmulo de uma proteína chamada tau, ligada à doença de Alzheimer. “A tau é essencial para o funcionamento dos neurônios. Em condições como Alzheimer e demência, no entanto, ela se torna disfuncional”, diz Iadecola.

Normalmente, a tau fica sob controle graças ao efeito do ácido nítrico, que é produzido pelas células endoteliais do cérebro (elas formam a barreira hematoencefálica, uma camada de proteção que envolve o órgão). Mas o excesso de sal desregula todo o processo. O problema começa no intestino, onde o sal provoca um aumento de células de defesa chamadas linfócitos TH17. Esses linfócitos produzem IL17, uma proteína que inflama as células endoteliais do cérebro. E elas, por sua vez, param de produzir óxido nítrico – o que leva ao acúmulo da proteína tau. A boa notícia é que o problema é reversível: quando Iadecola restaurou a produção de óxido nítrico nos ratos, a cognição deles melhorou.

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(Lisa Mosconi/Weill Cornell Medical College/Divulgação)

Os brasileiros consomem em média 9,3 g de sal por dia, quase o dobro do recomendado pela OMS. Mas os animais do estudo comeram muito mais do que isso. Ingeriram proporcionalmente mais sal até do que a população do Cazaquistão, que lidera o consumo no mundo (17 g por dia). Será, então, que devemos mesmo nos preocupar com a tau? Iadecola diz que sim. “Os animais ingeriram essa dieta por apenas dois meses, mas as pessoas consomem dietas ricas em sal a vida inteira”, afirma. “Mesmo que os níveis de sal sejam inferiores aos do estudo, o efeito ao longo de vários anos poderia ser comparável.”

Adoramos o sal porque ele é vital para o organismo. Sal é rico em sódio, e sem sódio o sistema nervoso não consegue disparar sinais elétricos. O corpo também precisa dele para equilibrar o fluido dentro e fora das células. Por isso o sabor salgado é tão gostoso, tão atraente – evoluímos para desejá-lo. Com o açúcar, acontece a mesma coisa.

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Milhares de anos atrás, antes da criação da agricultura, nossos ancestrais só obtinham açúcar das frutas (só disponíveis em parte do ano, durante certas estações) e do mel (escasso e protegido pelas abelhas). Ou seja: era um acesso limitado. A evolução então programou nosso cérebro para ingerir muito açúcar nas poucas vezes em que o encontrássemos, pois isso garantia uma reserva calórica para os tempos de escassez. Mas hoje vivemos rodeados de doces, balas, bebidas e alimentos açucarados – e isso tem gerado um curto-circuito.

A explosão do açúcar começou nos anos 1960, quando ele passou a ser usado industrialmente para substituir gorduras, mascarar o amargor, turbinar o consumo de bebidas doces e tornar os alimentos mais palatáveis. Desde então o consumo mundial de açúcar triplicou, sobretudo devido à sua adição oculta nos alimentos processados. Nesse mesmo período houve uma disparada nos casos de depressão, que cresceram 18% só nos últimos dez anos, segundo a OMS, e hoje somam 300 milhões de pessoas (11,5 milhões de brasileiros), sendo a principal causa de incapacidade no planeta.

Isso depende de vários outros fatores, claro (inclusive a disposição das pessoas deprimidas em buscar ajuda e a propensão dos médicos em diagnosticar a doença). Mas é possível que o consumo avassalador de açúcar, que é de quase 180 milhões de toneladas por ano – o que dá espantosos 23 quilos para cada ser humano, incluindo bebês –, possa estar contribuindo para isso. E o açúcar não se limita a alterar o cérebro; também pode gerar dependência.

Uma alimentação rica em sal e açúcar pode desencadear ansiedade e depressão – e até causar perdas cognitivas.
Uma alimentação rica em sal e açúcar pode desencadear ansiedade e depressão – e até causar perdas cognitivas. (Felipe Del Rio/Superinteressante)
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Sacarose e nicotina

Para que uma substância vicie, ela precisa se conectar a determinados alvos no cérebro. E o açúcar acerta em cheio um dos principais: os chamados “receptores nicotínicos”. A principal função desses receptores, que existem no cérebro e em outras partes do corpo, é responder à ação da acetilcolina, um neurotransmissor que faz os músculos se moverem. Os receptores também se encaixam muito bem à nicotina, e por isso ganharam esse nome. E o açúcar age diretamente sobre eles. “Nós publicamos vários estudos mostrando que ele é tão viciante quanto o álcool e o cigarro”, diz Bartlett. O açúcar também se conecta aos receptores opioides, e pode até potencializar o efeito da morfina (leia no quadro abaixo).

Assim como essas drogas, o açúcar atua sobre o “sistema de recompensa” do cérebro, que libera dopamina. Quando esse mecanismo é estimulado cronicamente por alguma substância, ele perde a sensibilidade e a pessoa tem de consumir maiores quantidades do produto para obter o mesmo efeito – até que o cérebro se adapta e passa a precisar daquela substância para operar normalmente. Essa é a definição de dependência química.

Curiosamente, esse efeito também pode ocorrer com adoçantes artificiais, como demonstrou o neurocientista Serge Ahmed, da Universidade de Bordeaux. Ele é especialista no vício em álcool e drogas, mas resolveu estudar os efeitos da sacarina em cobaias de laboratório (14). Ahmed permitiu que 132 ratos, que nunca haviam ingerido açúcar ou adoçante, escolhessem oito vezes por dia entre duas alavancas: uma lhes dava uma recompensa de cocaína (0,25 mg, injetados por uma sonda intravenosa que já estava colocada nos ratos) e a outra dava acesso, durante 20 segundos, a água adoçada com sacarina (0,2%). Resultado: 94% dos animais preferiram a sacarina. A mesma preferência foi observada com sacarose (açúcar). “Nossas descobertas demonstram que a doçura intensa pode superar a recompensa pela cocaína, mesmo em indivíduos viciados em drogas”, concluiu Ahmed no estudo.

Os adoçantes também podem enganar o cérebro e fazer a pessoa comer mais – indo contra sua grande vantagem, que é justamente ter poucas calorias. Em 2017, cientistas da Universidade Yale demonstraram que os refrigerantes zero caloria, feitos com adoçante, geram uma resposta metabólica anormal (15): o corpo acha que está ingerindo um alimento rico em açúcar e reage disparando uma série de processos cerebrais e digestivos. Como na verdade não há açúcar, nem calorias, esse processo é frustrado – e a pessoa sente fome exagerada. Trata-se de uma distorção neurológica, sem componente emocional (não é que a pessoa come mais porque tomou um refrigerante diet, por exemplo, e se sente à vontade para exagerar no resto).

Alimentos feitos com adoçantes artificiais podem gerar sinais metabólicos anormais – e fazer o cérebro disparar um alerta de fome.
Alimentos feitos com adoçantes artificiais podem gerar sinais metabólicos anormais – e fazer o cérebro disparar um alerta de fome. (Felipe Del Rio/Superinteressante)
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Isso foi provado numa experiência com um bicho de cognição rudimentar: a mosca-da-fruta. Em 2016, o geneticista Greg Neely, da Universidade de Sydney, alimentou moscas com duas dietas diferentes (16). A primeira continha alimentos adoçados com açúcar; a outra, comida feita com o adoçante sucralose. Após cinco dias, as moscas que ingeriram sucralose haviam consumido 30% mais calorias do que as que comeram açúcar. Elas simplesmente comiam mais. Quando o adoçante foi removido da dieta, o consumo de calorias voltou ao normal. O  estudo foi replicado em camundongos, que receberam uma dieta com sucralose – e, ao longo de uma semana, ingeriram 50% mais calorias. 

Já havia provas de que, em humanos, trocar o açúcar por adoçante não evitava ganho de peso nem diabetes. Mas não se sabia bem por quê. Neely matou a charada. “Os adoçantes imitam o estado de fome no cérebro”, diz. Também interferem na insulina – um hormônio liberado pelo pâncreas quando o nível de glicose (açúcar) no sangue aumenta. Quando comemos mais do que precisamos, a insulina entra em ação e permite que a glicose seja estocada nas células, diminuindo a taxa de açúcar no sangue. Os adoçantes também provocam a liberação desse hormônio. “A insulina então abre a porta das células para que o açúcar entre. Mas, como não há nenhum açúcar para entrar, as células ficam pedindo mais”, diz a médica espanhola Marta Aranzadi, especialista em nutrição. (Se você tem propensão a diabetes, melhor cortar os refrigerantes zero da dieta.)

O açúcar é capaz de fazer algo ainda mais surpreendente: interferir na população de micróbios que vivem no intestino. Ao longo da evolução, humanos e micróbios desenvolveram uma simbiose. Nós os hospedamos e alimentamos; em troca, eles ajudam a regular as funções de diversos órgãos, incluindo o cérebro. Em certo sentido, somos mais micróbios que humanos, pois carregamos 130 células de bactérias para cada 100 células humanas. A maioria mora no sistema digestivo. E essa região tem uma conexão direta com o cérebro: é o nervo vago, um feixe de fibras nervosas que se estende do crânio até o aparelho digestivo. Esse nervo é uma via de mão dupla, transmitindo mensagens do abdômen para nossa massa cinzenta e vice-versa. Isso permite que o cérebro controle e monitore a digestão – e também explica por que sentimos frio na barriga quando ficamos ansiosos.

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Durante a vida, a população de bactérias vai mudando, principalmente por causa da dieta. Nos últimos anos, alguns estudos encontraram relações entre estresse, ansiedade e a microbiota. Cientistas da Universidade de Oxford constataram, em 2015, que pessoas com mais bactérias dos gêneros Lactobacillus e Bifidobacterium tinham menores níveis de cortisol (17), o hormônio do estresse. O mecanismo envolvido ainda é desconhecido. Algumas bactérias do sistema digestivo produzem neurotransmissores como serotonina, dopamina e noradrenalina, mas eles não penetram no cérebro (é mais provável que ajam no sistema nervoso entérico, uma rede de neurônios que percorre o aparelho digestivo).

Seja qual for o mecanismo envolvido, o açúcar parece interferir com ele: em 2020, uma experiência da Universidade do Texas (18) revelou que o consumo excessivo altera a microbiota de ratos, que passam a ter mais bactérias das espécies A. muciniphila e B. fragilis – cuja presença aumenta os níveis de inflamação no corpo.

Ainda não se sabe se isso também acontece em humanos, nem se a proliferação dessas bactérias pode ter efeito sobre nós. Por via das dúvidas, melhor maneirar no açúcar e em outras coisas que fazem mal, e preferir alimentos saudáveis. Eles podem ser tão ou mais gostosos do que a junk food. O segredo é convencer o cérebro. E isso não precisa ser uma tarefa árdua, que requer muita força de vontade. Afinal, você já tem uma arma poderosa para reprogramá-lo: a própria comida.

O sistema digestivo, e as bactérias que vivem nele, têm um canal direto de comunicação com o cérebro: o nervo vago.
O sistema digestivo, e as bactérias que vivem nele, têm um canal direto de comunicação com o cérebro: o nervo vago. (Felipe Del Rio/Superinteressante)
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Box: A conexão açúcar-opioides

O açúcar e os adoçantes agem sobre os mesmos receptores cerebrais afetados pelo ópio.

Em 1991, cientistas da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, demonstraram que a sacarose (açúcar comum) tem efeito analgésico (6). Bebês que tomaram 2 ml de uma solução contendo 12% dessa substância, logo antes de um exame de sangue, choraram 50% menos com a agulhada do que os demais, que haviam ingerido 2 ml de água. É um efeito interessante (e que também foi verificado no procedimento de circuncisão), mas não prova uma ação direta, neuroquímica, sobre o cérebro: os bebês, afinal, talvez só estivessem distraídos com o sabor do açúcar.

Cinco anos mais tarde, pesquisadores da Universidade Tufts, também nos EUA, deram um passo à frente: provaram que, em ratos de laboratório, o açúcar potencializava o efeito da morfina (7), um analgésico opioide. Nas cobaias que haviam sido alimentadas com sacarose ao longo de três semanas, a injeção de morfina chegava a ser duas vezes mais potente. Parecia haver, portanto, uma relação entre os receptores opioides (que existem por todo o sistema nervoso e respondem a substâncias produzidas pelo organismo, como a endorfina, bem como a medicamentos derivados do ópio, como a morfina e a heroína).

Em seguida, os cientistas tiveram a ideia de testar a naloxona, um remédio usado para tratar o vício em morfina e heroína. Ele se encaixa nos receptores opioides, reduzindo a síndrome de abstinência dessas drogas (que é fortíssima, podendo até matar). E, em ratos, também teve outro efeito: fez com que os bichinhos comessem menos açúcar. Com os receptores opioides ocupados pela naloxona, o cérebro da cobaia ficava satisfeito, e ela não sentia vontade de comer açúcar. Essa hipótese também foi testada em humanos, num estudo da Universidade de Michigan, que administrou naloxona para 40 mulheres (8). O medicamento cortou a vontade de ingerir doces. Mas isso só aconteceu nas voluntárias que tinham o hábito de comer muitos alimentos açucarados – sugerindo que elas haviam se tornado, de alguma forma, neurologicamente dependentes do açúcar.

Em 2005, cientistas da Universidade de Princeton finalmente conseguiram demonstrar o mecanismo do vício em açúcar, condicionando ratos a comer alimentos doces. Quando isso acontecia, seus cérebros disparavam dopamina (neurotransmissor associado a situações prazerosas). Depois de algum tempo, o cérebro se adaptava a um nível aumentado dessa substância, reduzindo a quantidade de receptores de dopamina – e aumentando o número de receptores opioides, mudanças similares às observadas em cobaias viciadas em heroína (9).

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Fontes 1 A uroguanylin-GUCY2C endocrine axis regulates feeding in mice. S Waldman e outros, 2011. 2 Calorie-induced ER stress suppresses uroguanylin satiety signaling in diet-induced obesity. S Waldman e outros, 2016. 3 Ultra-Processed Diets Cause Excess Calorie Intake and Weight Gain: An Inpatient Randomized Controlled Trial of Ad Libitum Food Intake. K Hall e outros, 2019. Obesity Induces Hypothalamic Endoplasmic Reticulum Stress and Impairs Proopiomelanocortin (POMC) Post-translational Processing. E Nillni e outros, 2013. 5 Pilot randomized trial demonstrating reversal of obesity-related abnormalities in reward system responsivity to food cues with a behavioral intervention. SB Roberts e outros, 2014.

6 Sucrose as an analgesic for newborn infants. E Blass e L Hoffmeyer, 1991. 7 Duration of sucrose availability differentially alters morphine-induced analgesia in rats. K d’Anci e outros, 1996. 8 Naloxone, an opiate blocker, reduces the consumption of sweet high-fat foods in obese and lean female binge eaters. A Drewnowski e outros, 1995. 9 Evidence for sugar addiction: Behavioral and neurochemical effects of intermittent, excessive sugar intake. B Hoebel e outros, 2009.

10 Mood is indirectly related to serotonin, norepinephrine and dopamine levels in humans: a meta-analysis of monoamine depletion studies. HG Ruhé e outros, 2007. 11 The impact of sugar consumption on stress driven, emotional and addictive behaviors. S Bartlett e outros, 2019. 12 Binge-like sucrose consumption reduces the dendritic length and complexity of principal neurons in the adolescent rat basolateral amygdala. S Bartlett e outros, 2017. 13 Dietary salt promotes cognitive impairment through tau phosphorylation. C Iadecola e outros, 2019.

14 Intense Sweetness Surpasses Cocaine Reward. S Ahmed e outros, 2007. 15 Integration of Sweet Taste and Metabolism Determines Carbohydrate Reward. D Small e outros, 2017. 16 Sucralose Promotes Food Intake through NPY and a Neuronal Fasting Response. G Neely e outros, 2016. 17  Prebiotic intake reduces the waking cortisol response and alters emotional bias in healthy volunteers. P Burnet e outros, 2015. 18 Dietary simple sugars alter microbial ecology in the gut and promote colitis in mice. H Zaki e outros, 2020.

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