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Por que o espiritismo pegou tanto no Brasil

Na maior parte do mundo, o espiritismo é visto como uma moda do século 19. No Brasil a história é bem diferente: a maior nação espírita do planeta.

Por André Schröder
Atualizado em 26 out 2020, 15h26 - Publicado em 3 jun 2016, 20h30

Em volta da mesa de madeira, iluminados pelas chamas dos lampiões, homens compenetrados invocavam a presença dos mortos. Era a primeira vez que o grupo de intelectuais baianos comandava uma sessão mediúnica. Acreditavam que podiam fazer contato com espíritos e estavam atentos a ruídos e movimentos fora do comum. Naquela mesma noite de 17 de setembro de 1865, os escritores, professores, militares e magistrados ali reunidos haviam fundado o primeiro centro espírita brasileiro. Seguindo rituais propostos por Allan Kardec, tentavam atrair alguma alma desencarnada. Sem nenhum aviso, a mão de um dos homens começou a rabiscar um papel. Todos os olhares se voltaram para as letras que, uma a uma, surgiam na folha, agrupadas em palavras que comoveram os presentes antes mesmo de serem conhecidas. Quando a mão finalmente parou de escrever, a mensagem psicografada anunciava que um espírito chamado Anjo de Deus estava entre eles.

O episódio ocorrido em Salvador é considerado o marco inicial do espiritismo no Brasil. A ideia de que é possível falar com os mortos, no entanto, não era estranha em um país onde crenças africanas e indígenas sempre figuraram em meio ao catolicismo oficial e dominante. O caldeirão cultural brasileiro é só um dos fatores que explicam a acolhida que o espiritismo teve no país a partir da metade do século 19, quando a doutrina de Kardec chegou da França com explicações para casos extraordinários e assustadores que agitavam o mundo. Um desses acontecimentos se passou em 1848, em uma casa de madeira no vilarejo de Hydesville, no estado americano de Nova York. O casal Fox já tinha ouvido batidas e ruídos vindos das paredes da residência onde viviam com as filhas Margaret e Kate, de 14 e 11 anos. Um dia as pancadas ficaram fortes, camas começaram a tremer e objetos começaram a sair do lugar. Os Fox estavam aterrorizados.

Foi quando a menina mais nova estalou os dedos e ouviu batidas na parede como resposta. Ela repetiu o gesto com os dedos, dessa vez sem som de estalos, e percebeu novamente as batidas, o que significava que era observada. Em poucas horas, na presença de dezenas de testemunhas, a conversa foi aprimorada: perguntas eram feitas em voz alta, respostas de sim e não chegavam com toques combinados. Descobriram que o visitante batedor era um homem morto e enterrado na casa. As notícias sobre a conversa com o espírito correram o mundo, e as irmãs Fox ganharam fama apresentando em público seus poderes mediúnicos. Anos mais tarde, elas disseram que tudo havia sido armado. Depois, voltaram atrás e falaram que tinham negado a história em troca de dinheiro.

O escritor Arthur Conan Doyle era um dos interessados nas irmãs Fox. Ao longo de 40 anos, o inglês estudou diversos casos de manifestações de espíritos – a ponto de publicar mais tarde, em 1926, o clássico A História do Espiritualismo, em que relata alguns episódios e afirma que “uma invasão organizada” de seres de outros planos estava em andamento. Com o interesse de figuras famosas, como o criador das histórias de Sherlock Holmes, em espaço de poucos anos, surgiram centenas de figuras alegando poderes que a ciência não sabia explicar. Diziam contar com a ajuda de espíritos para prever o futuro, saber do passado, transmitir pensamentos, curar doenças e até levitar.

Eles e seus seguidores não tinham dúvidas: estava em curso uma ação dos espíritos para despertar curiosidade e fazer contato com os vivos.

Uma moda espírita

Em 1850, o fenômeno das “mesas girantes” divertia nobres e burgueses em salões da alta sociedade europeia, sobretudo em Paris. Ao redor de uma mesa, os participantes da brincadeira apoiavam as mãos espalmadas no tampo e, unidos pelas pontas dos dedos, viam o móvel se movimentar sem uma explicação física aparente, geralmente girando. O que se dizia era que o poder de concentração do grupo fazia a mesa se mexer.

Estudiosos logo se interessaram: parte deles suspeitou de truques, outros associaram os giros a magnetismo ou ação involuntária e inconsciente dos envolvidos. Em 1855, o pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail, professor e autor de livros educacionais, ouviu de um amigo dono de restaurante que o movimento das mesas tinha a participação dos mortos. O amigo disse ainda que as mesas eram inteligentes e batiam no chão em resposta a perguntas. Curioso, embora incrédulo, Rivail aceitou o convite para ver uma das sessões.

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Às 8 horas da noite de uma terça-feira de maio, Rivail chegou ao número 18 da rua Grange-Batelière, em Paris. Entrou na casa de uma senhora chamada Plainemaison e ficou aturdido com as experiências que para sempre mudariam a sua vida. Diante de seus olhos, como ele mesmo escreveria anos mais tarde, “mesas pulavam e corriam” pelo cômodo da mansão, em movimentos que não deixavam nenhuma dúvida de que estava frente a forças ocultas. Na mesma noite, viu ainda uma tentativa de escrita mediúnica e teve a certeza de que espíritos queriam se comunicar. Deixou a casa decidido a voltar e investigar a fundo os fatos absurdos, que ainda não conseguia compreender.

Os meses seguintes transformariam definitivamente a vida do professor. Ele presenciou muitas outras vezes os fenômenos tanto na casa da senhora Plainemaison como em outros lares de Paris. Na mansão da família Boudin, passou a contar com a ajuda de duas médiuns adolescentes, que psicografavam mensagens enviadas pelos espíritos. Rivail perguntava em voz alta o que gostaria de saber sobre o mundo dos mortos e recebia as respostas em psicografias. Contou com a ajuda de outros médiuns para revisar as informações. As supostas revelações sobre o que eram, de onde vinham e para onde iam os espíritos foram reunidos na forma de uma nova doutrina, batizada de espiritismo – para diferenciar do abrangente termo espiritualismo, já consagrado na época para descrever a relação entre vivos e mortos. Aconselhado por um espírito que já o conhecia de outra vida, Rivail mudou seu nome para Allan Kardec.

Em 18 de abril de 1857 foi lançado em Paris o Livro dos Espíritos, com 501 perguntas e respostas, resultado das revelações que Kardec dizia obter do mundo espiritual. Três anos depois, uma segunda edição, revista e ampliada para 1.019 questões, veio a público. A doutrina defendia a existência de Deus, a imortalidade da alma, a reencarnação, a evolução dos seres, a pluralidade de mundos e a possibilidade de comunicação com os espíritos por meio da mediunidade e a caridade.

Para Kardec, as revelações contidas na obra não eram simples religião, mas uma filosofia com base científica voltada para o aperfeiçoamento moral do homem. O livro foi criticado por céticos, que viram na obra não mais que uma bem elaborada trama mística. A Igreja foi além das críticas contra a doutrina, que pregava a reencarnação e feria dogmas católicos. Em 1861, Kardec enviou 300 exemplares de obras espíritas para um livreiro de Barcelona. A encomenda foi apreendida pelo bispo local, que ordenou a queima dos livros em praça pública. Em 9 de outubro, orientado por um padre que segurava uma cruz e uma tocha nas mãos, um carrasco comandou a queima das obras diante de uma pequena multidão. Em 1864, o Livro dos Espíritos foi incluído no Index Librorum Prohibitorum, lista de obras que não podiam ser lidas pelos fiéis católicos.

Até sua morte, em 1869, Kardec publicou mais quatro obras: O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese, que, junto com O Livro dos Espíritos, reúne a base da doutrina. Na Revista Espírita, que fundou em 1858, o francês divulgou por 10 anos textos complementares, mensagens psicografadas e notícias da onda espírita pelo mundo.

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Terreno fértil

Embora tenha repercutido em dezenas de países, a verdade é que o espiritismo não achou muito espaço para prosperar. Espiritualistas britânicos e americanos não aceitaram a tese de reencarnação e fizeram ressalvas à religiosidade da doutrina. Em Portugal, Espanha e Itália, as ideias foram combatidas pela Igreja Católica e não puderam circular livremente. Até mesmo na França, berço do espiritismo, o interesse ficou restrito a alguns círculos de intelectuais e arrefeceu depois de alguns anos, sobretudo quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial.

No Brasil, entretanto, o avanço do espiritismo foi notável desde os primeiros anos, como o próprio Kardec festejou em uma edição de 1864 da Revista Espírita, quando afirma com satisfação “que a ideia espírita faz progressos sensíveis no Rio de Janeiro, onde ela conta com numerosos representantes, fervorosos e devotados”. O fenômeno das “mesas girantes” era visto com curiosidade no Brasil imperial do século 19. Os periódicos Jornal do Commercio, Diário de Pernambuco e O Cearense, por exemplo, noticiaram a febre que colocava toda a sociedade parisiense “em torno de uma mesa redonda”. Antes da doutrina kardecista, falar de espiritualismo já era comum entre homeopatas e homens atentos a casos extraordinários, como o das irmãs Fox.

Com a publicação de O Livro dos Espíritos, o tema despertou interesse em muito mais gente. A pequena redação do Courrier du Brésil, por exemplo, era o principal ponto de encontro no Rio de Janeiro de franceses exilados e opositores do regime de Napoleão III, bem como de brasileiros atentos às teorias políticas e filosóficas que agitavam a Europa. A elite carioca dos anos 1850 tinha os olhos voltados para Paris. Quando a doutrina de Kardec veio a público, foi bem recebida pelos leitores do jornal impresso em francês e apreciado por prestigiados cidadãos da corte de dom Pedro II. Além de fascinantes, as revelações dos espíritos estavam livres do conservadorismo católico e alinhadas com ideias modernas. O espiritismo logo virou uma opção mística estimulante para intelectuais que desprezavam o controle moral exercido pela Igreja. Com o apoio de figuras respeitadas da sociedade brasileira, o espiritismo ganhou legitimidade.

No Rio de Janeiro, nem mesmo a Igreja fez ressalvas quando, em 1860, Casimir Lieutaud, diretor do presitigiado Colégio Francês, publicou Os Tempos São Chegados, primeiro livro espírita em português. Dois anos mais tarde, textos de Kardec traduzidos já estavam nas livrarias. A reação da Igreja ao espiritismo na cidade só viria com força 20 anos depois, quando o movimento andava a passos largos nas principais cidades brasileiras.

Em Salvador, o Conservatório Dramático da Bahia, fundado por Luiz Olímpio Teles de Menezes em 1857, era espaço de debate da intelectualidade baiana. Lá, as ideias espíritas também causaram impacto. Alguns homens cultos desse grupo estavam ao redor da mesa 8 anos mais tarde, na primeira sessão espírita do país, quando a entidade Anjo de Deus anunciava sua presença.

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A reação da Igreja ao espiritismo na Bahia foi mais dura, a ponto de uma carta com o título Erros Perniciosos do Espiritismo ter sido escrita pelo arcebispo em julho de 1867. Teles de Menezes respondeu com outra carta aberta, mas as hostilidades não cessaram. O grupo baiano incomodava não só a Igreja mas também famílias donas de escravos, contrariadas com a postura abolicionista dos espíritas. No auge do conflito, espíritas eram alvo de charges e chacotas em jornais de Salvador.

Sem recuar, Teles de Menezes fundou em 8 de março de 1869 o primeiro periódico espírita do Brasil, O Eco d’Além-Túmulo, publicação bimestral, que escancarou a posição contrária à escravidão e virou uma importante ferramenta de divulgação do espiritismo. No discurso de lançamento do jornal, Teles de Menezes destacou a “missão espinhosa” de fazer a crença “chegar indistintamente a todos os homens”. A exemplo de O Eco d’Além-Túmulo, muitos outros jornais e revistas espíritas foram lançados. Eram os principais canais de divulgação do espiritismo e, vendidos em bancas populares, fizeram com que a novidade chegasse a todos os lugares. Em 1875, surgiu no Rio de Janeiro a Revista Espírita. Naquele ano, o jornal O Espírita era criado no Rio Grande do Norte. Em 1881, a Sociedade Acadêmica Deus Cristo e Caridade fundou a sua própria revista na capital fluminense.

Até a virada do século, não menos do que 50 publicações tinham aparecido nas bancas. Foi também no Rio de Janeiro que o português Augusto Elias da Silva fez espaço em seu ateliê fotográfico para montar uma pequena redação. Incentivado pela mulher, usou dinheiro do próprio salário para lançar em 21 de janeiro de 1883 o jornal O Reformador, veículo espírita mais antigo ainda em circulação no país.

As publicações também eram importantes para rebater as críticas que a Igreja começava a fazer com maior ênfase. O bispo do Rio de Janeiro, dom Pedro Maria de Lacerda, publicou em 1881 um texto em que chamava os espíritas de “possessos, dementes e alucinados”. No ano seguinte, subiu o tom dos ataques e disse que era preciso odiar espíritas “por dever de consciência”. Naqueles tempos, os grupos espíritas precisavam disfarçar o lado religioso e dizer que a doutrina era de estudos científicos para evitar a perseguição. Os grupos proliferavam, mas seguiam caminhos próprios. Era preciso unir forças para o movimento continuar forte.

Um dos primeiros a perceber isso foi o próprio fotógrafo Augusto Elias da Silva, que convocou algumas lideranças para um encontro em sua casa. Ele defendeu a criação de uma nova e ampla federação, que integrasse todos os grupos espíritas existentes. Com o apoio dos convidados, que também viam a necessidade de união, propôs a elaboração de um plano de divulgação do espiritismo, que seria feito por meio do seu jornal – agora oficial – e de livros. No primeiro dia de 1884, era criada a Federação Espírita Brasileira.

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Frente unida

A atuação da organização, desde seu início até hoje, também explica o êxito do espiritismo no Brasil. É ela que define como deve funcionar um centro espírita, como devem ser feitos os atendimentos e quais são as estratégias para que o movimento não pare de crescer. Com a publicação de diversos textos teóricos, é uma referência doutrinária de qualquer organização espírita. Oferece ainda cursos para a formação de médiuns e dá palestras a seguidores. No final do século 19, os centros espíritas passaram a oferecer tratamento homeopático e espiritual a pobres e escravos que não conseguiam outro tipo de atendimento.

Mesmo com a elite espírita voltada para o estudo e a defesa da doutrina, os seguidores não deixaram de aprofundar o trabalho social, virtude que Kardec apontava como fundamental para a evolução da alma e que a população ligava a pessoas de bom coração. Para quem tem um filho doente, afinal, pouco importa se a ajuda parte de católicos, espíritas ou ateus. Foi a dinâmica de funcionamento dos centros a principal responsável pelo espiritismo ter atingido as classes populares. Famílias pobres passaram a confiar nos espíritas, a quem pediam apoio e de quem recebiam remédios naturais, passes espirituais, roupa, comida e conforto. “A popularidade do espiritismo vem dessa ação de caridade da elite em relação aos necessitados. As pessoas procuravam o espiritismo em busca de tratamento”, afirma Bernardo Lewgoy, professor da pós-graduação em antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do CNPq.

Também encontravam refúgio nos centros espíritas pessoas tratadas como loucas, que viam na ideia de mediunidade uma possível explicação para supostas visões e vozes. Com palestras, cursos e leituras, eram incentivadas a acreditar que podiam encarnar espíritos. O espiritismo brasileiro se afastava do elitistismo europeu, berço da doutrina, e abria espaço para a entrada de pessoas simples.

Apesar de festejada, a criação da Federação Espírita Brasileira não conseguia superar uma divisão que parecia definitiva. Os trabalhos de caridade eram incentivados com base na faceta mais religiosa das ideias de Kardec, o que incluía passes e sessões de contato com os mortos. Muitos espíritas, no entanto, estavam mais interessados nos aspectos científicos do trabalho de Kardec e defendiam a ênfase do espiritismo na pesquisa do sobrenatural. Além disso, havia divergências sobre a validade de outros autores, como Jean-Baptiste Roustaing, cuja obra continha trechos conflitantes com partes de O Livro dos Espíritos. O responsável por acalmar os ânimos e unir os espíritas em um movimento mais coeso foi Bezerra de Menezes, o “médico dos pobres”, que aderiu ao espiritismo em 1886, em cerimônia pública que atraiu quase 2 mil pessoas. O médico, com 30 anos de vida política, tinha perdido a mulher e dois filhos. Sem apego material, passou a atender os necessitados sem cobrar pelo serviço e logo estava ele mesmo pobre.

Era uma figura carismática e agregadora, um homem de moral elevado, visto como a melhor opção para assumir a presidência da Federação Espírita, o que fez em 1889, no auge da disputa entre místicos e científicos. Bezerra encontrou um movimento problemático. Nos centros que visitava, encontrava diretores ignorantes e ríspidos. Muitos distorciam a doutrina e praticavam um espiritismo fanático e nocivo. “Eram pessoas bem intencionadas, mas que não conheciam bem a obra de Kardec. Foi um processo lento até acabar com opiniões pessoais e realizar seriamente os trabalhos de mediunidade”, diz Antonio Cesar Perri de Carvalho, atual presidente da Federação Espírita Brasileira.

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Bezerra de Menezes batalhou para acabar com as divergências. Estudioso do kardecismo, publicou traduções e escreveu inúmeros textos e livros, sempre enfatizando que a ajuda aos pobres e aos necessitados era o maior dever espírita. A dedicação fez com que fosse chamado de “o Kardec brasileiro”. Superou as disputas internas e definiu que o espiritismo no Brasil seria uma doutrina religiosa e dedicada a causas sociais, orientação válida até hoje.

A principal batalha de Bezerra de Menezes, entretanto, começou com o fim do Império, quando a religião católica era a oficial. Depois de passar para a República, em 1889, o Brasil se tornaria um Estado laico. A nova Constituição, em 1891, viria a garantir liberdade de culto, mas o Código Penal aprovado antes dela, em 1890, criminalizou a prática do espiritismo, incluído em artigo que condenava rituais de magia e cartomancia. Homeopatia, cura magnética e qualquer tipo de curandeirismo também estavam proibidos, o que impedia a atuação dos médiuns. Vários espíritas foram presos.

A habilidade política de Bezerra triunfou quando ele enviou um ofício ao então presidente da República, Deodoro da Fonseca, em 1890. O médico pediu o fim das perseguições em respeito aos direitos e liberdades dos espíritas. Argumentou que não havia charlatanismo em centros espíritas, já que eles não tinham fins lucrativos. Por fim, destacou o atendimento que os espíritas prestavam a quem não tinha acesso a médicos e hospitais. O Código Penal não foi alterado, mas o apelo de Bezerra fez com que as perseguições rareassem, permitindo que médiuns e receitistas voltassem a trabalhar. Assim, os principais críticos do espiritismo se tornaram os psiquiatras, que, na virada do século 20, viam na doutrina em expansão uma herança de crenças africanas e classificavam o culto como uma doença contagiosa, capaz de levar adeptos à loucura.

Misturar espiritismo com ritos africanos e nativos fazia sentido para quem não conhecia a doutrina a fundo. De fato, contatos mediúnicos com espíritos eram comuns em curas e outros rituais dos indígenas e dos escravos, mas terminavam aí as semelhanças das religiões nativas e africanas com a palavra de Kardec. Se havia outro ponto em comum, era o timing: ao mesmo tempo que o espiritismo saía da elite para penetrar nas classes populares, o espiritualismo das senzalas se viu livre para circular pelas cidades a partir do fim da escravidão, em 1888. Uma coincidência propícia para uma fusão.

Dissidentes

Em 1908, Zélio Fernandino de Moraes teve uma súbita paralisia dias antes de prestar exames para a Escola Naval. A família buscou ajuda médica, mas o tratamento não teve efeito. O garoto, de 17 anos, passou então a ter visões e falar palavras desconexas. Outros médicos avaliaram o caso, mas não tinham um diagnóstico. Aconselhados por um vizinho, os pais levaram o jovem para um centro espírita em Niterói. Quando a sessão começou, Zélio incorporou o espírito de um caboclo, entidade que já era conhecida dos kardecistas, considerada alma atrasada e indesejada. Mandado embora, o espírito se embrabeceu e disse que, no dia seguinte, voltaria a falar através de Zélio para dar início a uma nova religião.

Às 20 horas do dia 16 de novembro, o Caboclo das Sete Encruzilhadas ressurgiu no corpo do garoto e falou que os espíritos dos velhos africanos e dos índios nativos iriam ajudar os vivos livres de preconceitos pela cor, raça e condição social em suas vidas passadas. Antes de partir, pediu que os adeptos vestissem branco e anunciou o nome da primeira grande dissidência do espiritismo: a umbanda. Em 1910, na cidade de Santos (SP), Luís de Matos fundou outra nova doutrina, batizada de Racionalismo Cristão, alegando que havia excesso de religiosidade no espiritismo, do qual havia sido adepto. Na obra fundamental, lançada em 1914, Matos fez nova interpretação das revelações dos espíritos e defendeu uma codificação racional e científica das mensagens, sem misticismos e cargas religiosas.

As religiões saídas do espiritismo não impediram que o movimento continuasse a crescer nos anos seguintes, marcado pela construção de hospitais, por programas no rádio e pelo reconhecimento do trabalho de grandes médiuns, entre eles Francisco de Paula Cândido, o Chico Xavier. Ao longo do século 20, o mineiro seria o principal personagem que ajudaria a consolidar o Brasil como o maior expoente mundial do espiritismo, atraindo milhões de adeptos para a doutrina.

Santo espírita

Chico ouvia vozes desde a infância. Nascido em família pobre, conheceu o espiritismo em 1927, ao buscar ajuda para uma irmã. Aos 17 anos, fundou um centro espírita simples, em um barracão de madeira, onde começou a psicografar textos ditados por espíritos. Depois de emplacar alguns escritos em jornais, publicou em 1932 o primeiro livro, Parnaso de Além-Túmulo, antologia de poemas que teriam sido ditados por escritores portugueses e brasileiros mortos, entre eles Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Casimiro de Abreu, Artur Azevedo e Olavo Bilac. A polêmica em torno da veracidade da obra não impediu Chico de continuar publicando psicografias, muitas com toques de nacionalismo e todas incentivando a caridade cristã. Em 1943, publicou o seu livro de maior sucesso, Nosso Lar, primeiro de uma série de romances em que conta, com base no relato de um espírito, como é a vida no mundo dos desencarnados.

Chico não era o único médium a ganhar projeção. Francisco Peixoto Lins, o Peixotinho, ficou famoso pela alegada capacidade de materializar espíritos e foi acusado de fraude após a divulgação de fotos em que está perto de entidades envoltas em material branco. Em Minas Gerais, o médium Zé Arigó dizia encarnar o espírito do médico alemão Doutor Fritz para realizar cirurgias mediúnicas em milhares de pessoas, usando facas e canivetes.

Mas Chico Xavier estava em outro patamar. Sua popularidade ajudou a consolidar uma tradição espírita genuinamente brasileira cujas origens, é claro, vinham desde Kardec e Bezerra de Menezes. Mas, nas suas palavras, o aspecto religioso da doutrina e o valor da caridade se tornaram a norma no Brasil, colocando em segundo plano a discussão científica, que tanto interessava aos intelectuais franceses e ingleses do século 19, afirma o professor Bernardo Lewgoy.

Quando apareceu no programa Pinga-Fogo, da TV Tupi, Chico Xavier estabeleceu a maior audiência da televisão brasileira até então. Alcançava ali o posto de maior figura religiosa em um país de maioria católica. “Chico era sinônimo de caridade, solidariedade e bondade. Valores que já estavam arraigados no povo brasileiro. Ele é uma espécie de santo espírita”, diz Renata de Castro Menezes, doutora em antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Até 2002, quando morreu, aos 92 anos, psicografou mais de 400 livros e cerca de 10 mil cartas.

Confrontado pelo midiático Padre Quevedo, fez das acusações uma ferramenta de divulgação do espiritismo. O jesuíta espanhol trouxe ao país conceitos da parapsicologia para interpretar o espiritismo e dizia que a mediunidade não envolvia espíritos, apenas criações do próprio médium. Quevedo desafiou Chico a falar a língua de espíritos estrangeiros, apontou inconsistências em obras psicografadas, viu farsa em fotos de espíritos e o chamou de “louco”. A mediunidade, de fato, não tem explicação científica. Mas pesquisas recentes mostram que o fenômeno não é sinônimo de doenças mentais, como a esquizofrenia, uma tese popular propagada pelos céticos.

O espiritismo nunca deixou de crescer no Brasil. Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) feito em 2010 apontou 3,8 milhões de espíritas declarados no país. Estima-se que outros 40 milhões sejam simpáticos a ideias espíritas, sobretudo à reencarnação. Segundo a Federação Espírita Brasileira, mais de 14 mil entidades espíritas estão em funcionamento, entre hospitais, escolas e centros, números que não deixam dúvidas de que a doutrina de Allan Kardec encontrou no país um singular e fértil terreno para prosperar.

Para saber mais

Chico Xavier: a vida, a obra, as polêmicas
Alexandre de Santi, Superinteressante, 2016

Cura Espiritual: uma investigação
Sílvia Lisboa, Superinteressante, 2015

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