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Heroína, o analgésico que mata

A morte vem aos poucos, com a destruição das defesas do organismo. Ou é instantânea, numa overdose; a cura, quando acontece, é lenta, cara e tão dolorosa que muitos viciados desistem no meio do caminho

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 jul 2018, 11h57 - Publicado em 31 out 1987, 22h00

Cláudia Bozzo

Para ficar viciado em heroína é fácil: basta uma ou duas semanas. Para livrar se do vicio é um pouco mais difícil: são necessários três anos de tratamento caro e extremamente doloroso. Não é à toa que apenas três em cada dez viciados conseguem abandonar a droga. Mais que o álcool. a maconha e a cocaína, eis aí a grande ameaça aos jovens deste fim de século.

Derivada do ópio e sintetizada a partir da morfina pela primeira vez em laboratório, em 1898. chegou a ser considerada uma solução para a cura dos viciados em morfina. Mas depois que se descobriu que ela é no mínimo três vezes mais poderosa que a própria morfina, sua fabricação foi proibida no mundo inteiro.

Como as outras drogas derivadas do ópio. a heroína age sobre os sistemas digestivo e nervoso central, onde os efeitos de torpor e tontura vêm associados, nos estágios iniciais, há um sentimento de leveza e euforia. Agindo como depressora do sistema nervoso central, alivia as sensações de dor e angústia. Segue-se um estado de letargia que pode durar horas. As primeiras doses podem provocar vômitos ou náuseas. Os sintomas desaparecem em pouco tempo mas voltam com violência quando a droga deixa de ser consumida, porque o organismo se acostuma rapidamente a ela.

Injetada diretamente no sangue, com o uso de seringas, a heroína produz efeitos que duram de duas a quatro horas. Como qualquer outra substância externa precisa de cúmplices no organismo – elementos químicos que funcionam como receptores – para propagar seu efeito. Estes encontram-se em determinadas regiões do cérebro, nos músculos e nos intestinos. Por ter a propriedade de combinar-se muito facilmente com os receptores, a heroína é considerada o protótipo das drogas geradoras de dependência. Um dos medicamentos usados no tratamento de viciados é a metadona. por sua propriedade de ocupar os mesmos espaços da droga nas moléculas receptoras. Mas seu uso é limitado pois também gera dependência.

As reações adversas são muitas. A heroína impede a produção de endorfinas, analgésicos naturais do organismo, porque a própria droga se encarrega de fornecê-los. As conseqüências não podem ser piores: quando o viciado tenta suprimir a droga, o organismo não volta automaticamente a produzir as endorfinas logo, nada ameniza a dor da pessoa. O mesmo processo se repete com outras substâncias.

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Segundo o psiquiatra Zacaria Borge Ramadam, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a heroína é extremamente poderosa porque “imita as funções e exagera os efeitos de uma substância sintetizada em nosso próprio organismo”. Os opiáceos, como a morfina e a heroína, agem sobre o sistema parassimpático, que em equilíbrio com o sistema simpático influi decisivamente no comportamento humano. O primeiro, com a adrenalina, regula as funções de ataque e defesa; e o segundo, com a acetilcolina, as funções de fuga, relaxamento, sonolência e descontração. E em especial sobre o sistema parassimpático que age a heroína, substituindo as propriedades da acetil-colina. Mais poderosa que essa substância, a heroína acaba por ocupar seu espaço no organismo; com o aumento das doses, simplesmente a acetil-colina deixa de ser produzida.

“Por isso o viciado sofre reações tão adversas, quando resolve abandonar a droga”, explica Ramadam. Seu organismo não tem como suprir a necessidade criada pela ingestão da heroína. Inibida a produção natural das endorfinas e da acetilcolina, ocorrem os terríveis sintomas da síndrome de abstinência quando a droga é suspensa. Tão difícil é largar o vício que, mesmo sabendo que corre risco de vida, o drogado muitas vezes acaba optando pela heroína.

Até a próxima dose, depois até outra e outra ainda. se estabelece um circuito que leva o dependente a viver apenas para a droga, onde o que pudesse haver de prazer no inicio é substituído pela necessidade pura e simples de mais heroína. Para a maior parte dos viciados, os sintomas de abstinência se manifestam assim que se aproxima a hora da próxima dose: incontroláveis bocejos que podem até provocar deslocamento do queixo: o nariz escorre e suores frios brotam por todo o corpo. Os sintomas aumentam de severidade nas 36 ou 72 horas seguintes. O intestino, antes bloqueado, volta a funcionar – junto com náuseas, vômitos. tremores musculares. dores nas costas. pernas e braços.

As vitimas não conseguem encontrar nenhuma posição confortável e experimentam crises de extrema ansiedade e desejo intenso de voltar à droga. Depois de 72 a 96 horas. os sintomas começam a diminuir. Embora os viciados venham a se queixar de insônia e letargia nas semanas seguintes. a maioria vence a pior fase das reações orgânicas em uma semana. Os sintomas continuarão a reaparecer e algumas sequelas como alterações na pressão arterial. persistirão anos a fio. As conseqüências psicológicas – depressão e vontade de voltar à droga – também continuam por um considerável período de tempo.

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O psiquiatra francês Claude Olivenstein, que há 25 anos cuida de drogados em seu hospital em Paris, adverte para outros obstáculos que o viciado enfrenta, até chegar à recuperação: “Rompida a dependência física. vem o sofrimento moral e a tentação de livrar-se dele voltando à droga. Existe ainda a pressão dos antigos companheiros de vicio e traficantes para que ele volte a se drogar”.

Por que uma pessoa se vicia? Olivenstein acredita que a adesão às drogas resulta da associação de três fatores: o produto, a personalidade e o momento sócio-cultural”. Na Europa. por exemplo, a heroína é ameaça maior que a cocaína, pela longa tradição de consumo daquela droga e também pelo seu baixo custo, em relação à coca. Já nos Estados Unidos, o grande aumento no consumo a partir da década de 60 foi conseqüência da guerra do Vietnã. Explica-se: os grandes centros produtores de ópio, a matéria-prima da heroína – ficam no sudeste asiático, no Laos. Birmânia e Tailândia. O Paquistão e a Turquia também são grandes produtores de ópio

Extraído há milênios da papoula (Papaver somniferum), o ópio é um alcalóide obtido mediante algumas incisões nas cápsulas da flor, que deixa escorrer um liquido viscoso. como o látex da seringueira. Ao secar, ele se transforma numa massa escura e pegajosa. Aí, ela é depurada em várias etapas, chegando aos viciados como um pó branco. Os opiáceos já foram usados como remédio para uma legião de problemas de saúde, desde insônia a mordidas de cobra, passando por crises respiratórios, cólicas, epilepsia e dificuldades urinárias. Mas o que produziram mesmo foi uma legião de viciados.

“No Brasil, ainda é desprezível o consumo de heroína”, informa o psiquiatra Miguel Roberto Jorge, da Escola Paulista de Medicina e membro do Conselho Federal de Entorpecentes, do Ministério da Justiça. Os grandes problemas que enfrentamos são o álcool, a maconha e agora a cocaína. ‘’Já existem no pais alguns centros de tratamento e recuperação de drogados. Mas são muito poucos ainda”, observa Miguel Jorge.

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Vítima de um sistema onde o único beneficiado é o traficante, o viciado em heroína. como os dependentes de outras drogas consumidas por via venosa, integra um dos grupos de alto risco no processo de contágio e transmissão da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). Normalmente. os viciados se agrupam em verdadeiras tribos e se entregam ao ritual do consumo sem cuidado algum com a higiene. Seringas contaminadas passam de mão em mão: muitas vezes não são lavadas nem em água corrente. entre uma aplicação e outra. Além da AIDS, o uso de seringas contaminadas traz doenças como a hepatite. tétano ou inflamações do endocárdio. a película que envolve o coração por dentro. A seringa industrial surgiu em 1893. Seu inventor, o inglês Alexander Wood, usou como cobaia a própria mulher, que morreu em conseqüência de uma overdose de morfina.

O estado de torpor e desinteresse causado pelo vício enfraquece os mecanismos de autodefesa da pessoa. Por isso é fácil o heroínomano exagerar na dose e morrer disso. Também é grande o consumo de drogas misturadas com talco, analgésicos. bicarbonato – ou qualquer outro pó que possa aumentar o lucro do traficante. O resultado é que, ao ter acesso a uma droga mais pura, o viciado corre o risco de morrer de overdose.

Para saber mais:

Drogas, uma viagem pelo corpo humano

(SUPER número 3, ano 6)

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Fuga do beco sem saída

(SUPER número 4, ano 6)

Os males de todas essas drogas

Além dos narcóticos, como a heroína existem outras categorias de entorpecentes. São os depressores, estimulantes e alucinógenos, além dos derivados da cannabis (maconha e haxixe), que não se encaixam a rigor numa única dessas categorias. Em qualquer caso, trata se sempre de substâncias capazes de criar alta dependência e tolerância. Algumas são usadas em medicamentos, como analgésicos, anticonvulsivos, tranqüilizantes ou moderadores de apetite. E de nenhum deles se sai sem problemas.

O álcool – a mais difundida de todas as drogas – é tóxico ao fígado pâncreas, coração e cérebro. Entre os efeitos crônicos, geralmente agravados pela desnutrição, o alcoólatra sofre um acelerado processo de envelhecimento, com a destruição dos neurônios – as células do cérebro. Rico em calorias vazias, que não alimentam, o álcool também leva à obesidade, fonte de outras doenças.

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Os estimulantes, entre eles a cocaína, causam euforia, excitação, hiperatividade, insônia, perda de apetite, aceleração do pulso e aumento da pressão arterial. A superdosagem pode trazer aumento da temperatura, alucinações, convulsões e morte.

A síndrome de abstinência é caracterizada por apatia, longos períodos de sono, depressão, desorientação e delírios paranóicos. Junto da cocaína, são estimulantes a anfetamina e a efedrina, essa última usada em crises de asma.

Os depressores do sistema nervoso central (barbitúricos. benzodiazepinas, solventes orgânicos, como aguarrás e cola de sapateiro, clorofórmio e éter) denunciam o viciado pela voz pastosa, desorientação e estado de embriaguez. A superdosagem inibe a respiração, provoca pele fria, pupilas dilatadas, pulso rápido e fraco, coma e possível morte. O clorofórmio e o éter podem em especial causar parada cardíaca. Já a síndrome de abstinência se manifesta em tremores, ansiedade, insônia, delírio e convulsões.

Dos alucinógenos, o mais conhecido é o LSD, que provoca ilusões e alucinações. alterando a percepção do tempo e da distancia. Seu consumo pode representar uma viagem sem volta, com irreparáveis danos psíquicos. loucura e morte. A maconha e o haxixe, fumados em cigarros, são drogas mais leves, mas nem por isso menos perigosas. Provocam aumento da freqüência cardíaca, congestão dos olhos e alterações na percepção. A maconha, como o álcool, traz euforia e relaxamento das inibições. Consumida regularmente, porém, tende a causar fadiga e alheamento da realidade. A abstinência induz à insônia e hiperatividade.

Por último, mas não menos tóxico, o cigarro: a nicotina com grande taxa de tolerância e dependência, vítima no mundo inteiro milhares de pessoas todos os dias com câncer do pulmão. enfisemas, problemas cardíacos. Ao contrário das demais drogas, castiga por tabela os não-fumantes, habitualmente obrigados a respirar o ar contaminado pela nicotina alheia.

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