“Os Estados Unidos iniciarão a instalação episódica de armas de longo alcance pertencentes à sua Força-Tarefa Multidomínio na Alemanha em 2026, como parte do planejamento para o posicionamento desses recursos no futuro”, diz a breve nota divulgada pela Casa Branca em 10 de julho de 2024.“Quando estiverem plenamente desenvolvidas, essas unidades convencionais [não nucleares] irão incluir SM-6, Tomahawk e armas hipersônicas em desenvolvimento, que possuem alcance significativamente maior do que as armas atualmente posicionadas na Europa.” Os SM-6 (Standard Missile 6) voam aproximadamente 500 km. Mas os Tomahawk têm autonomia de até 2.400 km – poderiam, portanto, ser usados para atacar a Rússia.O anúncio passou meio batido pela mídia ocidental, mas causou preocupação nos meios diplomáticos. Especialmente oito dias depois, quando veio a resposta: a Rússia ameaçou instalar mísseis nucleares em Kaliningrado, uma cidade de 500 mil habitantes à beira do mar Báltico que foi tomada pela Alemanha nazista, ocupada pela URSS ao final da Segunda Guerra Mundial, e hoje é um enclave russo.Fica bem na fronteira da Polônia, e a meros 500 km da Alemanha – que poderia se tornar um alvo, justamente por abrigar mísseis americanos. “Nem todas as armas deixam a Alemanha mais segura”, declarou o deputado Rolf Mutzenich, líder do SPD, o mesmo partido do chanceler (primeiro-ministro) da Alemanha, Olaf Scholz. Mutzenich, assim como outros membros do SPD, se manifestou contra a instalação de mísseis americanos em seu país.A tensão aumentou no final de setembro. A OTAN (aliança militar que reúne os EUA e 31 outros países, em sua maioria europeus) vinha cogitando fornecer os mísseis Storm Shadow, produzidos pela França e pelo Reino Unido, para a Ucrânia utilizar em sua guerra com a Rússia.Esses mísseis, que são lançados de caças, têm alcance de 550 km – permitiriam, portanto, que Kiev atacasse alvos bem dentro do território russo, não se limitando aos combates de fronteira, como hoje.Então a Rússia deu um tapa na mesa: anunciou que estava revisando sua doutrina nuclear. A versão anterior do documento, publicada em 2020, estabelecia que o país só empregaria armas nucleares para revidar um ataque, também nuclear, de outra nação. A nova doutrina mudou isso, passando a permitir o uso dessas armas em caso de “agressão contra a Rússia por estados não nucleares”, caso a ação seja “apoiada por uma potência nuclear”.Foi um recado claro à França e ao Reino Unido, que se enquadram nessa categoria (pois têm bombas atômicas). Traduzindo: se os Storm Shadow fossem usados contra a Rússia, Moscou poderia disparar armas nucleares contra alvos em território britânico ou francês.Isso acionaria automaticamente o temível Artigo 5 do estatuto da OTAN, que obriga os países-membros do bloco a revidar conjuntamente ataques a qualquer um deles. A Europa e os EUA estariam em confronto com a Rússia, iniciando a Terceira Guerra Mundial.Não aconteceu porque, aparentemente, a advertência russa surtiu efeito. Até a conclusão deste texto, o Reino Unido não havia autorizado o uso dos Storm Shadow pela Ucrânia – e o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, procurou minimizar a relevância dessa arma, um sinal de que ela pode ser deixada de lado.O mundo não chegava tão perto de um confronto entre potências nucleares desde a Crise dos Mísseis de 1962, quando a União Soviética decidiu instalar armas em Cuba – e a humanidade viveu os dias mais perigosos de todos os tempos.Dançando no precipício“EUA impõem bloqueio militar a Cuba após encontrar instalações de mísseis ofensivos; Kennedy pronto para enfrentamento com os soviéticos.” Essa foi a manchete, com três linhas em letras garrafais, do New York Times em 23 de outubro de 1962.Na noite anterior, o presidente dos EUA fizera um pronunciamento de 18 minutos, em cadeia nacional de rádio e TV, no qual descreveu o problema (a URSS estava instalando mísseis nucleares, com alcance de quase 2.000 km, em Cuba), anunciou um plano com sete etapas (a principal era o bloqueio naval da ilha) e ameaçou os russos: disse que as medidas dos EUA poderiam “ser apenas o começo” de algo maior, e que as forças armadas americanas estavam “preparadas para quaisquer eventualidades”, incluindo “uma resposta retaliatória total sobre a União Soviética”. “O custo da liberdade sempre é alto – e os americanos sempre o pagaram”, concluiu John Kennedy.O que ele não disse foi que, no ano anterior, os EUA haviam instalado mísseis nucleares em bases americanas na Itália e na Turquia, de onde poderiam facilmente alcançar a URSS.A instalação de armas soviéticas em Cuba (cujo governo os EUA haviam tentado derrubar em abril de 1961, com a fracassada invasão da Baía dos Porcos) era uma resposta a esse movimento, que dera aos EUA uma vantagem militar crucial: com seus mísseis posicionados perto da URSS, os americanos conseguiriam executar e concluir um ataque nuclear ao inimigo antes que ele pudesse reagir.Enquanto o discurso de Kennedy era transmitido, todas as forças militares americanas receberam a ordem de se colocar em DEFCON 3. A escala DEFCON (“condição de defesa”, em inglês) tem cinco níveis, que vão do 5 (estado normal) até o 1 (guerra iminente ou em curso). No nível 3, de prontidão elevada, a força aérea deve estar pronta para atacar em no máximo 15 minutos.No dia seguinte, a URSS respondeu. A imprensa russa divulgou uma longa mensagem, endereçada pelo líder soviético Nikita Khruschev a Kennedy, classificando o bloqueio naval como “um ato de agressão” dos EUA, que estavam “empurrando a humanidade para o abismo de uma guerra nuclear global”. “Nós não ficaremos meramente observando as ações de pirataria dos navios americanos.”Em 25 de outubro, a Strategic Air Command, divisão responsável pelos mísseis nucleares e bombas atômicas dos EUA, entrou em DEFCON 2. É o último degrau antes da guerra, e requer disponibilidade nuclear total.Os EUA colocaram aproximadamente 1.500 caças e 3.000 armas nucleares, incluindo mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs), em alerta máximo. Naquele mesmo dia, dois navios americanos tentaram interceptar um cargueiro soviético que se dirigia a Cuba, mas acabaram desistindo. Os EUA começaram a planejar uma nova tentativa de invasão da ilha.No dia 26, Khrushchev enviou uma mensagem sigilosa a Kennedy. “Sr. Presidente, não devemos puxar as pontas da corda na qual você fez o nó da guerra, porque quanto mais nós dois puxarmos, mais apertado ele ficará.” A crise prosseguiu.Fidel Castro enviou um telegrama a Khrushchev, sugerindo que Cuba disparasse os mísseis nucleares caso os EUA avançassem sobre a ilha. No dia 27, os soviéticos propuseram o seguinte: estavam dispostos a retirar seu arsenal de Cuba, caso os americanos fizessem o mesmo com os mísseis na Itália e na Turquia.Mas os EUA hesitaram – e, naquele sábado, a humanidade flertou três vezes com o apocalipse. Um avião espião americano U-2 foi abatido pela defesa antiaérea cubana.Outro U-2 entrou no espaço aéreo soviético e foi perseguido por caças MiG, motivando uma resposta perigosa: os americanos enviaram um grupo de F-102A armados com mísseis nucleares para escoltar e resgatar sua aeronave espiã.Um submarino soviético foi perseguido por navios americanos, e quase disparou um torpedo nuclear. Depois daquele dia terrível, em que o futuro do mundo esteve por um fio, Kennedy e Khrushchev aceitaram o acordo. Fim da crise.As superpotências entenderam que era preciso frear a corrida armamentista, e começaram a assinar uma série de tratados que limitavam o desenvolvimento, o teste e a posse de artefatos nucleares. Deu certo: o arsenal nuclear global, que chegou a bater em 70 mil ogivas, ficou muito menor [veja infográfico abaixo].O mundo viveu uma relativa tranquilidade nuclear até agosto de 2019, quando os EUA anunciaram que estavam abandonando um desses acordos: o Tratado de Mísseis Intermediários (INF), que bania mísseis convencionais e nucleares com alcance entre 500 e 5.500 km. Era graças ao INF, assinado em 1987, que os americanos haviam retirado boa parte de seus mísseis da Europa. Agora, estava aberta a porta para que eles voltassem.Os EUA alegaram que a Rússia não estava cumprindo o tratado – pois ela havia desenvolvido um novo míssil, o 9M730 Burevestnik. Não era uma arma qualquer.O Burevestnik leva a bordo um minirreator nuclear, que fornece energia para ele voar. Com isso, o míssil pode ficar no ar por muito mais tempo do que os modelos convencionais, o que representa uma vantagem estratégica: permite que ele faça trajetórias mais difíceis de interceptar.A Rússia negou que o Burevestnik (palavra em russo para “petrel”, uma ave migratória que voa sobre o oceano) violasse o tratado, pois seu alcance era inferior a 500 km. Não convenceu os americanos (por que um míssil de tão baixo alcance precisaria de um sofisticado sistema de propulsão nuclear?), e o clima azedou.Acuada pela expansão da OTAN, que havia incorporado mais 14 países desde o final da Guerra Fria (quebrando uma promessa feita pelos EUA aos russos) e se preparava para fazer o mesmo com a Ucrânia, a Rússia invadiu a vizinha em fevereiro de 2022.No ano seguinte, Moscou anunciou que estava “suspendendo” sua adesão ao New START, tratado que limitava a quantidade de ogivas nucleares que cada superpotência poderia ter. O acordo expira em fevereiro de 2026 – justamente quando os americanos, que estão desenvolvendo novas armas [veja quadro abaixo], pretendem instalar mísseis na Alemanha.“Estamos entrando numa fase prolongada de tensões extremas, incluindo uma corrida armamentista”, afirma Ulrich Kuhn, pesquisador do Institute for Peace Research da Universidade de Hamburgo e especialista em política nuclear.Isso deve ocorrer mesmo com a volta de Donald Trump à Casa Branca. Trump costuma ser considerado menos hostil a Moscou, e disse que vai buscar um acordo para encerrar a guerra na Ucrânia – o que o Kremlin vê com bons olhos.Mas isso não significa que seu governo vá impedir uma nova crise dos mísseis entre EUA e Rússia. Pelo contrário: foi justamente durante o primeiro mandato de Trump que os Estados Unidos abandonaram o tratado INF.Após décadas de equilíbrio entre as potências, o mundo vive um momento instável. Kuhn faz uma previsão tétrica: “As coisas provavelmente terão de piorar antes que possam melhorar”.