Revista em casa por apenas R$ 9,90/mês
Continua após publicidade

Índia: a fúria de Shiva

A Índia vem de uma tradição de independência geopolítica para se firmar como potência autônoma – contra a China. Para isso, está se armando rapidamente.

Por Fábio Marton
Atualizado em 3 jan 2020, 16h21 - Publicado em 5 ago 2019, 19h02

O radar detecta a presença inimiga se aproximando. Arcaicos MiG-21 – um projeto soviético de 1959 – espalham-se pelos céus da Caxemira. Contra eles, F-16s puro-sangue americanos, projeto de 1978. Começa o dogfight. Canhões são disparados, mísseis voam, contramedidas iluminam o ar como fogos de artíficio, tentando confundir os mísseis. Todo mundo erra o alvo. Menos dois: um MiG termina abatido, mas o piloto consegue se ejetar. Também vai ao chão um F-16 – e desse não sabemos nada. Seu país nega sequer o fato de estar nessa batalha.

SI_Exércitos_Índia_Index

Duas perguntas: 1) quem era a democracia, o lado com os caças russos ou americanos? 2) quando foi a batalha?
A democrática Índia operava os caças russos, que também eram acompanhados por Sukhoi 30, um projeto soviético de 1989 que só começou a operar em 1997. E o Paquistão – saído de sua última ditadura militar em 2008 – estava com os caças americanos, acompanhados por sua vez por JF-17s, espécie de clone chinês-paquistanês do F-16.

Foi em 27 de fevereiro deste ano. A invasão aérea paquistanesa, que pretendia atingir alvos em território indiano com bombas, era em retaliação a uma incursão indiana no dia anterior, que, segundo a Índia, destruiu um campo de treino do grupo jihadista Jaish-e-Mohammed. Responsável por um atentado com carro-bomba contra o Exército indiano, que deixara 40 mortos, 11 dias antes.
Ninguém declarou guerra. Mas, com troca de tiros de morteiro, fuzis e metralhadoras, o conflito continua vivo no instante em que este texto é escrito.

Paz pela espada

Esqueça Gandhi – e ele provavelmente não ficaria mesmo muito feliz com tudo o que vai adiante. A Índia é um país que historicamente foi epicentro de inúmeros conflitos, com uma vastíssima tradição militar. E, neste momento, nação extremamente armada e disposta a exibir seus dentes. Tem, afinal, o segundo maior Exército do mundo, o maior nas mãos de uma democracia, com mais de 1,3 milhão de soldados. E suas palavras são respaldadas por armas nucleares.

A posição da Índia mostra a complexidade das teias de alianças do mundo de hoje. Como desde a Guerra Fria, o país tenta se manter mais ou menos equidistante entre Ocidente, Rússia e Irã, entre o mundo árabe e Israel. A Índia tem como maior rival um país que já foi parte de seu território, nos tempos do domínio britânico. Por toda a história até 1947, o Paquistão era a parte noroeste da Índia, com maioria islâmica. Para grande desgosto de Gandhi, o país acabou dividido em dois, por um critério religioso, levando a uma troca massiva de populações – islâmicos para o Paquistão e hindus para a Índia. Esse inimigo, o Paquistão, é um aliado da Otan, mas a Otan não quer saber dessa rixa.

Continua após a publicidade

SI_Exércitos_Índia_Soldado

O segundo grande inimigo é ninguém menos que a China – à qual a Índia democrática tenta fazer frente, para achar seu nicho como grande presença militar na Ásia.
As Forças Armadas indianas são compostas exclusivamente por voluntários. Desses, um número desproporcional pertence à religião Sikh, grupo monoteísta igualitário surgido no século 16, que corresponde a apenas 1,72% da população indiana, pelo censo de 2011. Mas, estima-se, compõe até 33% da Força Aérea e 20% do Exército.

Os sikhs são facilmente reconhecíveis pelos turbantes azuis, apetrecho que outros indianos há muito abandonaram. Eles têm por tradição alistar o filho mais novo em uma das Forças Armadas. Entre suas obrigações religiosas, está a de andar armados com uma adaga, o kirpan, o tempo todo. Como os sikhs são em grande número, militares indianos em qualquer setor permitem o uso de turbante, em paralelo aos quepes à ocidental preferidos pelos demais.

Outra minoria famosa por seu talento guerreiro são os gurkhas, soldados nepaleses (de nacionalidade indiana) que construíram uma reputação lendária no período britânico, inclusive a Segunda Guerra. E os gurkhas, em sua tradição, usam kukhris, adagas curvas tradicionais, no lugar das facas mais modernas dos outros soldados.

O quintal da Índia

De sua posição de neutralidade, a Índia é armada por todo o resto do mundo. E já vinha sendo mesmo na Guerra Fria. Em seu arsenal, convivem equipamentos soviéticos, russos, americanos, europeus, israelenses e até brasileiros.

Continua após a publicidade

Em parte, porque a doutrina militar indiana é proclamadamente defensiva. No segundo teste nuclear do país, em 1998, foi feito um juramento solene de nunca usar armas nucleares primeiro, só em retaliação – mas ter armas suficientes para fazer dessa retaliação fulminante, um custo com o qual nenhum país iria querer arcar. Seu míssil mais moderno, o Agni VI, tem alcance de 12 mil quilômetros. Não poderia alcançar os EUA, mas China e Rússia, contra quem a Índia parece pender, estão cobertas.

A maioria das ações militares indianas são de anti-insurgência. No seu esforço de mostrar músculo e abrir seu espaço de influência no Oceano Índico, a Índia participa ativamente de esforços internacionais. No período do auge dos piratas da Somália (2007-2013), enviou 52 navios, tornando-se uma das maiores forças a combater a crise. Por meio de um acordo diplomático com Singapura, também é responsável por controlar as águas do Estreito de Malaca, ponto extremamente estratégico nas rotas entre Oriente e Ocidente – que a China preferia para si.

SI_Exércitos_Índia_Tanque
Ainda tem mais cara de propaganda que de avanço real, mas a Índia criou um tanque principal de batalha – coisa que o Brasil não conseguiu. E um dos maiores do mundo, maior que o Abrams dos EUA. O Arjun, com o nome do herói do épico Mahabharata, foi desenvolvido ao longo de 30 anos, com o projeto começando em 1974 e os primeiros veículos saindo da fábrica em 2004. A ideia era substituir completamente as importações, mas problemas mecânicos impediram a adoção em massa e, em 2010, após simulações de combate contra o russo T-90, o Exército preferiu comprar mais tanques russos. Em 2016, o Auditor geral da Índia detectou que apenas 124 deles estavam em condições de operar; o resto, incapacitado por falta de manutenção. Uma versão atualizada, o Arjun MK1-A, foi aprovada pelo Exército indiano em dezembro passado e encomendados modestos 112 deles. (Pallava Bagla/Getty Images)

E quase chegaram às vias de fato. A notícia foi pouco comentada na mídia brasileira, mas, por três meses e meio, entre 16 de junho e 28 de agosto de 2017, Índia e China estiveram à beira da guerra pelo Planalto de Dokhan, área no aliado Butão que a China clama parcialmente para si. Diante da tentativa de soldados chineses de construir uma estrada no Butão, a Índia mandou um contingente de 270 soldados, incluindo buldôzeres para destruir a estrada.

Em 15 de agosto, chegaram às vias de fato – de um jeito meio cômico. Uma patrulha do Exército indiano encontrou rivais chineses em território decisivamente indiano. Um lado começa a gritar para o outro, ninguém se entende, e daí a coisa passa para pedradas, socos e pontapés. Depois de duas horas, os chineses recuaram. Ninguém atirou.

Continua após a publicidade

O bom senso dos soldados manteve a batalha no patamar paleolítico. A crise terminou com ambos se retirando. A toda-poderosa China aceitar o empate é uma medida da força da Índia, uma superpotência militar frequentemente subestimada no Ocidente.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Oferta dia dos Pais

Receba a Revista impressa em casa todo mês pelo mesmo valor da assinatura digital. E ainda tenha acesso digital completo aos sites e apps de todas as marcas Abril.

OFERTA
DIA DOS PAIS

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.