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A engenharia do bife perfeito

Genética, nutrição e uma dose razoável de compaixão pelos animais. Tudo em nome de um objetivo saboroso: criar bois que só tenham carne de primeira

Por Marcos Nogueira
Atualizado em 16 set 2020, 19h05 - Publicado em 20 mar 2017, 13h24

A estrela do jantar merecia tratamento especial. Até improvisei uma churrasqueira sobre o fogão para receber 2182. Filho do touro australiano Equator e da vaca brasileira 5630, ele nasceu na fazenda Cabaça, município de Alcinópolis, Mato Grosso do Sul. Tinha exatos 681 dias de idade quando morreu, em 2 de outubro de 2016, com um tiro de ar comprimido na testa e cortes de faca nas artérias carótidas. Eu também estava lá, no frigorífico Olhos d’Água, em Ipuã – cidadezinha nos confins setentrionais do Estado de São Paulo. Acompanhei os últimos passos de 2182, enquanto ele era conduzido para o abate. Presenciei o processo até o momento em que sua carcaça, serrada pela metade, entrou na câmara fria do matadouro.
Agora 2182 estava na minha casa. Ou melhor, algumas partes dele: pedaços do braço e do lombo. O boi, lindo exemplar da raça australian angus – de couro negro e lustroso –, transformara-se no melhor churrasco que já comi na vida.

Mesmo quem gosta de carne sente algum desconforto ao ser confrontado com informações tão cruas. Mas os bifes não nascem em embalagens plásticas fechadas a vácuo: é importante aceitar o fato de que a dieta carnívora implica a morte de bois, porcos e frangos. Um bom boi se transformará em boa carne, enquanto um boi meia-boca tem carne de qualidade inferior. Conhecer o histórico do animal – sua genética, como ele foi criado e como foi abatido – é mais importante do que entender detalhes da procedência do vinho ou do queijo. Porque, além de consumir um produto melhor, você pode deixar de compactuar com crueldades desnecessárias.

Rastreabilidade total é a meta do pecuarista e engenheiro Antônio Ricardo Sechis, dono da marca Beef Passion. Isso significa acompanhar a vida do bovino, desde o nascimento até o momento em que chega às mãos de chefs do calibre de Alex Atala e Roberta Sudbrack. Para tanto, o criador se municia de planilhas com idade, histórico do peso, filiação, composição genética, todos os deslocamentos e até notas de comportamento de cada indivíduo do rebanho. O propósito de tanto controle é identificar onde ocorrem as eventuais falhas na cadeia produtiva – e aperfeiçoá-la para entregar ao mercado carnes com a melhor composição possível de proteínas
e gorduras.

Sechis é um pecuarista sui generis. Os currais de engorda de sua propriedade em Nhandeara – cidade natal do fazendeiro, no noroeste paulista – ostentam uma placa com a seguinte inscrição: “Spa Bovino”. Alto-falantes reproduzem música suave, e nebulizadores aspergem gotículas de água para aliviar o calor.

Atirada pelo fazendeiro, uma bola de pilates rola entre os bois. Eles não dão muita pelota para o brinquedo. E há mais equipamentos ali: um saco de areia, usado em treinos de boxe, faz as vezes de coçador de costas dos bovinos.
Enquanto mostra as instalações, Sechis negocia a compra de instrumentos específicos para esse fim. Um braço segura o celular enquanto o outro é insistentemente lambido por um animal identificado pelo número 1569. Sechis retribui com afagos e uma vigorosa massagem. Não é artimanha nem excentricidade.

A preocupação com o bem-estar do rebanho, entre outras práticas ambientalmente corretas, rendeu a Sechis a certificação da Rainforest Alliance. As carnes da Beef Passion estão entre as cinco no Brasil a receber o selo de sustentabilidade da ONG. “Não se trata de um selo orgânico ou garantia de qualidade”, diz Luís Fernando Guedes Pinto, gerente de certificação do Imaflora, em Piracicaba (SP). O instituto, responsável no Brasil pelo certificado sustentável, avalia os impactos ambientais da operação, o tratamento dado aos animais e as relações do produtor com seus funcionários.

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Além de fornecer música e coçadelas, ele monitora obsessivamente a alimentação, a saúde e o comportamento dos bois. Uma de suas prioridades é reduzir o stress dos animais em todas as fases da criação – o momento do abate é crítico.
O prêmio por tal esforço não é a admiração dos ativistas do PETA, mas uma operação eficiente e lucrativa. Todos os cuidados no manejo, somados à seleção genética e ao exercício do bom-senso, compensam o criador com um valor agregado descomunal. Ele fez naturalmente aquilo que a indústria da carne vem tentando há pelo menos uma década: demonstrar ao consumidor que não existe carne de segunda. E assim obter uma boa margem de lucro com todos os cortes, do filé ao acém.

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(Espaço Ilusório/Superinteressante)

Brasil, mostra tua vaca

Apesar do gosto do brasileiro por carne, nossa pecuária acumula um longo histórico de descaso com a qualidade. O clima quente nos obrigou a optar pelo gado zebuíno, resistente à canícula do interior do País – e às pragas que decorrem do calor. Ocorre que esses animais são originários da Índia, onde o consumo de carne bovina é quase nulo. Assim, de nada adiantou a sabedoria milenar indiana: peça de adoração religiosa, a vaca nunca foi objeto de seleção artificial para a alimentação humana.
Os bois de linhagem zebuína, como os das raças nelore e gir, se caracterizam pela corcova nas costas – o cupim – e pela distribuição peculiar da gordura. Nesses animais, as reservas energéticas se acumulam ao redor dos grupos musculares.

Formam capas de gordura como a do contrafilé e da picanha. Já nas raças taurinas, de origem europeia, o tecido adiposo se infiltra também nas fibras dos músculos. O resultado é o que se chama de marmoreio. A gordura entremeada, sob a ação do calor, irriga a carne. Preserva a umidade e acrescenta sabor. Nos zebuínos, a carne em si é magra e se resseca com facilidade.
Transplantados para a imensidão do Brasil, bois zebus encontraram fazendeiros desinteressados em trabalhar na melhoria da carne. As pastagens eram amplas, os bois, abundantes. Ganhava-se no volume. Disseminou-se por estas plagas a chamada pecuária extensiva, em que as reses são livres para pastar e caminhar – do nascimento até o dia em que sobem a rampa do caminhão para o abatedouro. Esse regime de criação resulta em bois magros e musculosos.

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A carne brasileira era dura, com alguns pedaços ainda mais duros. Filé mignon e picanha eram os únicos realmente macios. Churrasqueiros mais audazes exercitavam as mandíbulas com costela, fraldinha e maminha. O contrafilé era um bife passável. Patinho, alcatra e coxão mole precisavam de umas marteladas para romper as fibras. O resto – todo o dianteiro e boa parte do traseiro do boi – era carne de segunda.

O consumidor brasileiro aceitou esse padrão de qualidade até a virada do século, quando ficou barato viajar a Buenos Aires e provar um delicioso asado de bife de chorizo. Com o peso argentino em baixa, os criadores do país vizinho inundaram nosso mercado com carne boa.

Os pecuaristas brasileiros, então, precisaram correr atrás. Introduziram raças europeias. Ampliaram práticas de manejo, como o confinamento, em que o boi passa algumas semanas à base de ração para a engorda final. Também investiram em pesquisa tecnológica – e o papel da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) foi fundamental nesse particular.
Hoje o Brasil produz carne de boa qualidade. O investimento, contudo, encareceu o produto final. Para manter a lucratividade, o setor precisou repassar o aumento. Só que um boi tem apenas duas picanhas. O preço máximo que o consumidor se dispõe a pagar pela picanha já foi atingido.

A nova fronteira dos pecuaristas está na antiga carne de segunda. Mesmo os criadores de raças com grife, como a japonesa wagyu, só conseguem emplacar seus preços altos – para não dizer exorbitantes – nos tradicionais cortes “de primeira”. Para ganhar mais, o setor deve convencer o seu Zé e a dona Maria de que acém, coxão duro, peito, braço, músculo e rabada podem, sim, ser tudo de bom. A indústria, personificada em corporações como JBS (marcas Friboi e Swift) e Marfrig, tem feito campanhas mais ou menos explícitas nesse sentido. Mas ainda não ousa sugerir churrasco de acém ao seu Zé. No máximo, um hambúrguer.

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As carnes da Beef Passion estão um passo adiante. A empresa não tem pudor algum em vender cortes de dianteiro para churrasco, pois suas carnes “de segunda” são tão macias quanto uma boa picanha. E pratica preços condizentes com o poder aquisitivo de Higienópolis, bairro nobre paulistano onde a loja física da marca se instalou. Um naco de bistec passion, corte do ombro do boi, custa R$ 80 o quilo. Em açougues populares, o acém é vendido por 20% desse valor. Anatomicamente, estamos falando do mesmo grupo muscular bovino. Para fins gastronômicos, no entanto, são carnes bem diferentes.

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(Espaço Ilusório/Superinteressante)

A construção do boi

Estamos no século 21: uma fazenda de gado moderna possui centenas ou milhares de novilhos, um número semelhante de vacas reprodutoras e nenhum touro. Um boi não conhece o pai, muito menos o fato de que pasta com uma multidão de meios-irmãos. O sêmen de um único touro – que pode morar na Austrália ou no Japão – gera centenas de animais. O comércio internacional de sêmen possibilitou experiências com linhagens de prestígio: angus, hereford, wagyu e qualquer coisa que não seja zebu.

Sechis trabalha com duas bases genéticas. Uma é a do angus australiano, incomum no Brasil. A outra base genética é a do gado japonês wagyu, que fez fama mundial por causa do kobe beef: fatias finas de carne com altíssimo grau de marmoreio.
Essa genética, então, mistura-se à dos zebuínos. O sêmen do angus fertiliza vacas 100% nelore, resultando em animais de meio-sangue; as matrizes do wagyu são vacas dessa mescla angus-nelore. As cruzas têm a aparência física do pai: tanto o angus quanto o wagyu têm pelo preto e lustroso. O gado japonês é um tanto mais robusto. Os bois, porém, guardam características de gado zebu. A mais desejada é a tolerância ao calor brasileiro. “Existe um ou outro criador de raça pura”, diz Sechis. “Não dá certo: o animal se estressa demais.” Sob o sol do cerrado brasileiro, um boi campeão europeu equivale a uma Ferrari no trânsito de São Paulo.

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As etiquetas angus e wagyu jogam os preços lá em cima, mas não garantem a qualidade da carne. O trabalho do pecuarista apenas começa quando ele fecha a compra do sêmen de grife. No “spa” de Nhandeara, os bois recebem alimentação desenvolvida em conjunto com a Unesp em São José do Rio Preto. No momento, a ração do rebanho ganha o reforço da soja em grãos – o usual é dar farelo de soja, bem mais barato e menos nutritivo. Com a ajuda dos universitários, estão em experiência outras duas alternativas: girassol e linhaça. A ideia é comparar o perfil da gordura criada a partir de cada uma das sementes, adicionadas à dieta de bois separados em currais de teste.

O agrônomo Aloísio Cury se dirige ao curral dos animais alimentados com linhaça e chama o patrão. “Sente o cheiro de peixe?”, pergunta. O odor vem das fezes dos bois. Sechis assente e comenta: “É o ômega 3 da linhaça”. O empresário está empenhado em produzir carne com gorduras saudáveis – ainda assim, não deve incluir a linhaça na ração caso ela deixe o bife com gosto de sardinha.

Quanto ao bem-estar dos animais, ele envolve desde a higiene dos estábulos até a música napolitana que sai dos alto-falantes. “O boi não pode ficar com medo do homem”, afirma o pecuarista. Os cuidados para não melindrar a manada incluem mimos como os coçadores e as bolas para brincar, ração especial como recompensa cada vez que o bicho é separado dos amigos – para tomar vacina, por exemplo – e o manejo com os peões a pé. Homens montados a cavalo assustam a boiada. Por conta da tempestade hormonal que provocam, a tensão e o medo enrijecem a musculatura do boi. Por isso o abate é tão delicado.

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(Espaço Ilusório/Superinteressante)
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Do boi ao bife

O dia começa cedo no Frigorífico Olhos d’Água, em Ipuã. Mais cedo ainda para quem precisa acompanhar o abate dos bois da Beef Passion. Para chegar ao destino às 6h, hora em que o primeiro boi vai ao chão, deve-se sair de Nhandeara pelo menos três horas antes.

Todos os funcionários vestem branco e afiam seus facões enquanto conversam sobre banalidades. Os bois estão em um corredor chamado brete, atrás do abatedouro, sendo lavados pela última vez. Quando todos estão a postos, o primeiro da fila – o macho 2182 – é conduzido por uma moça que empunha uma bandeirola. Por determinação de Sechis, seus bois não são tocados com varas de choque elétrico. E apenas mulheres devem encaminhar os animais ao abate.

Quando um alçapão se abre para fechar em seguida, 2182 está só com um trabalhador do frigorífico. Este lhe aplica um tiro de ar comprimido bem no meio da testa. O animal desmorona , já em morte cerebral.É desnecessário descrever o restante do processo. Apenas vale mencionar que o local é limpo, sem odores fortes e sem gritos. Ainda assim, o dono da Beef Passion não está plenamente satisfeito. Ele aponta o compartimento em que o boi vai a nocaute: “Quando a comporta se abre, os outros podem ver todo o trabalho no abatedouro.”

Antônio Ricardo Sechis está de mudança para um novo frigorífico, em Fernandópolis, bem mais perto de Nhandeara. Lá, as coisas devem ser feitas ao seu modo. A música na antessala será a mesma dos currais. Uma curva estratégica vai impedir que a fila de bois antecipe o seu destino. Com essa estrutura, o criador pretende passar a produzir também embutidos de carne bovina. Além de iguarias improváveis, como patê de fígado e gordura para o uso em confeitaria.

Durante o abate em Ipuã, o pecuarista manteve o olhar fixo na planilha com as informações de cada bovino. “Nunca matei um animal na minha vida”, diz ele, que tem 25 bichos de estimação – 18 cachorros e sete gatos – no sítio em Nhandeara e em Brasília, onde mora a maior parte do tempo. “Uma ou outra galinha, para a minha mãe”, corrige logo depois.
Pode parecer contraditório, mas Sechis busca conciliar o amor pelos animais com a atividade de mercador de carne bovina. Todo o manejo de seu rebanho converge para a morte indolor – e, acima de tudo, inesperada – dos bois e vacas. “Eles morrem no auge da forma física. Pensam que vão tomar uma vacina e, de repente, bum! Tudo acaba”, comenta. “Eu gostaria de morrer assim.”

 

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