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O único estado dos EUA onde a poligamia não é crime

Em Utah, manter um casamento com mais de duas pessoas é uma infração tão grave quanto uma multa por excesso de velocidade. Entenda por quê.

Por Rafael Battaglia
16 abr 2024, 14h00

Em 2019, um levantamento do Pew Research Center estimou que 2% da população mundial vive em casamentos poligâmicos (ou seja, com mais de duas pessoas). 58 países permitem a prática, que é mais comum na África Subsaariana, onde 11% das pessoas são poligâmicas.

As leis variam. Em alguns países, apenas muçulmanos podem praticar a poliginia (tipo de poligamia em que apenas o marido pode ter mais de uma esposa) – uma passagem do Alcorão diz que homens podem ter até quatro mulheres. Algumas sociedades poligâmicas permitem ainda a poliandria: uma esposa e mais de um marido. Mas esse é um arranjo extremamente raro.

Nos Estados Unidos, a poligamia é crime desde 1882, e a pena pode chegar a cinco anos de prisão. Mas os casos não costumam chegar a nível federal – cada estado possui suas próprias leis e processos judiciais. E foi graças a essa autonomia que, em 2020, o senado de Utah descriminalizou a poligamia. Desde então, a prática é uma infração, no mesmo nível que uma multa por excesso de velocidade.

A decisão não veio do nada, claro. Tem a ver com a história e a composição demográfica do estado.

Em meados dos anos 1850, mais de 70 mil membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias se mudaram para Utah. Você talvez os conheça por outro nome: mórmons, que acreditam que Jesus ressuscitou também nos EUA.

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O primeiro líder desse grupo religioso foi Joseph Smith. Mas o missionário e seu grupo de fiéis nunca se deram bem com o governo americano, por uma série de motivos.

O primeiro, claro, foi religioso: mórmons se diziam donos da verdadeira palavra de Jesus, o que incomodava os protestantes. Havia disputas políticas também, já que Smith, um cara bastante carismático, queria ser presidente dos EUA.

Outro fator que despertava a antipatia em relação aos mórmons foi a poligamia. Smith e seu sucessor, Brigham Young, eram simpáticos à ideia e tentaram transformar isso em regra na Igreja. A sociedade americana, formada em grande parte por puritanos, desaprovava esse arranjo. Por conta disso, os mórmons passaram décadas sofrendo preconceito e perseguição.

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Em 1844, o grupo religioso decidiu que seria mais seguro reunir seus fiéis em um lugar longe da alçada do governo americano. Optaram por se fixar em Utah, no meio-oeste da América do Norte (e que, naquela época, ainda era um território do México). Em 1847, os primeiros mórmons se mudaram para lá. E a tradição se manteve: hoje, quase metade dos 3,2 milhões de habitantes de Utah é mórmon.

A poligamia não era totalmente aceita entre os mórmons do século 19, diga-se. Tanto que, em 1890, Utah (que aquela altura já estava anexado aos EUA) baniu a prática. Mas a decisão gerou dissidentes entre os fiéis que não queriam abrir mão desse estilo vida. A cisão gerou, inclusive, outros grupos, como a Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Nas décadas seguintes, mesmo com a proibição, diversos mórmons mantiveram o que eles chamam de “famílias plurais”. Tudo em segredo, claro. E uma dessas famílias foi decisiva para a descriminalização da poligamia.

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Joe, Vicki, Valerie e Alina Darger são uma família fundamentalista mórmon de Utah. Joe se casou primeiro com Vicki e Alina (que são primas). Valerie, que é irmã gêmea de Vicki, juntou-se depois. Eles têm ao todo 25 filhos e 17 netos.

Os Darger viveram discretamente até o começo dos anos 2000, quando uma das filhas de Joe e Alina morreu com apenas cinco meses de idade. Ela nasceu com um problema no coração. Mas, até que isso fosse descoberto, os Darger foram investigados por maus tratos – uma suspeita que surgiu do fato de serem poligâmicos.

Depois desse episódio, a família decidiu vir a público para tentar mudar a visão da sociedade sobre sua estrutura familiar. Lançaram um livro contando sua história, foram a vários programas de TV e se encontraram com políticos de Utah. O principal argumento deles era de que a poligamia não era exatamente uma garantia de liberdade religiosa, mas sim de algo mais abrangente: liberdade de expressão.

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Os Darger se tornaram ativistas da poligamia e inspiraram outras famílias que viviam em arranjos similares. Em 2021, a revista New Yorker produziu um mini-documentário sobre a história deles. Você pode assisti-lo neste link (ative as legendas).

Apesar da mudança legislativa, o debate ainda está longe de acabar. Em Utah, defensores da medida dizem que ela deu liberdade não apenas para famílias como os Darger – mas também para que pessoas possam relatar casos de abuso em casamentos poligâmicos (vários processos dessa natureza rolaram por lá nos últimos anos). Por outro lado, há quem discorde e diga que a descriminalização, na verdade, pode ter dado aos abusadores uma sensação maior de impunidade.

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