O Estado Islâmico e o Taleban são inimigos? Entenda ataque terrorista em Cabul
Sim. O Estado Islâmico, no papel, tem o desejo de conquistar toda a extensão original dos califados árabes medievais – e não considera o Taleban expansionista o suficiente.
Embora esses dois grupos islâmicos sejam similares em alguns aspectos ideológicos, eles são inimigos na prática – e o braço do Estado Islâmico que atua no Afeganistão é tão perigoso que o Taleban e os EUA chegaram a colaborar em algumas ocasiões (com muitas ressalvas, é claro) para combatê-los.
É por isso que o ataque terrorista suicida realizado na última quinta (26) em uma das entradas do aeroporto internacional de Cabul, capital afegã, preocupa não só os americanos como, também, o grupo islâmico que acaba de assumir o controle do país. No mínimo 170 civis afegãos morreram, além de 13 militares das forças ocidentais que organizavam a evacuação.
O Estado Islâmico de Khorasan (EI-K, ou Isil-K) – como é conhecida a célula do grupo que atua no centro da Ásia – adota um nome histórico: na Antiguidade e na Idade Média, era assim que os persas (e depois os califados árabes) chamavam seus domínios mais a leste, onde hoje ficam territórios de países como Afeganistão e Paquistão.
O EI-K surgiu em janeiro de 2015, de maneira independente do EI original, como uma dissidência do Taleban e de outros grupos menores. Só depois eles foram reconhecidos oficialmente pelos líderes no Iraque e na Síria, e desde então estima-se que já tenham recebido mais de US$ 100 milhões em investimentos da matriz.
O EI-K conquistou recrutou guerrilheiros de tribos locais e outros grupos armados, conquistou províncias no norte do Afeganistão e, embora em seu auge não tivesse mais de 4 mil membros (a estimativa é da ONU), em 2018 já era a quarta célula terrorista mais letal do mundo. No final de 2019, os americanos e seus aliados afegãos conseguiram render 1.400 combatentes do EI-K e suas famílias, mas o grupo não foi extinto.
“O Taleban conseguiu coibir o grupo atacando posições e pessoal do EI-K. Esses confrontos ocorreram com frequência em paralelo a operações terrestres e aéreas dos EUA e do Afeganistão, embora ainda não esteja claro até que ponto essas operações foram coordenadas”, escrevem no site The Conversation Amira Jadoon, uma especialista em terrorismo da Academia Militar dos EUA em West Point, e Andrew Mines, um pesquisador do programa sobre extremismo da Universidade George Washington.
O fato de que o Taleban aceita dialogar com os EUA, ainda que de maneira muito limitada, também é motivo de desgosto por parte da dissidência que formou EI-K.
O Tabelan – cujo nome significa, literalmente, “estudantes” – se estabeleceu no início da década de 1990 como uma das forças que disputaram o comando do Afeganistão após a retirada dos militares soviéticos. Muitos grupos de guerrilheiros jihadistas – que primeiro combateram a URSS e depois lutaram entre si – usavam armamento fornecido pelos EUA via Paquistão na década de 1980 com o objetivo de desestabilizar o regime comunista.
De acordo com o especialista Carter Malkasian, o Taleban foi especialmente eficiente em se sobrepor aos conflitos tribais porque sua hierarquia e organização se baseiam nos preceitos da religião islâmica, um dos únicos elementos que unificam as dezenas de etnias no território afegão – majoritariamente agrário e palco de intermináveis disputas locais. Eles tomaram o poder em 1996, implantaram um governo repleto de violações dos direitos humanos e foram derrotados em 2001 pela coalizão liderada pelos EUA. Agora, voltam a controlar o Afeganistão.
Ambições expansionistas
Simplificadamente, o EI-K acusa o Taleban de ter como objetivo fundar “apenas” seu emirado no Afeganistão, confinado às fronteiras que já existem. Na interpretação deles, a única maneira correta de agir é fundar um grande califado, governado por alguém que seja um legítimo sucessor político-religioso de Maomé, capaz de unificar os países islâmicos e submetê-los igualmente às leis do Corão.
Os califados eram, originalmente, os vastos impérios islâmicos da Idade Média, que em sua extensão máxima (entre os anos de 650 d.C e 750 d.C.) iam do atual Afeganistão, no extremo leste, à Península Ibérica, no extremo oeste, ocupando o norte da África, o Irã, o Oriente Médio, o Cáucaso e o centro da Ásia. Com exceção dos atuais Espanha, Portugal, Israel e Armênia, todos os territórios que eram domínios islâmicos nessa época seguem a religião majoritariamente até hoje.
Não foi sempre assim. Diferentemente do que o Estado Islâmico prega atualmente, os califados originais eram tolerantes a outras religiões. A maioria dos territórios ocupados pelos seguidores de Maomé, no começo, eram ex-possessões romanas e, por causa disso, tinham populações majoritariamente cristas (católicas romanas e ortodoxas) ou zoroastras (a fé da Pérsia). Judeus também eram comuns. Eram todos cidadãos livres. Ciência e arte prosperaram entre os arábes – muito mais do que na Europa católica.