Luz, câmera, Capão
Cansado de ver seu bairro ignorado por quem manda, este adolescente de 18 anos resolveu produzir as notícias - e cobrar a atenção - que o Capão Redondo merece. Conheça André Luiz, da TV Doc
“Eu gostaria de me levantar”, anuncia André Luiz, estudante do segundo colegial, enquanto se ergue da cadeira. Com uma câmera de vídeo nas mãos, ele caminha lentamente em direção à presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Na sala, estão outros 25 jovens, um de cada Estado brasileiro. Aquela era a primeira vez que André visitava Brasília e sua missão era representar São Paulo na cena dos jovens empreendedores do País. Enquanto André caminha, Dilma se levanta com a mão estendida e o semblante sério. Ele pede para outra pessoa continuar filmando, segura a mão da presidente com a direta e já embala em um abraço formal com a esquerda. Com a fala pausada, se apresenta: “Eu sou André Luiz da TV Doc Capão, a TV da inclusão”. Dilma parece perdida e é situada por André, “somos do Capão Redondo, a terra do [rapper Mano] Brown”, diz, contextualizando a região que fica na borda da zona sul de São Paulo.
Foi com a mesma formalidade gingada que André me recebeu em frente à estação Campo Limpo do metrô para me mostrar o Capão Redondo. Caminhamos em direção ao primeiro ponto de parada do seu percurso afetivo, o Cieja Campo Limpo. A sigla vem de Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos, e o espaço fica em uma casa de portão sempre aberto com um jardim florido na entrada. O Cieja Campo Limpo alfabetiza quem nunca teve acesso à escola, e é um dos lugares onde André ministra sua palestra “Pessoas, Hábitos e Lugares”. A tese central de sua fala: a favela é uma ideia que está muito na mídia, mas pouco na vida de quem produz a mídia. André também fala sobre o apelido de bairro mais violento do mundo, que o Capão Redondo carrega – justificável, já que a região tem registro de duas pessoas assassinadas por dia. “Só que o lado bom não aparece em lugar nenhum”, diz. Ele conta que criou a TV Doc justamente para contar as histórias positivas, invisíveis no bairro. A TV Doc é um canal do YouTube com uma grade semanal de três programas – entre eles, o Correndo Atrás de Quem Manda, que tenta arrancar compromissos de políticos e tomadores de decisão, para que tragam visibilidade para o Capão (oficialmente, os bairros do M’Boi Mirim e Campo Limpo). Uma das entrevistadas desse programa foi justamente a presidente da República.
André desenha sua fala com as mãos no ar, modula bem o tom e o ritmo da voz e conduz a conversa com Dilma com jogo de cintura. Agradece a cisterna construída para sua avó, no interior da Bahia. E emenda que agora só está faltando a internet. Diz que Dilma será reeleita porque ela olha para as bordas das cidades (o vídeo foi gravado em setembro de 2014). Nessa hora, a presidente solta uma gargalhada, lhe dá um abraço mais efusivo e diz “ele é jeitoso, né, gente?”, arrancando risos de todos. André então pede que a presidente visite o Capão Redondo quando for reeleita. E ela devolve “pode gravar aí, eu vou sim visitá-los lá no Capão”. Dilma diz isso com do��ura e bom humor. André é dos poucos repórteres do Brasil que conseguem revelar o lado doce da presidente.
Pegamos uma carona do Cieja até o próximo ponto de parada. Pela janela, a paisagem vai mudando. As ruas largas viram vielas tortuosas. O marrom do tijolo passa a ser a cor predominante das construções, com menos acabamento e lógica improvisada. Começamos a entrar no que o IBGE chama de habitações subnormais, e que conhecemos como favela. André nasceu na favela, e foi nela que experimentou o pior e o melhor de si. Quando criança, foi incentivado pela avó a ser coroinha na igreja. Isso fez com que virasse orgulho na família, mas ao mesmo tempo trouxe o peso de ter que dar o exemplo o tempo todo. Se falasse palavrão enquanto jogava videogame, André era repreendido. Isso criou um conflito interno. “Percebi que eu era um jovem confuso, semianalfabeto, não tinha amigos, nem ia a baile funk”, conta.
“Daí apareceram as drogas, para buscar ser aceito”, emenda André, com o semblante sério. Experimentou maconha, lança-perfume e cocaína, e o uso foi crescendo. Ainda assim, acreditava que tinha tudo sob controle. Até ficar claro que não: André se drogava todos os dias e deixou de ir à escola. “Meu primeiro estalo do que eu estava fazendo veio quando precisei segurar um algodão no nariz de noite em casa para não escorrer sangue, depois de um dia inteiro cheirando cocaína”, conta. André tinha 14 anos. Nessa altura, já praticava pequenos furtos dentro de casa, pegando moedas e vendendo a TeleSena da mãe para manter o vício. A família começou a suspeitar, até que um tio o flagrou no parque em estado alterado. A família o pressionou a largar os entorpecentes. Sem conseguir, o menino entrou em depressão. “Em junho de 2011 eu estava com o astral muito baixo [ele faz uma pausa de quase um minuto antes de completar a frase] tomando coragem para me matar mesmo.”
A oportunidade surgiu quando os colegas de rua apareceram com uma quantidade enorme de drogas. “Foi pó, lança e baseado o dia todo. Nem lembrava meu nome e fui andando para casa”, relata. “Acordei no meio da noite com o coração a mil, sem achar o ar, lágrimas saindo do olho e saí na viela para pedir ajuda”, conta André. Uma vizinha o levou para o hospital Campo Limpo. Um médico disse que, se tivesse demorado mais 5 minutos, ele teria morrido. Era 5 de julho de 2011: André tinha 15 anos e acabado de sobreviver a uma overdose. Foi o que bastou para querer se recuperar. Sua desintoxicação foi feita em um retiro da igreja. “Eu chorei tanto nesse retiro, mas tanto, que eu acho que [a represa de] Guarapiranga encheu naquele ano só com as minhas lágrimas.” De volta à rotina, André se sentiu rotulado como “o noia”. Ainda assim, recebeu ajuda de uma professora de matemática, que o convidou para participar de um projeto de rádio da escola. Quando ela escreveu na lousa que ele seria o diretor, André mal acreditou. “Ela me deu confiança quando nem eu mesmo mais confiava em mim.” Ele se engajou na rádio: preparava a programação, “que nada mais era do que a gente contando umas piadas e umas músicas no intervalo”, mas também passava lustra-móvel nos equipamentos, limpava a sala e fazia locução quando faltava alguém. Começou a perceber que gostava de ouvir e contar histórias. E começou também a reescrever a sua própria.
Com apenas 15 anos, André já havia sobrevivido a uma overdose. Aos 17, entrevistou a presidente da República.
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O vídeo oficial do evento onde André entrevistou Dilma foi filmado por uma câmera distante. Mas a cobertura da TV Doc é diferente. A começar pela introdução fictícia da entrevista, em que André é acordado pelos colegas da TV Doc, afoitos. Um deles entrega um crachá a ele e diz que sua missão é ir para Brasília falar com a Dilma, com uma música de suspense. Ele simula uma insegurança em relação à entrevista – “mas eu não tenho capacidade” – e é animado pelo colega com traquejos de pastor evangélico – “você pode, André, olha para mim, você pode!”. “Eu vou, por nós!” – e se despede o André super-herói. Chegando a Brasília, entra em cena o repórter da vida real. “Eu sou um personagem na TV Doc”, disse ele durante nossa entrevista. Seu personagem é uma espécie de Clark Kent às avessas, já que o poder é do repórter.
O estúdio da TV Doc fica na casa de André. Depois de uma volta inicial, caminhamos mais um pouco pelas vielas da favela, repletas de crianças brincando. Já era noite, o movimento de carros estava tranquilo e era possível ouvir as nascentes e riachos do Capão, todos canalizados. No alto de uma escadaria fica a casa de André. Passamos pela sala, cumprimentamos sua família, subimos uma escada em caracol e chegamos ao estúdio.
A TV Doc Capão – hoje apenas TV Doc – foi criada depois que o programa da rádio escolar de André foi descontinuado. Com a ajuda de um amigo, ele tirou todos os entulhos do quarto, cobriu o chão com uma lona escura e instalou ali seu estúdio de gravação e ilha de edição. “No começo a gente se reunia muito, mas não produzia tanto conteúdo, a galera ficava mais no estúdio brincando”, lembra. Com o tempo, começaram as pequenas externas até que a programação foi se desenhando.
Em 2013, o grupo foi aprovado pelo VAI, o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais, da prefeitura de São Paulo, e começou a cobrir eventos culturais da cidade. Foi assim que, na Virada Cultural seguinte, a TV Doc deu de cara com o prefeito Fernando Haddad caminhando tranquilão pela rua. “Saímos correndo com a câmera ligada, eu não sabia nem o que perguntar”, lembra André. A gravação teve pouco mais de um minuto. Marcaram uma conversa sobre o movimento jovem que acabou virando uma reunião mensal entre o prefeito e lideranças jovens de bairros periféricos. Foi depois da gravação com Haddad que tiveram ideia do quadro Correndo Atrás de Quem Manda. Gravaram com o senador Eduardo Suplicy e o coordenador nacional da juventude Gabriel Medina. “Mas não deu em nada”, lamenta, explicando que Medina saiu do cargo logo em seguida. Daí veio a conversa com Dilma. A presidente também não cumpriu o combinado e não foi visitar o Capão. Ainda assim, André não desanima. Sabe que a TV Doc pode fazer toda a diferença para o bairro onde mora. Pelo menos para a sua vida, ela fez.