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Verdades inconvenientes sobre a indústria dos remédios

Por trás de uma pílula há uma das indústrias mais lucrativas do mundo. Desconfiado? Fale com o seu médico. A SUPER falaria

Por Tarso Araújo
Atualizado em 16 Maio 2018, 13h19 - Publicado em 19 mar 2011, 22h00

A reportagem da SUPER encontrou Antônio* na recepção do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Camisa social branca, sapatos engraxados, gel no cabelo e a malinha preta ao lado. Simpático e comunicativo, explicou seu trabalho ao repórter: Antônio é representante da indústria farmacêutica. Sua tarefa é levar aos médicos informações sobre remédios. Mais que isso: convencer os médicos a receitarem as marcas que ele representa.

Nessa missão, nem sempre dados científicos são suficientes: além das amostras grátis, ele leva brindes e, às vezes, convites para almoços ou ofertas de viagens a congressos com tudo pago. Bom papo também conta. “O mais importante é o relacionamento. O médico receita o meu produto porque gosta mais de mim do que de outro representante”, diz ele.

Tanta proximidade pode parecer pro míscua, mas não é crime. Segundo o Código de Ética Médica, o problema começa quando, para fazer com que o médico goste mais dele do que dos outros, o propagandista propõe vantagens mais palpáveis. Dinheiro. “Se o médico ganha um cheque, ele se compromete a prescrever 3 vezes o valor em receitas de um medicamento”, exemplifica Antônio. Médicos que não quiseram se identificar confirmam a prática. “Já recebi propostas de viagens em troca de prescrever remédios”, diz um psiquistra. As farmácias asseguram o trato. “Há farmacêuticos e balconistas que são pagos para xerocar a receita ou anotar o nome do médico”, diz Antônio. É o que eles chamam de “caderninho”, escala final de um ciclo de propaganda, acordos e troca de interesses em que ganham médicos, farmacêuticos e os donos de laboratório.

Entre os profissionais de saúde, histórias como essa são tão conhecidas quanto difíceis de comprovar. Os representantes das indústrias afirmam agir dentro da lei. “Nós temos o direito legítimo de promover nossos produtos, como qualquer outro setor da economia”, afirma Gabriel Tannus, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, que tem entre seus associados 8 dos 10 laboratórios que mais faturam no mundo.

Como qualquer outro setor da economia, a indústria farmacêutica visa o lucro. Nada de errado com isso, e tem dado certo: em 2008, ela movimentou US$ 725 bilhões – o Brasil faturou US$ 12 bilhões. Só a fabricação da aspirina movimenta US$ 700 bilhões por ano. Seu princípio ativo, o ácido acetilsalicílico, é considerado um dos produtos mais bem-sucedidos da história do capitalismo.

Para que isso seja possível, é preciso saber vender. “A indústria farmacêutica é tudo, menos uma instituição filantrópica”, diz Fernando Italiani, autor do livro Marketing Farmacêutico. Fernando já foi gerente de marketing de laboratórios e hoje dá cursos de vendas e planejamento estratégico para funcionários de laboratórios e farmácias.

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Um dos tópicos-chave de suas aulas é a fidelização dos médicos. Para Fernando, aquela tática clássica de dar brindes, viagens e inscrições em congressos já está ultrapassada. “Os médicos estão mal-acostumados. Isso já não diferencia nenhum laboratório”, afirma. Fernando propõe investir em educação. “Muitos médicos não têm formação em gestão nem em finanças. Fornecer esse conhecimento é ouro. Quando eu percebi que uma viagem para a Costa do Sauípe não tinha dado certo, fiz eventos focando o conhecimento técnico. Gastei 1/3 do valor e tive o dobro do retorno.” É o que Fernando chama de marketing “sustentável”: mais difícil de ser copiado e com resultado garantido e prolongado.

O que acontece na indústria farmacêutica é o que acontece em qualquer grande negócio em que a recomendação de alguém é fundamental para o êxito do negócio: para que toquem sua música, as gravadoras assediam as rádios; para que falem bem de seu produto, as empresas cercam os jornalistas de regalias. É a prática conhecida como jabá. Não necessariamente a oferta de gentilezas influenciará o dj, o jornalista ou o médico. Mas convenhamos: se não servisse para nada, as empresas não gastariam com isso. Às vezes, o profissional é influenciado sem perceber. Em 2001, uma pesquisa feita com 105 médicos do Centro Médico para Veteranos de Guerra de São Francisco, na Califórnia, mostrou que 61% dos entrevistados não se consideravam influenciados pela promoção da indústria. “É difícil incutir uma consciência crítica nos médicos para que eles não se deixem seduzir por essa propaganda”, diz Roberto Luiz D’Ávila, corregedor do Conselho Federal de Medicina. Quando isso acontece, a base de todo o tratamento é colocada em risco: a confiança no médico. Com o agravante de que, no limite, o que está em risco não é o dinheiro desperdiçado com um cd ruim. É a sua saúde.

Mais complicado ainda é a relação entre farmácias e laboratórios. No ano 2000 foi instaurada uma CPI dos Medicamentos que analisava, entre outras coisas, a prática da “bonificação”, uma manobra acordada entre laboratório e farmácias que permite às lojas lucrar 3 vezes mais que o permitido pelo Ministério da Fazenda. A expressão “remédio bonificado” também pode ser compreendida como a comissão, em espécie ou em agrados, paga ao balconista ou farmacêutico por unidade vendida. Sabe quando o farmacêutico lhe indica um remédio mais em conta de outro fabricante? Pois bem, talvez ele não esteja interessado só em ajudar o seu bolso.

O x da questão
Os produtos da indústria farmacêutica são especialmente difíceis e caros de ser fabricados. Até um remédio chegar à farmácia, são consumidos cerca de 15 anos com pesquisa (ver infográfico) e um investimento quase 3 vezes maior que a média da indústria, segundo estudo publicado na revista Nature em 2005. É o que se chama de negócio de alto risco: de 10 mil compostos que entram para ser pesquisados, apenas um é comercializado.

É preciso ainda considerar a quebra da patente. Depois de 20 anos, qualquer empresa pode usar a fórmula, sem ter gasto um centavo em pesquisa. Como se não bastasse, em 1999 chegaram os genéricos, um concorrente desleal sob o ponto de vista dos laboratórios que investem em pesquisa: além de os seus gastos serem muito menores, eles não são submetidos aos mesmos controles de qualidade. “No caso dos genéricos, o teste é feito em um único lote. Uma vez recebida a autorização para vender, os lotes subsequentes não precisam ser analisados”, diz Anthony Wong, chefe do Centro de Toxicologia do Hospital das Clínicas de São Paulo. No fim das contas, quando um genérico chega à prateleira, a venda do remédio original cai cerca de 50%. Para sobreviver, é preciso mexer no preço: o antibiótico amoxicilina, por exemplo, ficou 45% mais barato desde a chegada do primeiro genérico. Não é difícil entender por que cada venda precisa ser tão batalhada.

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Para não perder mercado, os grandes fabricantes de remédios passaram a produzir também os seus genéricos. Assim, saem na frente dos concorrentes e economizam na hora de promover seu produto. Lembra do homem da maleta? Ele aproveita a visita ao médico para falar também dos genéricos da sua empresa. “Nós fazemos um trabalho de fortalecimento da marca que não foca no medicamento especificamente, mas na instituição. Investimos na exposição da marca, para que ela fique na cabeça do médico”, diz Telma Salles, diretora de relações externas do laboratório EMS.

Primeiro os médicos
Para ter uma ideia, de 30 a 40% de tudo o que se ganha com a venda de remédios é reinvestido em ações de marketing, a maioria destinada à classe médica. Além de conquistar a simpatia dos doutores, os representantes procuram identificar os formadores de opinião e convidá-los para dar palestras aos seus colegas falando sobre a eficácia de um novo produto.

Em 2007, o jornal The New York Times publicou um depoimento do médico Daniel Carlat contando sua experiência como garoto-propaganda de um laboratório. No ano de 2001, Carlat, psiquiatra e professor da Universidade de Boston, recebeu uma proposta da Wyeth, uma das 10 maiores indústrias farmacêuticas do mundo: discutir com médicos de sua cidade o efeito do Effexor XR, um novo antidepressivo da companhia. Ele ganharia US$ 750 por apresentação. Carlat já havia prescrito o remédio para alguns pacientes e sua avaliação era de que ele funcionava igual a outros da mesma categoria.

Decidiu aceitar a proposta e viajou – tudo pago – para um encontro de treinamento em Nova York. No hotel, recebeu um folder do encontro, convites para vários jantares e dois ingressos para um musical da Broadway. Ao voltar para Boston, apresentou o remédio durante um ano para médicos em clínicas e hospitais.

Durante esse período, Carlat aumentou em mais de 20% sua renda anual. Sentia-se muito à vontade para defender o Effexor, até que teve acesso a dados de pesquisas que mostravam uma incidência comparativamente alta de hipertensão em pessoas tratadas com a droga. Foi quando ele parou para pensar: quantos pacientes haviam sido prejudicados por sua causa?

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Os conselhos de medicina acreditam que esse drama de consciência pode ser evitado se o médico manifestar o conflito de interesse antes de cada apresentação. Em outras palavras, avisar à plateia se ele ou o estudo é financiado por algum laboratório. “Isso é fundamental para uma interpretação crítica de qualquer estudo”, afirma Reynaldo Ayer, da Comissão de Ética do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Só não está determinado o que fazer em relação ao paciente. Você já foi informado por algum médico de que ele recebe para divulgar entre colegas o remédio que está receitando para você? Ou que recebeu uma viagem de presente do fabricante? E, se fosse, continuaria acreditando nele?

Conflitos desse tipo estão presentes também entre pesquisadores, que podem ganhar centenas de milhares de dólares por ano para conduzir estudos e prestar consultoria para a indústria. Revistas e jornais científicos procuram garantir sua credibilidade acrescentando no início do estudo o nome do laboratório patrocinador, mas entendem que não dá para prescindir da grana dos laboratórios em um processo de pesquisa. “Eles são uma fonte de recursos indispensável”, diz Florentino Cardoso, da Associação Médica Brasileira. Até aí, tudo bem. Só não vale omitir dados importantes, como os efeitos colaterais de um princípio ativo, para favorecer o lançamento de um produto. Foi o que aconteceu no caso do antidepressivo Paxil. Em 2004, a Glaxo Smith Kline foi processada nos EUA por não publicar informações que demonstravam que o remédio aumentava a ocorrência de pensamentos suicidas em pacientes com menos de 18 anos. Os fabricantes sabiam disso desde 1998.

Depois você
Tanto esforço destinado aos médicos tem uma explicação muito simples: a maior parte dos remédios não pode ser anunciada diretamente a você. No Brasil, a propaganda de medicamentos possui uma legislação mais rigorosa que a de outros produtos. Só os medicamentos de venda livre, como analgésicos e ácidos para indigestão, podem ser comercializados sem prescrição médica e anunciados ao consumidor. Esses remédios são responsáveis por cerca de 30% do faturamento da indústria no Brasil. Os outros 70% vêm dos “medicamentos éticos”, aqueles com a advertência “Venda sob prescrição médica” e que só podem ser anunciados para os médicos.

Para o público leigo, os laboratórios usavam estratégias menos diretas, como investir na campanha sobre uma determinada doença para aumentar a demanda por medicamentos (campanhas sobre impotência, depressão, obesidade ou diabete), mas esse tipo de propaganda foi proibida pela Anvisa no ano passado. Resta usar as técnicas de marketing para tornar a imagem de um remédio mais atraente. Como aconteceu com o Prozac nos anos 80. A pílula trazia um novo princípio ativo para o combate da depressão, é verdade. Mas essa não é a única explicação do seu sucesso: depois de contratar uma agência de imagem, o laboratório Eli Lilly decidiu dar um nome de fantasia ao produto – algo sonoro, que caísse bem em qualquer língua. Parece bobagem, mas até então a maior parte dos medicamentos tinha nomes derivados dos princípios ativos, difíceis de memorizar e associados a efeitos colaterais. A chegada de Prozac transformou o batizado de um remédio em um estudo complexo: Viagra, por exemplo, é composto de “Vi”, de vitalidade, e “agara”, de Niagara falls, que remete a força descomunal, volume de águas incontrolável e ininterrupto, características desejadas por pacientes com disfunção erétil.

Some ao marketing o aumento do acesso ao sistema de saúde e o resultado é claro: a gente nunca tomou tanto remédio. E isso é bom. “As vacinas e os medicamentos são os principais responsáveis pelo prolongamento da nossa vida”, diz Anthony Wong. Mas também há outra notícia: a gente nunca tomou tanto remédio sem precisar. A OMS estima que metade do consumo mundial é feito de forma irracional, ou seja, em dose, tempo ou custo maior que o necessário. Na lista das possíveis causas estão incluídas políticas de preços e atividades promocionais irregulares e falta de informação e educação sobre o uso correto de medicamentos.

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É injusto, porém, colocar a culpa só nos laboratórios. “O aumento no consumo de medicamentos é um problema sociológico. Hoje, as pessoas buscam soluções imediatas para tudo, tendo como objetivo a felicidade”, diz Wong. “E não há nada mais imediato do que um remédio.”

Misturando tantos fatores de risco, uma dor de cabeça vira uma enxaqueca das bravas, bem difícil de tratar. Mas algumas iniciativas têm sido tomadas para melhorar esse prognóstico. Uma delas é a participação ativa das empresas na revisão do código que regulamenta a publicidade do setor, ao lado da Anvisa e dos Conselhos de Medicina e de Farmácia. Outra é o aumento do número de laboratórios envolvidos em ações sustentáveis e em campanhas preventivas. É um comprimidinho da receita. Pra engolir os outros é preciso uma dose de prudência e bom senso. Ou você pode se intoxicar.

338 multas foram aplicadas pela Anvisa em 2007 como punição a propagandas ilegais de medicamentos.

0,06 do montante investido em marketing pelas indústrias farmacêuticas em 2006 seria suficiente para pagar a punição.

A pílula do poder

– 61% dos médicos americanos não se consideram influenciados pelas promoções da indústria.*
– 84% deles acreditam que seus colegas, sim, são facilmente convencidos.*
– 30% de todos os casos de envenenamento registrados no Brasil em 2007 foram provocados por remédios.
– 70% das despesas do SUS decorrem da assistência às doenças que poderiam ser tratadas com mudança de comportamento.
– 70% do faturamento da indústria farmacêutica vem dos medicamentos vendidos sob prescrição médica.
– 23% dos balconistas de farmácia recebem bonificação pela venda de remédios similares**.
– 5% recebem o bônus pela venda dos genéricos**.

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– Pesquisa feita com 105 médicos do Centro Médico para Veteranos de Guerra de São Francisco, na Califórnia (2001).

– Pesquisa da Anvisa feita em 1 231 farmácias de 24 estados.

 

Top de vendas
Remédios contra dor e impotência são os que mais faturam no Brasil

1. DORFLEX – Dor

2. CIALIS – Impotência

3. NEOSALDINA – Dor

4.VIAGRA – Impotência

5. LIPTOR – Colesterol alto

6. TYLENOL – Dor e febre

7. CRESTOR – Colesterol

8. DIOVAN – Hipertensão

9. YASMIN – Contracepção

10. NEXIUM – Refluxo

 

Do tubo de ensaio à cura
A busca por um novo remédio é um funil que pode consumir 15 anos de pesquisa e US$ 1 bilhão

1. Planejamento e pesquisa:

De 5 mil a 10 mil compostos são selecionados para entrar em estudo.

Duração média: um ano.

2. Testes pré-clínicos:

Cerca de 250 substâncias são selecionadas para esta etapa, onde se testa sua eficácia e a segurança em animais. Se os resultados forem bons, são feitas pílulas que passarão pelo conselho de ética.

Duração média: 5 anos.

Investimento das etapas 1 e 2: US$ 500 milhões (50% do orçamento).

3. Testes clínicos:

Os poucos remédios que passam para esta fase são testados em pessoas, para verificar segurança, eficácia, interações com outras substâncias, dosagem e efeitos colaterais.

Duração média: 8 anos.

Investimento: US$ 500 milhões (50% do orçamento).

4. Aprovação:

O laboratório solicita o registro do remédio na agência reguladora de medicamentos (no caso do Brasil, a Anvisa).

Duração média: 6 meses.

Investimento: US$ 50 milhões (5% do orçamento).

5. Comercialização:

Depois de 15 anos e cerca de US$ 1 bilhão, apenas um remédio chega às prateleiras das farmácias. No processo de distribuição ainda serão gastos US$ 150 milhões (15% do orçamento).

TEMPO DE PESQUISA – 15 ANOS

INVESTIMENTO – US$ 1 BILHÃO

Para saber mais

A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos
Marcia Angell, Record, 2007.

Origens e Trajetória da Indústria Farmacêutica no Brasil
Monica Musatti Cytrynowicz (org.), Narrativa Um, 2007.

 

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