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Os mistérios do relógio biológico

À noite, a digestão muda – e a comida pode engordar mais. A pele se renova e o sistema imunológico trabalha melhor enquanto dormimos; o coração desacelera. Quase todas as funções do corpo têm seus horários. Eles são coordenados por uma bolinha de 20 mil neurônios bem no meio do cérebro – e pelo Sol. Entenda as novas descobertas da ciência sobre esse mecanismo.

Por Bruno Garattoni e Leonardo Pujol (colaborou Ana Carolina Stobbe)
Atualizado em 28 out 2022, 14h16 - Publicado em 15 jul 2022, 10h22

Texto Bruno Garattoni & Leonardo Pujol (colaborou Ana Carolina Stobbe)

Ilustração Gustavo Magalhães Design Natalia Sayuri Lara

A

Aquele julho foi tenso. O ano era 1962, e o mundo parecia prestes a explodir. Três países africanos declararam independência, a União Soviética começou a instalar mísseis em Cuba, e os EUA detonaram três bombas atômicas: uma delas, a Starfish Prime, em pleno espaço sideral, a 400 km de altitude.

Mas para o geólogo francês Michel Siffre, de 23 anos, era como se nada daquilo estivesse acontecendo. Ele estava em uma caverna nos Alpes franceses, onde passaria 60 dias completamente isolado. Siffre queria ver como o corpo humano reagiria ao escuro.

A Guerra Fria e a corrida espacial haviam levantado uma dúvida crucial, que se aplicava tanto às viagens dos astronautas quanto à capacidade da população de sobreviver em bunkers antinucleares: se for privado da luz do Sol, o corpo humano continuará a funcionar em ciclos de 24 horas, em harmonia com a rotação da Terra?

A experiência foi angustiante. Cento e trinta metros abaixo da superfície, Siffre não tinha acesso à luz solar ou calendário. A escuridão só não era total porque havia um pequeno gerador alimentando a lâmpada que iluminava o acampamento, onde a temperatura média era de 3°C e a condensação deixava os pés de Siffre sempre úmidos e frios.

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Para piorar, pedaços de gelo e pedras se soltavam do teto com frequência. O francês era monitorado à distância por uma equipe de pesquisadores, que falavam com ele três vezes por dia – Siffre recebia ligações deles, por meio de um intercomunicador instalado na caverna, quando acordava, comia e antes de ir dormir. Conversavam sobre diversos assuntos, exceto sobre o que pudesse dar a dimensão do tempo.

Ilustração de uma mulher rodeada de plantas e borboletas.
Nosso relógio central é o núcleo supraquiasmático: uma estrutura que reage à luz, e está presente em muitas espécies animais. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Com o correr dos dias, percebeu-se que Siffre estava vivendo num ciclo diário de 24 horas e 30 minutos. Nada muito anormal, certo? Só que essa era uma média: na prática, o tempo que ele passava acordado antes de cada período de sono variava muito, de seis até 40 horas.

Seu relógio biológico estava completamente maluco. Em 14 de setembro, quando Siffre saiu da caverna, ele ficou desnorteado: tinha certeza de que apenas um mês havia se passado, e achava que ainda era 20 de agosto.

A experiência provou que o corpo humano realmente precisa da luz do dia e da escuridão da noite para regular seu ritmo interno. Décadas mais tarde, nos anos 1990, um estudo com pessoas completamente cegas (1) constatou que a maioria delas tinha ciclos anormais de sono e vigília – como os olhos não captavam luz, o corpo não tinha com o que sincronizar.

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Essa distorção pode alcançar níveis extremos. Em 1972, Siffre novamente se meteu numa caverna escura, desta vez no Texas. Ele acabou passando seis meses enfurnado – e seu corpo chegou a trabalhar em ciclos de 48h (36h de vigília, seguidas por 12h de sono). Acabou transtornado, com sérios problemas psicológicos.

Todos os seres vivos, inclusive os mais simples, como bactérias e fungos,  têm algum tipo de relógio biológico. Até animais que vivem no fundo de cavernas ou nas profundezas do oceano, onde há pouca ou nenhuma luz, parecem observar ciclos de atividade e repouso de aproximadamente 24 horas.

Por isso, esse mecanismo também é chamado de sistema circadiano – termo originado do latim circa diem, que significa “cerca de um dia”. Sabe por que o relógio biológico é onipresente na natureza? Porque ele é necessário. Nenhum organismo consegue trabalhar a 100% de forma constante.

Primeiro, porque precisa de um tempo de inatividade para reparar os tecidos desgastados pelo uso. Segundo, e mais importante, descansar economiza energia. Se um ser ficasse ativo o tempo todo, precisaria de muito mais calorias (alimento) para se manter, o que dificultaria bastante sua sobrevivência.

Dormir também dá uma trégua ao corpo, e permite que ele aproveite a tranquilidade metabólica da noite para executar processos específicos – o hormônio do crescimento, por exemplo, só é liberado enquanto estamos dormindo.

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Ou seja: o sistema circadiano é uma grande vantagem evolutiva. Nos humanos e nos demais mamíferos (e até em répteis, como os lagartos) ele é controlado pelo núcleo supraquiasmático (NSQ), um conjunto de 20 mil neurônios (quase nada perto do total presente no nosso cérebro, 86 bilhões). É uma bolinha bem no centro da massa cinzenta, perto do hipotálamo, que responde a vários fatores. O principal é a luz.

No fundo do olho fica a retina, que tem uma camada de células fotorreceptoras: elas captam a luz e a convertem em sinais elétricos. A maioria manda sinais para o córtex visual, que os interpreta e forma as imagens que enxergamos. Mas algumas dessas células, as “fotorreceptoras atípicas”, fazem outra coisa: elas enviam sinais para o NSQ – que usa a informação para saber se é dia ou noite.

Ilustração de um homem com vários pontos brilhantes no corpo e na frente de vários relógios.
O organismo tem relógios se espalhados pelos órgãos. Eles são independentes – e mantêm o ritmo até fora do corpo. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Só que no mundo moderno, quase nunca é realmente noite. Olhe pela janela de casa e você verá que, mesmo no auge da madrugada, o céu fica bem iluminado (inclusive quando é Lua nova, e ela está quase invisível).

É a poluição luminosa – que, junto com as mudanças na rotina, força nosso relógio biológico a trabalhar de uma forma diferente da natural, aprimorada ao longo de milhões de anos de evolução.

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“Criamos a civilização, as sociedades, e fizemos avanços incríveis que, de forma irônica e efetiva, colocaram os nossos relógios internos contra nós”, escreve o psicólogo Michael Breus em seu livro O Poder do Quando (2017). Metrópoles, lâmpadas, telas, smartphones. A luz artificial tornou a vida mais próspera, interessante e divertida. Mas também carrega um lado obscuro.

N

Na noite de 4 de fevereiro de 2011, por volta das 23h30, uma linha de transmissão entrou em pane e provocou um apagão elétrico em todo o Nordeste do Brasil. Foi um dos maiores blecautes da história do país, durou toda a madrugada, e até hoje é lembrado por uma visão deslumbrante.

Sem ventilador e ar-condicionado, muita gente foi à rua para fugir do calor. Ao olhar para o céu, a população das capitais foi surpreendida por um incrível manto de estrelas, que elas nunca tinham visto – pois haviam passado a vida toda imersas na poluição luminosa.

Em metrópoles densas como Tóquio ou Singapura, a situação é ainda mais aguda: a eletricidade literalmente extinguiu a noite. Nesses lugares, a população vive sob um reflexo tão brilhante que os olhos nunca chegam a experimentar a escuridão de fato.

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Mas todas as regiões urbanas, em qualquer ponto da Terra, sofrem algum grau de influência da luz produzida pelo homem. E isso apaga a imensa maioria das estrelas visíveis sem equipamentos ópticos. Acontece até em Saint-Rémy, na França, que inspirou a icônica Noite Estrelada de Van Gogh.

Análises de satélite (2) indicam que o mundo está ficando 2,2% mais brilhante, em média, a cada ano. Isso interfere na migração noturna das aves (3) e muda o ritmo circadiano das plantas (4), que acabam florescendo mais cedo.

Os peixes-palhaço não se reproduzem, pois seus ovos não eclodem (5), e as tartarugas-marinhas não conseguem desovar em praias iluminadas (6). Esses são só alguns exemplos: na prática, quase todos os seres vivos podem sofrer com a poluição luminosa.

Em nós, o sintoma mais evidente é a insônia. Conforme escurece, e o NSQ determina que está anoitecendo, ele envia instruções para outra parte do cérebro: a glândula pineal.

Ilustração de uma mulher no meio da cidade mexendo no celular.
A noite foi tomada pela luz. Mas isso afeta nossos processos biológicos – e pode estar relacionado à maior incidência de certas doenças. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Ela começa a liberar melatonina, um hormônio que prepara o organismo para dormir: reduz a temperatura corporal, desacelera o metabolismo e aumenta a leptina (o hormônio da saciedade), além de provocar sonolência. Quando nos expomos a mais luz durante a noite, seja de lâmpadas ou telas, retardamos a liberação da melatonina – e acabamos com dificuldade para dormir.

As telas são especialmente nocivas, porque o NSQ não leva em conta apenas a intensidade da luz, mas também sua tonalidade. Quanto mais azulada ou branca uma luz, mais parecida ela é com o tom da luz solar ao meio-dia – com exatos 6.500 kelvin de temperatura de cor.

Só que esse é justamente o tom padrão dos monitores e telas de smartphones. Quando você usa um deles à noite, o corpo acha que é meio-dia – e freia a liberação da melatonina, atrapalhando o seu sono.

É por isso que, nos últimos anos, os sistemas operacionais de celular e computador passaram a incorporar um “modo noturno”, que permite deixar a tela mais avermelhada à noite. Esse tom afeta menos a liberação de melatonina.

Mas também prejudica. Qualquer luz pode causar problemas. Inclusive a que entra pela janela durante a noite. Um estudo publicado por cientistas da Northwestern University revelou que dormir uma noite em um ambiente com 100 lux (um pouquinho mais iluminado que a penumbra) já é suficiente para acelerar o ritmo cardíaco e atrapalhar o controle do nível de açúcar no sangue (7) no dia seguinte.

A exposição crônica ao excesso de luz também já foi associada à maior incidência de diabetes (8), depressão (9) e até câncer (10)   (mais sobre isso daqui a pouco).

Os mecanismos que levam a isso ainda não são plenamente compreendidos, mas há uma pista. Além do núcleo supraquiasmático, que atua como um maestro, há centenas de outros relógios espalhados pelo organismo – e eles influenciam diretamente o funcionamento dos nossos órgãos, tecidos e células.

E

Em 1729, o astrônomo francês Jean Jacques d’Ortous de Mairan decidiu fazer uma experiência com a mimosa: uma plantinha, também conhecida como sensitiva ou dormideira, que abre suas folhas ao amanhecer e as fecha quando escurece, numa óbvia demonstração de ritmo circadiano.

Ele queria ver o que aconteceria se deixasse a planta completamente no escuro por vários dias. Então pegou uma mimosa e colocou dentro de um armário.

Para a surpresa de Mairan, que observou a planta no escuro, ela continuou a abrir e fechar as folhas normalmente. Mesmo sem acesso à luz, a mimosa sabia quando era dia e noite. Logo, o relógio biológico deveria ser controlado por mais algum elemento além da luminosidade.

Ele só seria descoberto séculos depois, em 1972, quando cientistas do Instituto de Tecnologia da Califórnia identificaram duas mutações em um gene específico da mosca-da-fruta – a Drosophila melanogaster, aquele insetinho chato que de vez em quando aparece na cozinha.

Ilustração de uma mulher cercada de fitas de DNA.
O corpo tem uma espécie de pêndulo genético, que oscila da mesma forma todos os dias – e mantém nosso relógio girando mesmo sem luz. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Os pesquisadores notaram que esse gene, batizado por eles de period, controlava o relógio biológico das moscas: quando ele  sofria mutações (11), os insetos deixavam de seguir os ciclos diários de 24 horas. Seus dias, dependendo da mutação, passavam a ter 19 ou 28 horas.

Em 1984, os geneticistas Jeffrey Hall e Michael Rosbash, da Universidade Brandeis, em Massachusetts, notaram que o gene period controlava a produção de uma proteína chamada PER.

Ela é sintetizada no citoplasma, dentro das células, e oscila de forma precisa: se acumula durante a noite, e se dissipa com o passar do dia, em ciclos de 24 horas. Eles haviam descoberto a base genética do relógio biológico – e em 2017, trinta e três anos depois, receberiam o Prêmio Nobel de Medicina por isso (junto com o geneticista Michael W. Young).

A beleza desse sistema, que também está presente em humanos, está na relação entre o gene e a proteína. A função da PER é impedir o period de produzir mais… PER.

O processo se autorregula: durante o dia, a proteína interrompe a ação do gene, o que freia temporariamente a produção dela mesma. À noite, o period volta a atuar, retomando a fabricação de PER. E assim segue, dia após dia, por toda a vida. Como o pêndulo de um relógio.

É por isso que, mesmo se você for totalmente privado de luz, o seu ritmo interno não se desregula imediatamente. Esse mecanismo genético mantém o relógio do organismo rodando. 

Ou melhor: os relógios. Cada órgão segue um ritmo diferente, e tem mecanismos próprios para marcar e seguir o tempo (as células do organismo continuam fazendo isso até se você extraí-las para observar em laboratório, fora do corpo (12)).

 

Os horários do dia

Ainda que cada pessoa tenha seu próprio ritmo, há momentos que são comprovadamente mais propícios para fazer certas coisas.

7 h – Sexo

O ponto mais alto da testosterona no organismo é no início da manhã (1), o que torna esse momento o mais propício para os homens fazerem sexo. Além disso, há outro fator: é o horário em que as pessoas estão mais descansadas.

8h – Mandar emails
Segundo um estudo (2) da empresa de marketing Litmus, que analisou o horário de abertura de 8 bilhões de emails, escrever cedo aumenta as chances de a mensagem ser lida: as pessoas começam a conferir a caixa de entrada às 6h, atingindo o pico entre 10h e 11h.

10h – Tomar vacinas

Cientistas da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, constataram que pacientes que tomaram a vacina da gripe pela manhã tinham tendência a produzir mais anticorpos (3) do que aqueles que receberam a dose à tarde.

11h – Café
Você toma café logo que acorda? Não é o ideal: nesse momento, o corpo já está elevando o nível de cortisol, hormônio ligado ao alerta (e ao estresse), e o café faz menos efeito. Melhor bebê-lo um pouco mais tarde.

14h – Siesta

Após o almoço, a temperatura corporal cai – e você sente sono. Um estudo da Universidade de Bruxelas (4) constatou que dormir meia horinha (algo bem viável nesta era do home office) aumenta o desempenho cognitivo.

15h – Teste de covid

Está precisando fazer? Cientistas da Universidade Vanderbilt, nos EUA, analisaram 86 mil testes e descobriram que o índice de resultados positivos é maior à tarde (5) (possivelmente, porque a carga viral é mais alta nesse momento do dia).

16h – Estudar

Há dois momentos do dia em que, mesmo se você tiver dormido mal à noite, é difícil cair no sono. São os chamados horários de vigília: o primeiro ocorre por volta das 10h. O segundo é agora, bem no meio da tarde.

18h – Exercício

A força muscular, a capacidade pulmonar e a coordenação motora atingem o pico no final da tarde (6). Mas não há consenso sobre o melhor horário para se exercitar: um estudo com ratos mostrou que correr no início do período ativo (o que, em humanos, é a manhã) traz mais benefícios (7).

19h a 20h – Última refeição

Pessoas que se alimentam mais tarde, perto do horário de dormir, tendem a comer mais (8). Além disso, estudos em ratos mostraram que, mesmo se a quantidade de alimento ingerida for a mesma, o ganho de peso pode ser maior (9).

22h a 0h – Dormir

O momento ideal depende do seu cronotipo. Mas, seja qual for ele, evite usar o smartphone na cama. Se você fizer questão dele, ative o “modo noturno”, que deixa a tela avermelhada (e elimina tons azulados, que inibem a produção de melatonina).

Fontes (1) Evaluation of the influence of pre-analytical factors on total testosterone levels in healthy young men. IL Lima e outros, 2021. (2) When Is the Best Time to Send Email? Litmus, 2021. (3) Morning vaccination enhances antibody response over afternoon vaccination. JE Long e outros, 2016. (4) Afternoon Nap and Bright Light Exposure Improve Cognitive Flexibility Post Lunch. H Slama e outros, 2015. (5) Diurnal variation in SARS-CoV-2 PCR test results. C McNaughton e outros, 2021. (6) Circadian Rhythms in Exercise Performance. W Teo e outros, 2011. (7) Atlas of exercise metabolism reveals time-dependent signatures of metabolic homeostasis. S Sato e outros, 2022. (8) Restricting night-time eating reduces daily energy intake in healthy young men. JD LeCheminant e outros, 2013. (9) Circadian Timing of Food Intake Contributes to Weight Gain. F Turek e outros, 2012.

As células da pele se dividem mais rápido entre meia-noite e 4h da manhã, e os pelos faciais crescem mais devagar enquanto dormimos – é por isso, como conta Alan Burdick no livro Por que o tempo voa (2020), que um homem que se barbear à noite não acordará com uma cara de barba por fazer.

Cortes e queimaduras ocorridos de manhã e à tarde cicatrizam até 60% mais rápido (13) do que lesões sofridas entre 20h e 8h. Isso acontece porque as células do tecido conjuntivo responsáveis pela cicatrização, os fibroblastos, perdem a capacidade de reação à noite.

O coração desacelera à noite, o que reduz a pressão sanguínea: ela alcança seu ponto mais baixo entre 2h e 4h da madrugada, e começa a aumentar quando acordamos até atingir o pico por volta do meio-dia.

Até o sistema imunológico possui seu próprio relógio: trabalha mais enquanto o indivíduo está dormindo. Foi o que descobriram cientistas da Universidade de Genebra, que usaram ratos para estudar o comportamento das células dendríticas (14).

Essas células, que também existem em humanos, têm uma função crucial: elas carregam pedaços de vírus e bactérias até os nódulos linfáticos, “bases militares” do sistema imunológico espalhadas pelo corpo, onde o invasor é analisado e o organismo prepara uma resposta.

As células dendríticas ficam mais ativas durante o sono e logo ao despertar. Talvez isso explique por que se vacinar de manhã pode gerar uma resposta imunológica melhor – foi o que mostrou um estudo da Universidade de Birmingham, que em 2016 avaliou idosos imunizados com a vacina da gripe (15).

Cada sistema do corpo trabalha seguindo um ritmo. E conforme a ciência começa a entender melhor isso, uma nova área de pesquisa vem ganhando força: a cronofarmacologia, que estuda a relação entre remédios, doenças e o horário do dia.

Um AVC ou um infarto, por exemplo, é mais comum no começo da manhã, quando a pressão sanguínea se eleva. Já as crises de asma são mais frequentes à noite. Há vários outros exemplos.

“Se você precisar tomar uma estatina para baixar o nível de colesterol, o doutor provavelmente lhe dirá para tomá-la à noite. Por quê? Porque os cronofarmacologistas sabem que é quando o fígado produz colesterol”, conta o médico Suhas Kshirsagar no livro Mude Seus Horários, Mude Sua Vida (2020).

O tratamento de câncer também pode ter ligação com o relógio biológico. Em testes com camundongos (16), um grupo de cientistas da Universidade da Carolina do Norte constatou que os tumores seguem um ritmo circadiano.

E a quimioterapia pode fazer mais efeito, permitindo usar uma dose menor e menos tóxica para o animal, se for administrada em determinadas partes do dia – o momento depende do tipo de câncer. 

Isso confirma as descobertas da bioquímica Carrie Partch, pesquisadora da Universidade da Califórnia-Santa Cruz. Alguns anos atrás, ela estava analisando alguns compostos ligados ao relógio biológico quando uma proteína chamou sua atenção.

Aquela molécula parecia estar ligada ao ritmo circadiano, mas de um jeito diferente. Partch descobriu que essa proteína, batizada de PASD1, atuava desligando o relógio biológico: nas células onde ela se encontra, simplesmente não há ritmo circadiano (17). “Isso realmente nos intrigou”, conta ela. “Por que nosso corpo produz um inibidor do relógio biológico, se ele é tão importante?”

Outra coisa tornava tudo ainda mais enigmático: a ocorrência da PASD1 era bem limitada. Em pessoas saudáveis, ela praticamente só existe nos órgãos reprodutivos (ovários e testículos), que estão entre as poucas partes do corpo que não obedecem a um ritmo circadiano.

Mas existe outro lugar onde a proteína PASD1 também aparece em maior quantidade: as células cancerígenas. A presença dela, com a consequente inibição do relógio biológico normal, pode estar relacionada ao surgimento ou crescimento de tumores.

Até o tratamento da obesidade pode ter relação com o ritmo circadiano. Isso é sabido desde 2013, quando pesquisadores das universidades Harvard e de Murcia, na Espanha, publicaram um estudo surpreendente.

Eles acompanharam 420 pessoas que realizaram um tratamento de perda de peso durante 20 semanas. Os participantes foram submetidos a uma dieta de 1.400 calorias por dia, e divididos em dois grupos.

O primeiro grupo comia mais no almoço, e menos na janta. O outro comia mais à noite. De resto, tudo era muito parecido: as pessoas dos dois grupos apresentavam níveis similares dos hormônios controladores do apetite (grelina e leptina), dormiam o mesmo número de horas e tinham gasto calórico similar.

Mas o resultado foi bem diferente. Ao final do teste (18), quem comia mais cedo emagreceu em média 10 kg. Já quem se alimentava mais à noite teve um resultado pior: só perdeu 7,5 kg. A conclusão da experiência (que confirmou estudos similares feitos em ratos) é a seguinte: se você quer emagrecer, melhor comer menos à noite.

Se bem que, como mostrou um estudo realizado pela Universidade Brown (19), isso pode ser especialmente difícil. Os cientistas constataram que o olfato fica mais sensível depois que o Sol se põe – com um pico às 21h. Isso torna o cheiro dos alimentos mais atraente. Enfiar o pé na jaca à noite, portanto, pode não ser fraqueza de caráter. É uma tendência biológica.

Isso vale para outra característica bem comum: a dificuldade em acordar cedo. Nos adolescentes, a melatonina (hormônio que causa sonolência) começa a ser liberada até duas horas mais tarde – por isso eles precisam dormir um pouco mais.

Gráfico com os três tipos de cronotipos: matutino, vespertino e intermediário e uma legenda explicando cada um deles.
(Natalia Sayuri Lara/Superinteressante)

Na idade adulta, também há diferenças entre as pessoas. O auge do nível de melatonina no organismo pode ocorrer em horários diferentes, e isso determina a tendência de cada indivíduo a dormir mais cedo ou mais tarde [veja quadro acima]. Ser mais matutino, ou mais madrugador, portanto, não é meramente uma questão de hábito.

Um estudo publicado pela empresa americana 23andMe, que aplicou um questionário e analisou o DNA de quase 86 mil pessoas, constatou que realmente existe uma base genética para o “cronotipo” de cada indivíduo (20): quem possui um determinado conjunto de alelos (variações de genes) naturalmente acorda 25 minutos mais cedo, em média, que as demais pessoas.

E dormir oito horas por noite não é uma necessidade universal. “Tem gente que fica muito bem com seis, ou com nove”, explica o neurologista Geraldo Rizzo, especialista em sono.

Você também pode descobrir qual é o seu cronotipo – mesmo sem fazer uma análise genética ou medir o seu nível de melatonina no sangue. “O melhor jeito é observar os hábitos de sono em períodos como as férias, sem grandes compromissos sociais ou profissionais”, explica Rosa Hasan, coordenadora do Laboratório do Sono do Instituto de Psiquiatria da USP. Isso mostrará em quais horários o seu corpo tende a dormir e acordar naturalmente.

Nada disso significa, claro, que sejamos escravos do relógio biológico. Os horários em que escolhemos comer e ir dormir também ajudam a ajustá-lo. “Embora o sistema circadiano sincronize nossos ritmos principalmente com o claro e o escuro, tanto o sono quanto a alimentação também são sinais de referência ao núcleo supraquiasmático”, diz o médico John Fontenele-Araujo, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor de vários estudos sobre cronobiologia.

Com a pandemia, o isolamento e o home office, essas e outras rotinas mudaram. “Muitas pessoas puderam dormir um pouco mais, pois não precisavam acordar cedo para ir trabalhar, o que permitiu seguir melhor a própria fase circadiana”, diz o neurologista John Axelsson, que lidera um grupo de pesquisas sobre sono na Universidade de Estocolmo. “Por outro lado, muitos ficaram estressados com a pandemia, e isso levou a maiores níveis de ansiedade e distúrbios do sono.”

Em suma: o cronotipo natural, genético, é afetado pelos hábitos e obrigações de cada pessoa, e as circunstâncias em que ela vive. Essas coisas são criações humanas – logo, podem mudar.

A rotina em que vivemos hoje, com o sono concentrado num período de oito horas, é recente em termos evolutivos. Registros da Idade Média revelam que, naquela época, as pessoas dormiam em duas etapas (21): elas adormeciam bem mais cedo do que nós, mas acordavam após quatro horas, no meio da noite, para comer, conversar e até visitar vizinhos. Depois voltavam a dormir, por mais quatro horas. O relógio biológico se altera ao longo da história.

Ao mesmo tempo, ele também pode ser influenciado por um elemento imutável e parcialmente oculto, que só se manifesta na ausência do Sol: a luz da Lua. Sabe aquelas crendices populares que relacionam as fases da Lua a mudanças fisiológicas e comportamentais?

A maior parte delas é mito – mas o conceito tem um fundo de verdade. Várias criaturas marinhas, como o fitoplâncton, as ostras e alguns peixes, ajustam o relógio biológico pela Lua. Eles sincronizam seu ritmo circadiano com as marés (que são diretamente afetadas pelos movimentos da Lua, e a atração gravitacional maior ou menor que ela exerce sobre a água dos oceanos). Parece elementar, não? Mas pode ser um pouco mais estranho – e mais interessante – do que isso.

No Oceano Ártico, todos os anos ocorre um fenômeno conhecido como noite polar. Nesse período, que pode durar de 1 a 3 meses, o Sol simplesmente não nasce – como o Ártico está no extremo norte do planeta, os raios solares não o alcançam durante o inverno, por causa da inclinação da Terra.

Quando isso acontece, o plâncton do mar faz algo extraordinário: começa a subir e descer na água em ciclos de 24h50min – que é exatamente a duração do “dia lunar”, o tempo que a Lua demora para se realinhar com um determinado ponto da Terra (a Lua orbita o nosso planeta, e dá uma volta nele a cada 27,3 dias. Ela “anda”. Por isso, um observador na Terra leva um pouquinho mais de 24h, a cada dia, para se realinhar com ela (22)).

Ilustração de pessoas, animais e plantas em volta da lua.
No oceano ártico, o sol não nasce durante parte do ano. nesse período, o plâncton marinho acerta seu relógio por outra referência: a lua. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Em 2015, cientistas noruegueses descobriram por que o plâncton age dessa forma durante a noite polar: com a total ausência do Sol, a Lua se torna a única fonte de luz para esses microorganismos (23).

Também há estudos relacionando as fases da Lua com alterações no corpo humano. Ela parece ter efeito sobre o ciclo menstrual – e nas noites que antecedem a fase Cheia, mais brilhante, as pessoas tendem a dormir menos. Mas isso ainda é pouco conclusivo. Não dá para cravar que essas mudanças realmente se devam à luz lunar, e não a outros fatores.

Por outro lado, uma coisa é certa: a vida tem um relógio, e ele corre dentro de todos os seres, dos mais primitivos aos mais avançados. Sejam quais forem os mecanismos envolvidos em cada forma de vida – sinais luminosos, cronômetros hormonais, pêndulos genéticos –, o tempo biológico vale para todos nós.

A vida acontece de formas diferentes ao longo das 24 horas do dia. Mas segue um ritmo universal: o de uma força que nos sincroniza, nos iguala, nos une.

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Fontes

(1) Circadian rhythm abnormalities in totally blind people: incidence and clinical significance. Rl Sack e outros, 1992.

(2) Artificially lit surface of Earth at night increasing in radiance and extent. C Kyba e outros, 2017. (3) High-intensity urban light installation dramatically alters nocturnal bird migration. B Van Doren e outros, 2017. (4) Light pollution is associated with earlier tree budburst across the United Kingdom. PK McGregor e outros, 2016. (5) Artificial light at night causes reproductive failure in clownfish. E Fobert e outros, 2019.

(6) Can satellite-based night lights be used for conservation? The case of nesting sea turtles in the Mediterranean. T Mazor e outros, 2013. (7) Light exposure during sleep impairs cardiometabolic function. IC Mason e outros, 2022. (8) Bedroom TVs and obesity. R Scott-Jupp, 2017. (9) Bedroom Light Exposure at Night and the Incidence of Depressive Symptoms: A Longitudinal Study of the HEIJO-KYO Cohort. K Obayashi e outros, 2018. (10) Artificial Light at Night and Cancer: Global Study. RA Naggar e S Anil, 2016.

(11) Circadian clock mutants of Drosophila melanogaster. RJ Konopka, 1972. (12) Clock genes of Mammalian cells: practical implications in tissue culture. B Kaeffer e L Pardini, 2005. (13) Circadian actin dynamics drive rhythmic fibroblast mobilization during wound healing. NP Hoyle e outros, 2017. (14) Circadian clocks guide dendritic cells into skin lymphatics. S Holtkamp e outros, 2021.  (15)Morning vaccination enhances antibody response over afternoon vaccination: A cluster-randomised trial. JE Long e outros, 2016.

(16)Circadian Clock, Cancer, and Chemotherapy. A Sancar e outros, 2014. (17) Cancer/testis antigen PASD1 silences the circadian clock. CL Partch e outros, 2015. (18) Timing of food intake predicts weight loss effectiveness. M Garaulet e outros, 2013. (19) The Influence of Circadian Timing on Olfactory Sensitivity. RS Herz e outros, 2017.

(20)Genome-wide association analyses of chronotype in 697,828 individuals. SE Jones e outros, 2019. (21) Sleep we have lost: pre-industrial slumber in the British Isles. AR Ekirch, 2001. (22) Frequency of Tides – The Lunar Day. NOAA. (23) Moonlight Drives Ocean-Scale Mass Vertical Migration of Zooplankton during the Arctic Winter. KS Last e outros, 2016.

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