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Fome de dignidade

Para debelar a fome é preciso atacar a miséria. A curto prazo, o desafio é ampliar o alcance das várias iniciativas que estão dando certo localmente.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h02 - Publicado em 30 abr 2003, 22h00

Suzana Barelli

O Brasil é o quarto maior produtor de alimentos do mundo. Lidera as exportações de laranja, cana-de-açúcar e café e é o segundo maior exportador de soja e de carnes de frango e suína. O país, no entanto, vive um paradoxo: uma parcela expressiva da população passa fome, a ponto de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter anunciado, em sua posse, que uma das prioridades do seu governo é que cada brasileiro possa fazer três refeições por dia. Mas é a má distribuição de renda – não a falta de alimentos – a maior causa da fome no Brasil. “Na Ásia e na África há problemas de má distribuição de alimentos”, diz Gustavo Gordillo de Anda, subdiretor-geral para a América Latina e o Caribe da FAO, organismo da ONU para a alimentação e a agricultura. “Já na América Latina o maior problema é a renda e a acumulação desigual de capital.”

Essa também é a principal causa de outras conhecidas mazelas sociais, como a violência, o analfabetismo, as epidemias e uma longa lista de problemas nacionais. Não há como debelar a fome sem combater a pobreza. A solução depende de medidas estruturais que visem ao aumento da renda – e da dignidade das camadas mais pobres da população. São medidas de longo prazo, mas os miseráveis não podem esperar – eles sentem fome hoje. A curto prazo, o desafio é ampliar, com a ajuda do governo, as inúmeras ações de combate à fome da sociedade civil organizada que têm se mostrado eficazes, sem contaminá-las com a histórica ineficiência e burocracia do setor público.

Os problemas de insegurança alimentar começam pela indefinição do tamanho da fome no Brasil. Afinal, quantos são os famintos? No mundo, a FAO estima em 815 milhões o número de pessoas com acesso insuficiente aos alimentos. Numa escala de zero a cinco, ela classifica o Brasil no nível três de desnutrição. O governo brasileiro não tem um número oficial de miseráveis. O Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea), ligado ao Ministério do Planejamento, estima esse contingente em 25 milhões de pessoas. O Programa Fome Zero, principal bandeira social do governo Lula, quer encher 44 milhões de barrigas vazias. A Fundação Getulio Vargas, do Rio de Janeiro, fala em 50 milhões.

ONGs e governo

Qualquer que seja o número dos que passam fome, as parcerias entre o setor público e o privado são fundamentais para mitigar o problema. Ao lado de ações como a Bolsa-Escola (que dá dinheiro a famílias carentes com filhos na escola), iniciativas da sociedade civil no combate pontual à desnutrição mostram que o fim do estômago vazio e da má alimentação pode estar na integração entre os recursos do governo e os projetos implementados pelas organizações e associações comunitárias.

A principal vantagem desses programas sociais é a sua imensa capilaridade. As ONGs conseguem chegar a lugares onde nem sempre o poder público entra com facilidade, como as áreas indígenas e algumas favelas. Essas organizações costumam ser também mais sensíveis à falta de comida e, muitas vezes, mais versáteis e rápidas do que a burocracia governamental no encaminhamento dos problemas e de suas soluções. O único senão é que lhes falta a força de atuação do governo para ampliar o alcance das iniciativas. “As soluções para a fome estão na correta e difícil equação entre a capilaridade das ONGs e a abrangência das ações do poder público”, afirma Flávio Valente, diretor da Aliança Mundial para a Nutrição e os Direitos Humanos. Conciliar essas duas esferas é um desafio e tanto. “Se institucionalizar demais as organizações, elas perdem a abrangência de suas ações”, adverte Valente.

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É só analisar o exemplo da pequena Boa Esperança, no interior mineiro. Claudio Lúcio da Silva, presidente da associação de bairro local, iniciou há três anos um projeto de horta comunitária nos terrenos abandonados da cidade. “Os lotes vazios eram focos de escorpião e dengue e os tornamos produtivos”, diz com orgulho. Ele procurou os donos de dois terrenos e propôs cuidar dos lotes enquanto estivessem vazios – se os proprietários quiserem usar a área, têm de avisar com um mês de antecedência. Com os fazendeiros, conseguiu adubos e bambu para fazer 18 canteiros e cercar os terrenos. Os próprios moradores, muitos deles trabalhadores da roça, limpam a área nas horas vagas e doam as sementes. Hoje, eles cuidam da plantação de alface, cenoura, couve, cebolinha e beterraba. A produção é doada todos os domingos aos moradores da região. “Antes, a marmita era só de arroz e feijão. Agora, é mais nutritiva”, afirma Silva.

O projeto está indo bem, não fosse um problema aparentemente banal: a conta de água. Desempregado, Silva não tem mais como arcar com a despesa. Antes de a fonte de irrigação ser cortada, a prefeitura local, quem sabe, poderia bancar a despesa, estimada em pouco mais de R$ 10 por mês. Mas se o governo assumir toda a horta, poderá desvirtuar o programa comunitário da pequena cidade.

Exemplos semelhantes ao de Boa Esperança podem ser encontrados em todo o Brasil, como a criação de cabras em pequenas comunidades no sertão nordestino, o aproveitamento do peixe no Amazonas, o reforço da merenda na região Sudeste, a utilização de caule e cascas de frutas, legumes e verduras em receitas culinárias no interior paulista e até o uso de recursos da loteria mineira para o combate à fome. A Fundação Banco do Brasil reuniu vários desses projetos num site com o objetivo de divulgar as iniciativas e, assim, incentivar a sua propagação em várias comunidades carentes. A lista de projetos na área de segurança alimentar é tão ampla que suscita, de novo, a questão: se as idéias são tantas, mesmo antes do lançamento do Fome Zero, por que ainda há fome no Brasil?

A resposta é que os programas, apesar de crescentes e cheios de boa vontade, atingem ainda um número pequeno de carentes, alguns deles já distantes da temível linha de miséria e desnutrição. A pequena horta em Boa Esperança, por exemplo, beneficia 282 famílias, ou pouco mais de mil pessoas. A Pastoral da Criança, com a sua famosa multimistura alimentar, é talvez o exemplo mais conhecido de formas criativas e baratas de combater a desnutrição infantil. O projeto da igreja chega a 32.711 comunidades, em 3.534 municípios brasileiros, e custa US$ 0,50 por criança ao mês. Em 2001, as regiões acompanhadas pela Pastoral registraram uma taxa de mortalidade infantil inferior a 13 mortes para cada mil nascidos vivos, contra a média nacional de 29,7 mortes por mil.

Para atender aos pelo menos 25 milhões de famintos, no cálculo mais conservador, é preciso unir esses programas com as ações do governo, como sugere Flávio Valente. Mas aí outros problemas começam a aparecer. Com a troca de governantes a cada quatro anos, são comuns as histórias de programas que são descontinuados, mudam de nome e perdem a sua eficácia. Outra crítica corrente é que os programas sociais não são avaliados e, portanto, fica difícil defender a sua eficácia nesses momentos críticos. “Com a falta de avaliação, quando muda o governo não há pressão da população para manter os bons projetos”, afirma o economista Walter Belik, braço direito do ministro José Graziano da Silva na elaboração do Programa Fome Zero. O quadro torna-se mais grave quando se analisa o perfil dos desnutridos e a sua falta de força política. Segundo Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais do Instituto de Economia da FGV, 57% deles estão no mercado informal e 45% são crianças, abaixo ainda da linha do voto.

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Restaurantes populares

O crescimento da pobreza nos grandes centros urbanos, paralelamente a uma estabilização dos indicadores de fome na área rural, tem canalizado muitas idéias de segurança alimentar para as áreas metropolitanas, seja das organizações não-governamentais, seja do poder público. Dois tipos de programa têm crescido nas metrópoles desde meados da década de 1990. Um são os restaurantes populares, que servem uma refeição balanceada, num ponto central da cidade, com baixo custo para o consumidor. O primeiro foi aberto em 1994 em Belo Horizonte e, hoje, serve 5.000 almoços por dia, a R$ 1 cada um. À noite são servidos 600 caldos com pão, a R$ 0,50. Com diversos nomes e peculiaridades, os restaurantes populares se expandiram para cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas, não por acaso as mais populosas e com altos índices de desemprego.

A segunda ação de segurança alimentar que vem crescendo nos grandes centros é a arrecadação de alimentos por meio de uma “colheita urbana”. Desde 1995, o Sesc paulista recebe doações de alimentos de empresas cadastradas, faz a triagem dos produtos recebidos e os distribui para entidades sociais no programa Mesa São Paulo. “São alimentos em condições de consumo, mas que perderam o seu valor comercial”, explica Paulo Ricardo Martins, gerente do Sesc Carmo. Um exemplo são as claras de ovo doadas pelas doceiras que só utilizam a gema. Os quatro núcleos paulistas arrecadam 185 toneladas por mês de alimentos de uma rede formada por 457 doadores. O volume é distribuído diariamente para 380 entidades, que atendem a 57.000 pessoas.

No início deste ano, o Sesc nacional assumiu a diretriz das “colheitas urbanas”, agora denominadas Mesa Brasil e implementadas em estados como Rio de Janeiro, Pernambuco e Ceará. A meta é arrecadar e distribuir 4 mil toneladas de alimentos por mês em todo o país. Mas, para atingi-la, é preciso que o Congresso Nacional aprove o Estatuto do Bom Samaritano, projeto de lei que já recebeu o aval do Senado e atualmente aguarda a escolha de um relator na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A legislação isentará o doador do alimento de processos por eventuais problemas causados pela alimentação doada. Um segundo projeto de lei, ainda no Senado, propõe incentivos fiscais para a doação de refeições.

Legislação similar faz o sucesso do principal programa alimentar do Canadá – um país que demonstra que administrar o problema da fome não é uma preocupação só de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Com dimensões continentais como o Brasil, o Canadá tem uma rede de mais de 700 bancos de alimentos, com mais de 2.000 agências, que distribuem alimentos de leste a oeste do país. Walter Belik, do Fome Zero, visitou o Canadá para conhecer os programas.

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Cartão-alimentação

O exemplo internacional que mais atrai a equipe do Fome Zero vem dos Estados Unidos. Com seus cartões-alimentação, o Food Stamp, que surgiu na década de 1930, foi totalmente reformulado nos anos 70. Pelo projeto, um dos 15 programas de segurança alimentar naquele país, é possível garantir que os recursos sejam gastos com a compra de alimentos e não para a aquisição de remédios ou para o pagamento de uma dívida. “Nosso objetivo é combater a fome”, diz Belik. “Sabemos que, numa situação de aperto, a pessoa deixa de se alimentar para pagar uma conta.”

Essa imposição alimentar, bem como o tom assistencialista do Fome Zero, são as grandes críticas ao programa do governo. Ao receber um tíquete para gastar com alimentação, o faminto é privado em sua opção de escolher qual de suas necessidades deseja satisfazer. O cartão-alimentação é a ponta mais visível dos mais de 40 programas do Fome Zero, que prevê políticas de geração de emprego e renda, intensificação da reforma agrária, do Bolsa-Escola, da merenda escolar, entre outros. Enquanto não implementa as ditas medidas estruturais, o governo federal aposta num plano piloto para duas comunidades carentes no Piauí e nas doações de alimentos e dinheiro.

As doações em espécie esbarram em problemas de armazenamento e distribuição e são alvos de críticas da sociedade civil. “A doação e a distribuição de alimentos pode chamar a atenção para o problema, mas não deve ser o mote na luta contra a fome”, afirma Vivian Braga, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), conhecido com o “instituto do Betinho”.

Pioneiro na arrecadação de alimentos em campanhas contra a fome da década de 90, o Ibase não trabalha mais com doações em espécie. Na luta pela segurança alimentar, no entanto, não é possível descartar a vontade do brasileiro de colaborar nem esquecer que muitas idéias de combate à fome nasceram de iniciativas da sociedade civil. Além das doações individuais, diversas empresas já se organizam para arrecadar e distribuir alimentos. O desafio é transformar a atual boa vontade das pessoas e das empresas em ações de longo prazo que dêem aos famintos a condição de sair da fila de doações para comprar ou produzir seu próprio alimento.

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Frase

A melhor estratégia para combater a fome é unir a imensa capilaridade das organizações não-governamentais e a abrangência das ações do poder público

Isto Está Dando Certo

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Crédito e solidariedade

Cooperativas facilitam o crédito a pequenos agricultores, ajudam a elevar a renda e evitam a migração de famílias para as cidades

A vida dos pequenos agricultores nunca foi fácil. O crédito para o plantio não chega a tempo, os juros do financiamento da safra são altos e as dificuldades para escoar a produção são incontáveis. No interior do Paraná, essa realidade começou a mudar no final da década de 80 com o auxílio da Misereor, uma ONG alemã que disponibilizava recursos para o crédito rotativo na região. Com valores nunca superiores ao equivalente hoje a R$ 500 por agricultor e com aval solidário (o tomador é também o avalista), o plantio de milho, feijão e soja e a criação de frango, suíno e gado leiteiro começaram a crescer, fortalecendo a agricultura familiar – uma das formas de combater a pobreza e a fome nas áreas rurais.

Em 1995, com a criação das cinco primeiras cooperativas de crédito rural, todas herdeiras dos empréstimos alemães, nascia o sistema Cresol (Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária). “A palavra cooperativa era malvista na região”, recorda-se Vanderley Ziger, atual presidente da Cresol. “Muitas quebravam e levavam o dinheiro dos agricultores.” Para não desvirtuar o projeto, foi decidido que apenas agricultores familiares poderiam se filiar ao sistema (metade da mão-de-obra deve ser da própria família ou pelo menos metade da renda ser proveniente da propriedade). Os diretores também devem manter a sua atividade agrícola e não se perder nas burocracias das instituições.

As premissas trouxeram resultados. Atualmente, o sistema Cresol está presente nos três estados do Sul, com um total de 71 cooperativas autônomas e 29.990 sócios espalhados em 208 municípios. Mais de 80% dos associados têm área de plantio inferior a 20 hectares (a maioria das famílias possui 9 hectares), o patrimônio líquido da cooperativa chega a R$ 10,9 milhões e o projeto é elogiado pela FAO. “A experiência poderia ser expandida para outros lugares do Brasil”, afirma Gustavo Gordillo de Anda, subdiretor-geral da FAO para a América Latina e Caribe.

Foi um crescimento e tanto para uma associação em que 50% dos filiados não tinham conta corrente e 85% nunca haviam obtido um financiamento bancário. Atualmente, os cooperados dispõem de um crédito de R$ 34,4 milhões para o custeio pelo Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf) da safra 2002/2003. No ano passado, a Cresol teve R$ 49,7 milhões de recursos próprios emprestados e R$ 2,9 milhões de microcrédito. “A renda do agricultor cresceu e muitos conseguiram se manter na terra, sem migrar para a cidade”, afirma Ziger. Hoje, a cooperativa recebe, em média, R$ 1.500 de depósitos por agricultor, cifra três vezes maior do que quando iniciou suas atividades.

Em 2000, foi criada a figura do agente da cooperativa, com o objetivo de cadastrar os cooperados, levantar as demandas e fazer uma pré-seleção dos empréstimos. Os agentes desenvolvem um trabalho de conscientização sobre a importância dos adubos orgânicos, entre outras dicas de produção. O próximo passo pode ser a criação de uma cooperativa de produção. Hoje, os grãos são comercializados pelos próprios produtores, enquanto o leite é vendido por cooperativas específicas. “É preciso agora organizar a distribuição”, diz Ziger.

 

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