Revista em casa por apenas R$ 9,90/mês
Continua após publicidade

A reabilitação do tomate

O tomate dos astecas já foi temido como se fosse veneno. Hoje se sabe que é um dos melhores frutos da terra.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h02 - Publicado em 30 set 1989, 22h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  •  (/)

    Sílvio Lancellotti

    Certamente o pão. Talvez o arroz. Nenhum outro alimento, todavia, pode-se orgulhar de sua abrangência multinacional, de sua inabalável universalidade, como o trivial tomate. Sim, trivial, e ao mesmo tempo belo, vibrante, disponível e sensual, o tomate de 2002 utilidades, capaz de se portar com galhardia num cardápio inteiro, da entrada à sobremesa. O tomate da elementar salada e o tomate dos rubros sorvetes que há uma década encantam os desserts das cozinhas novas da Europa e dos Estados Unidos. Mais fantástico ainda, o poder do tomate é recentíssimo. Fala-se do pão já na Bíblia. Existe arroz no Oriente há mais de cinco milênios. O tomate, todavia, não se tornou conhecido na civilização antes do século XVI. E não virou alimento de verdade antes do século XVII.

    Na ciência apelidado de Solanum lycopersicum em seu estado selvagem, e de Solanum esculentum na sua versão cultivada, o tomate se originou na costa latino-americana do Pacífico, desde o Peru até o México. Daí o seu nome asteca tomatl. Ostentava então um mínimo tamanho, como um jiló, e era extremamente perecível, apodrecendo meras horas depois de colhido. Navegadores espanhóis levaram sua sementes ao Velho Mundo, provavelmente impressionados com a sua rápida proliferação: qualquer criança pode plantar um tomateiro num canto do quintal que a planta crescerá sem nenhum cuidado especial. Os ibéricos, todavia, instantaneamente repudiaram a novidade.Ocorre que, naqueles idos, a Europa tinha pavor de outra filha da família das solanáceas, a venenosa beladona, de idêntico formato, textura semelhante e pele negra. Ocorre, também, que, na tentativa de evitar a fruta, os espanhóis decidiram experimentar os seus verdes talos e as suas folhas, com patéticas conseqüências – disenterias e intoxicações. Nos arredores de 1535, a corte da Espanha decidiu a questão com um edito real, liberando o tomate exclusivamente para uso decorativo, em arranjos de mesa, por exemplo. Os alquimistas e os botânicos de plantão poderiam muito bem ter economizado o tempo do planeta, analisando a matéria-prima e definindo sua perfeita utilização. Fraquejaram, porém.

    Em 1544, o veneziano Pierandrea Mattioli admitiu o parentesco do tomate com a preciosa berinjela que os sicilianos já consumiam com paixão. Matioli, no entanto, batizou o tomate de mela insana, o pomo doentio. Vários dos seus colegas, assustados com a parecença das suas folhas com aquelas da perigosa mandrágora, engataram no raciocínio do veneziano e desaconselharam a iguaria. Inúmeras gerações de suas sementes, de todo modo, começaram a viajar da Espanha à Itália, ou pelas costas francesas, ou via Mar Mediterrâneo. Por volta de 1600, sob o sol majestoso da província da Campânia, na Velha Bota, o Solanum lycopersicum havia crescido de volume e adquirido uma coloração sensacional. Incapaz de resistir a seu sanguíneo magnetismo, algum cozinheiro napolitano mais inspirado mesclou lâminas de tomate a uma salada de alface, dentes de alho e azeite. Deu certo no sabor – com a vantagem nem um pouco desprezível de que ninguém morreu.

    O cuca esperto voltou a ousar e fritou fatias hipnotizantes em óleo e manteiga. Maravilha inigualável. Daí para o molho dos spaghetti foi seguramente um passo apenas. Consagrado em Nápolis, o tomate refez o seu trajeto através da Europa. Àquela altura carregava títulos bem mais charmosos do que mela insana, ora o pomo d’oro, ou fruto de ouro, ora o pomo d’amore, o fruto do amor. Subiu à Alemanha com a alcunha de Paradiseapfel, a maçã do paraíso. Aterrissou até mesmo na Polônia, como pomodory. Só nos meados do século XVIII, entretanto, a solanácea resgataria seu nome de batismo. Ao realizar as investigações que redundariam na sua obra fundamental, o biólogo sueco Carl von Linné, o Linnaeus ( 1707-1778), pioneiro no mundo a definir um sistema adequado de identificação dos gêneros e das espécies das plantas e dos animais, ainda com cautela sugeriu o seu consumo sem muitas restrições. Linnaeus refez a linhagem genética do tomate, cristalizando a sua descendência do tomatl das Américas.

    Daí o português tomate, o francês idem, o espanhol também, o alemão Tomate com a inicial maiúscula dos substantivos tedescos, o inglês tomato, o holandês tomaat, o turco Tomates. De banido e vilipendiado, o produto se internacionalizou e hoje é apreciado até na China e no Japão. Foi o medo caseiro de suas possíveis agressões que, no princípio de seu uso culinário, compeliu as mamães italianas a perpetuar os seus capitosos molhos de spaghetti em cinco ou seis horas de meticuloso cozimento. Imaginavam elas que o longo tempo de caldeirão ajudaria a eliminar todas as eventuais toxinas dos seus pomidori. Tolice. E inutilidade. Na realidade, estavam queimando o que existia de nutriente na matéria-prima.

    Continua após a publicidade

    Hoje, sabe-se que em meros cinco minutos de fogo de médio porte, acima de 60 graus centígrados, um vero sugo de tomates começa a perder todos os seus nutrientes principais, os sais minerais que se sublimam com a água evaporada. O pavor, de todo modo, se transformou em tradição. Determinados chefs amadores, e mesmo os profissionais, se envaidecem quando afirmam a demora quase absurda com que cometem os seus molhos. Oficialmente, o primeiro mestre a se aproveitar sabiamente do tomate numa panela foi o romano Francesco Leonardi, cozinheiro predileto de Catarina II da Rússia. A Leonardi, cujo apogeu pode ser datado entre 1750 e 1780, se atribui a receita de sugo que serve de base a todas as outras espalhadas pela Terra: solanácea macerada em azeite, na companhia de um pouco de cebola, cenoura e salsão, tudo refogadinho meigamente e então passado numa peneira ultrafina.

    Por emulação, os chefs franceses da imperatriz Eugénie, mulher de Napoleão III, acabariam introduzindo o molho de tomates na corte de Paris. A rendição total ao sucesso do produto aconteceu por intermédio do naturalista Charles Darwin (1809-1882), o pesquisador da origem e da evolução das espécies. Um fanático pela solanácea, quase diariamente Darwin se aboletava em casa num banquinho de jardim bem à frente de um pomar de tomateiros, e lá ficava minutos a fio, a soar um cintilante trombone, na esperança de estimular o crescimento dos frutos com a sua música solene. Pelo menos é o que consta.

    Do molho de tomates nasceu o catsup ( na versão chinesa ) ou Ketchup (interpretação britânica da palavra ). A raiz da preciosidade é discutível. Não, contudo, a delícia da sua combinação, o suco reduzido da fruta na companhia de um bom vinagre e especiarias. Num dos seus mágicos livros. As aventuras de Mr. Pickwick, datado de 1836, o inglês Charles Dickens fez o seu caro personagem encerrar cripticamente uma carta: “Um picadão e molho de tomates. Do seu Pickwick”. Com certeza o filósofo ambulante de Dickens se referia ao Ketchup.

    O momento culminante da história do tomate levaria pouco além de cinqüenta anos para eclodir. Aconteceu em Nápoles, em junho de 1889, quando o pizzaiolo Raffaele Esposito foi convidado a preparar em repasto em homenagem à rainha Margherita, da Itália recém-unificada. Esperto e politiqueiro, Esposito resolveu compor uma pizza nas três cores da bandeira do país, o verde, o branco e o vermelho. Resolveu a questão cobrindo o disco de massa com purê de tomates frescos, lascas de mozzarella de búfala e folhas rebrilhantes de manjericão. Elogiado por sua Majestade, deu à pizza o nome, Margherita.

    A solanácea, que já se casava perfeitamente ao macarrão em suas infinitas variedades, encontraria mais um motivo para pretender a eternidade. Cerca de uma década atrás, um levantamento da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, colocou o tomate na décima quarta posição entre os alimentos mais nutritivos da natureza – atrás dos brócolos, espinafres, couves-de-bruxelas, vagens, ervilhas, aspargos, alcachofras, couves-flores, batatas-doces, cenouras, milho verde, batatas comuns e repolhos. Ao mesmo tempo, porém, o tomate foi relacionado na liderança dos alimentos que, pelo volume de seu consumo, mais contribuem com nutrientes para as dietas da humanidade: à frente das laranjas, batatas comuns, alfaces, milho verde, bananas, cenouras, repolhos, cebolas, batatas-doces, ervilhas, espinafres, brócolos, vagens, aspargos e couves-flores. Um grande passo para uma iguaria tão jovem.

    Continua após a publicidade

    De baixíssimas calorias, meras dezenove a cada 100 gramas, o Solanum lycopersicum é riquíssimo em vitaminas e sais minerais, particularmente sódio, potássio, cálcio, fósforo e ferro, vitamina A (um agente da defesa orgânica contra as infecções ) e vitamina C (ou ácido ascórbico, protetor do sistema vascular e importante na cicatrização de machucaduras). Opostamente ao que se imagina, o tomate é um produto ácido somente na lenda. Uma das suas qualidades principais: alcaliniza, ou torna básicos, os fluidos do corpo, a água, o soro e o sangue, complicando, assim, a proliferação de bactérias e outros microorganismos indesejáveis.

    Melhor, como sugere o seu próprio nome italiano, o tomate adora absorver as energias do Sol. Consegue conservá-las até o amadurecimento e as desprende, saudavelmente, num simples contato com os lábios, a língua e as papilas gustativas. E não se devem retirar a sua pele e suas sementes a não ser em casos extremos de dificuldades digestivas e estomacais. As sementes, principalmente, são recobertas por uma substância mucilaginosa, viscosa, que lubrifica as paredes intestinais e facilita o desprendimento dos dejetos. A pele, por sua vez, contém a celulose que dá consistência aos alimentos. Muita gente acredita que o tomate estimula as diarréias. Errado. Esse risco só existe quando se ingere o fruto sem a casca. De ação desintoxicante e regeneradora dos tecidos, o seu suco fresco e natural, ingerido imediatamente depois de perpetrado, para que as vitaminas não se enfraqueçam, auxilia na terapia das inflamações e de certos distúrbios cardíacos produzidos pelo espassamento do sangue.

    Na gastronomia, devem-se escolher, invariavelmente, aqueles bem firmes, homogeneamente vermelhos, que os feirantes costumam vender para saladas. E fugir dos que os mesmos feirantes, picaretas, oferecem para o molho. Esses, infelizmente, não passam de frutos passados e amassados nos fundos das caixas, coisa que gente ignorante ou inescrupulosa não hesita em mandar adiante a fim de salvar o seu bolso.

    Para saber mais:

    Ardente prazer

    (SUPER número 1, ano 4)

    Continua após a publicidade

    O mais fino dos sentidos

    (SUPER número 10, ano 7)

    Ouro rubro o ano inteiro

    Existem no planeta vários tipos diferentes de tomate. O caseiro e mais comum se chama, apropriadamente, money maker, fazedor de dinheiro. É abundante nos cachos da haste-mãe, mas por ser tão prolífico acaba oferecendo um resultado irregular no tamanho e na cor. A sua contrapartida é o marmande, o tomatão-caqui, um híbrido de evolução complexa que exige um solo de colina para a maior movimentação da águas ao redor das suas raízes. Na Itália predomina o espetacular San Marzano, de desenho alongado, polpa muito espessa e sementes miudinhas.

    Originalmente, o tomate medrava e amadurecia apenas nos meses de primavera, de setembro a dezembro no hemisfério sul, de março a junho no hemisfério norte. O homem, contudo, aprendeu a controlar as manhas da matéria-prima. Hoje é possível, digamos assim, enganar o tomateiro, por meio do calor artificial das estufas, de modo que ele proponha os seus frutos no ano inteiro sem variações de qualidade. No Brasil, o Estado de São Paulo dispõe das mais modernas e preciosas condições de produção, por causa da proximidade de grandes indústrias de processamento de molhos e purês. Em peso, a colheita nacional de tomates atinge a casa dos 2 milhões de toneladas anuais – quase um terço do total proveniente de São Paulo. O Estado de Pernambuco ocupa o segundo lugar, com aproximadamente 280 mil toneladas.

    À moda do autor

    A receita que segue carrega uma sabedoria de cinco gerações – com os devidos enriquecimentos. Trata-se do sugo essencial de tomates que herdei de meus ancestrais e que atualmente cometo de acordo com os modernos parâmetros que a teoria e a prática me ensinaram. Sua companhia ideal: obviamente os spaghetti de número 8.

    Continua após a publicidade

    Ingredientes (para oito pessoas):

    – um salsão inteiro

    – duas cenouras

    – 6 colheres (de sopa) de azeite de oliva

    Continua após a publicidade

    – 6 colheres (de sopa) de manteiga

    – 6 quilos de tomates maduros mas de polpa rija, cortados ao meio e livres do entalhe das hastes e dos eventuais brancos internos

    – 100 gramas de cogumelos secos

    – sal, pimenta-do-reino moída no momento e noz-moscada raladinha na hora

    Modo de Fazer

    Abro o salsão e lavo perfeitamente suas folhas, do bulbo aos verdes superiores. Corto em tiras, esfregando com vigor. Elimino alguns milímetros de suas cabeças e corto em fatias, grosseiramente. Num caldeirão bem fundo, aqueço o azeite e a manteiga, sem permitir que dourem. Lanço o salsão e as cenouras. Mexo, entusiasmadamente, com uma colher de madeira, até que comece, a transpirar, cerca de 3 a 4 minutos.

    Despejo os tomates. Mexo e remexo por mais cerca de 2 a 3 minutos. Rebaixo a chama ao mínimo viável. Tampo a panela. Mantenho por 15 minutos, remisturando a cada 3. Agrego os cogumelos. Mexo e remexo. Mantenho por mais 15 minutos, sempre com o caldeirão coberto. Retiro. Bato tudo no liquidificador, de maneira a injetar ar no molho e a torná-lo mais leve. Passo numa peneira fina. Devolvo à panela e condimento com sal, pimenta-do-reino e noz-moscada. Observação: com a mesma base é possível conseguir um excelente molho de tomates e carne.

    Para as mesmas oito pessoas, uso uma peça bem torneada e sem gorduras de coxão duro, 1 quilo, mais um pedaço de uns 10 centímetros de lingüiça calabresa e picante. Depois de refogar o salsão e as cenouras, incorporo o músculo e a lingüiça e lhes dou uma rápida e equilibrada bronzeada. Então, despejo os tomates. Quando retiro os ingredientes para batê-los no liquidificador, deixo o músculo e a lingüiça de lado – e os devolvo ao molho a fim de reaquecer tudo. Nesse caso, dependendo da textura da carne, talvez seja preciso mantê-la em cozimento por mais tempo além do indicado. O ponto ideal ocorre quando o músculo se mostra macio e quase desmanchável à ponta de um garfo.

    Publicidade
    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Oferta dia dos Pais

    Receba a Revista impressa em casa todo mês pelo mesmo valor da assinatura digital. E ainda tenha acesso digital completo aos sites e apps de todas as marcas Abril.

    OFERTA
    DIA DOS PAIS

    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de 9,90/mês

    Digital Completo
    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de 9,90/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.