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A nova cara da sífilis

A mais traiçoeira das DSTs sempre acaba voltando, e por um motivo insólito: o remédio contra ela é barato demais.

Por Felipe Germano
Atualizado em 10 jul 2023, 18h37 - Publicado em 13 jun 2017, 16h31

Começa com um machucado. Indolor, costuma não ser bonito, mas também não é o fim do mundo. Quando aparece na área genital, fica evidente nos homens, mas pode acabar escondido dentro da vagina sem chamar qualquer atenção. Há ainda outros casos discretos, como na garganta ou no ânus. Aí, quando você está começando a se preocupar, Bam! Desaparece. Parabéns! Seu sistema imunológico é mesmo incrível, né? Na verdade, não. Você só passou para a próxima etapa de uma doença que, a curto ou longo prazo, pode atacar seu cérebro, mudar a estrutura dos seus ossos, deformar seu rosto e matar seus filhos. Você tem sífilis.

Essa história está se repetindo mais do que o esperado no Brasil. Em outubro de 2016, o Ministério da Saúde chegou a reconhecer que a situação estava fugindo do controle e decretou a epidemia. Não é exagero, nossos números são assustadores. Desde 2010, quando os hospitais passaram a ser obrigados a repassar seus dados sobre a doença para o ministério, foram notificados quase 228 mil novos casos; entre 2014 e 2015, houve um aumento de 32% nos casos de sífilis entre adultos – e mais de 20% em mulheres grávidas.

A maior parte dos casos está na região Sudeste (56%), a mais urbanizada e desenvolvida do País. Só para ter uma ideia do desastre, em 2015 tivemos 6,5 casos de bebês infectados a cada mil nascidos vivos; o valor é 13 vezes maior do que a Organização Mundial da Saúde considera aceitável.

Agora, se você não prestava realmente muita atenção nas aulas de educação sexual, é bem capaz que não saiba o que é, de fato, essa doença. Sífilis é o nome dado à infecção decorrente da bactéria Treponema pallidum. Ela invade o corpo em quatro fases. Cada etapa determina o quão dominado ele está pelos micro-organismos. A primeira, já citada no começo desse texto, é rápida (dura no mínimo quatro e no máximo oito semanas) e se manifesta como uma ferida indolor que desaparece sozinha, sem deixar rastros.

Imagem aproximada de erupção alérgica causada por sífilis.
(AlxeyPnferov/Getty Images)

O fato de o machucado não doer está longe de ser bondade. É estratégia de sobrevivência das bactérias. Se não dói, dá para transar – e disseminá-las. A segunda fase é ainda mais favorável para os micróbios. A doença volta a dar as caras entre seis semanas e seis meses após os machucados genitais sumirem. O infectado pode apresentar feridas pelo corpo, manchas vermelhas e, sobretudo, lesões na palma das mãos ou dos pés – sintomas que podem ser facilmente confundidos com uma alergia cutânea.

E adivinha só: se você tomar um antialérgico, é provável que as feridas sumam. O que é péssimo. As reações afinal são tentativas do corpo de sinalizar a doença, e uma medicação equivocada para abafar os sintomas mascara o pedido de socorro. Uma vez que os sinais se vão mais uma vez – mesmo sem medicação isso acontece –, passe livre para voltar a transar e multiplicar a espécie – da bactéria.

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E começa a terceira fase da doença: a sífilis latente. O nome não é à toa. Nesse período (que pode durar até 40 anos), a sífilis fica reclusa. Na verdade, ela perde até seu caráter infeccioso; ou seja, o portador não passa mais a bactéria para frente. Fica tudo bem até explodir a sífilis terciária, fase aguda da moléstia. As úlceras que começam a brotar pelo corpo são tão agressivas que, em regiões de contato direto da pele com ossos, como no crânio, o esqueleto começa a ser corroído.

Na tíbia, principal osso da canela, o corpo até tenta combater a degeneração: conforme a erosão óssea aparece, o estrago vai sendo calcificado. A região afetada começa a engrossar e, com o avanço do desgaste, a canela vai ficando curvada. Em alguns casos, a bacia também é afetada e o doente perde a capacidade de andar em linha reta.

Uma das maneiras mais antigas de identificar portadores de sífilis, inclusive, é ver se a pessoa caminha como um pato, rebolando por causa da bacia deteriorada. Implacável, a infecção ainda ataca os sistemas vascular e nervoso – o que pode acontecer precocemente entre a primeira e a segunda fase. Quando a bactéria finalmente ocupa o cérebro, o infectado começa a sentir alterações de humor e pode desenvolver demência. É a chamada neurosífilis. Nesta última fase, finalmente, transar não ameaça mais aos outros. A sífilis deixa de ser infecciosa e quer acabar somente com o portador.

Barato saindo caro

Ilustração de jovem com sífilis.

Nessa violenta investida pelos nossos corpos, as bactérias não perdoam ninguém. E um dos alvos mais frágeis é um grupo que tem sofrido particularmente com epidemias recentes no Brasil: as grávidas. Assim como o zika, a sífilis não poupa os bebês. Se uma gestante está infectada, em qualquer fase da doença, a criança pode nascer com sífilis congênita.

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59% das crianças nascidas de mães com sífilis também apresentaram sinais da bactéria. A condição pode ocasionar más formações neurológicas e ósseas, além do óbito – em 2015, 1,4% das crianças nascidas com sífilis congênita não sobreviveu. Não dá para dizer que é um número pequeno. Quando olhamos para o panorama geral, isso significa que, a cada 100 mil nascimentos, sete crianças não vivem nem um ano, por causa da bactéria.

Mesmo diante desse cenário de guerra, a sífilis está longe de ser uma sentença de morte. A infecção pode ser curada com um tratamento barato e ridículo de simples: algumas doses de penicilina. Se a doença for diagnosticada no primeiro ano, a cura se resume a apenas duas injeções de benzetacil, uma em cada glúteo. Sim, aquela mesma que você encontra na farmácia – e pode ser administrada, inclusive, para grávidas.

Se o diagnóstico só aparecer mais tarde, sem problemas: penicilina cristalina (uma versão mais poderosa do antibiótico) nela, dessa vez por um pouco mais de tempo, duas injeções por glúteo em três doses semanais. Esse procedimento consegue até mesmo impedir a passagem da bactéria da grávida para seu filho.

O tratamento na mãe também cura a criança. Quanto mais cedo o tratamento nela, menores os danos no bebê. Mas, caso a mãe dê à luz sem eliminar a bactéria do corpo, o bebê é automaticamente medicado. Recebe cristalina na veia por 10 a 14 dias – isso não recupera problemas neurológicos ou ósseos já causados pela doença, mas evita que a sífilis continue atacando o recém-nascido.

Mas como é que o Brasil conseguiu virar palco de uma epidemia tão facilmente curável? Umas das justificativas utilizadas pelo Ministério da Saúde é a queda no uso das camisinhas. Ela, de fato, é real – mas fica difícil jogar toda a responsabilidade em cima disso, porque os números da queda não são tão expressivos assim: em 2004, 58,4% dos jovens de 15 a 24 anos usavam o preservativo em relações casuais; em 2013 (ano da pesquisa ministerial mais recente sobre o assunto), o número baixou para 56,6%.

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No uso dentro de relações estáveis a proporção é parecida: em 2004 eram 38,8%; em 2013, 34,2%. O mais provável é que a acessibilidade da penicilina tenha passado de nossa maior aliada para nossa maior inimiga. O preço modesto, que deveria facilitar o acesso da população à droga, desestimula a indústria farmacêutica a fabricá-la. Resultado: em 2015, faltou penicilina nas prateleiras do Brasil.

E mesmo quando havia remédio aparecia um problema: ninguém na rede pública queria aplicá-lo. Até julho de 2015 era proibida a aplicação do medicamento pela equipe de enfermagem de locais que não estivessem equipados para evitar um choque anafilático. Na prática, se o posto de saúde não tivesse material para uma entubação, por exemplo, não poderia medicar portadores de sífilis. Pior ainda, se um enfermeiro do local resolvesse administrar penicilina, poderia ser responsabilizado por isso. O resultado foi o medo: segundo o Ministério da Saúde, 50% das equipes médicas evitavam aplicar penicilina por causa desse receio.

Há também uma culpa paterna pela disseminação da doença: 62% dos parceiros de mulheres grávidas com sífilis não tomam os medicamentos, dando continuidade ao ciclo da bactéria. Além disso, estamos ajudando as estatísticas contabilizando com mais precisão o número de casos nacionais de sífilis. Desde 2010, o diagnóstico é atrelado a uma notificação compulsória, ou seja, sempre que ela é detectada, esses dados têm se ser enviados ao ministério, para que o órgão entenda o tamanho do surto pelo qual o País está passando.

Vale ressaltar, porém, que isso não deveria aumentar o número de sífilis em crianças e grávidas. Desde 1986 o repasse de informações ao ministério é obrigatório para casos de sífilis congênita, e desde 2005 para os diagnósticos em gestantes. Mas a lógica segue: quanto mais preciso e amplo vai ficando o sistema, mais os números crescem. Isso dá margem para pensar que a epidemia pode estar acontecendo há mais tempo do que imaginamos.

Você é de onde?

Não se sabe exatamente quando, onde e como a sífilis surgiu. Uma das teses mais aceitas é de que a infecção seja uma doença das Américas que chegou à Europa quase que junto com a notícia do descobrimento do continente. Os pioneiros das grandes navegações teriam contraído a bactéria, que foi espalhada pela Europa quando eles retornavam para casa.

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Uma das evidências nessa direção é que a bactéria realmente existia por aqui antes de Cabral aportar. “Encontramos ossadas com mais de 4 mil anos de índios que tiveram sífilis”, afirma José Filippini, professor do Instituto de Biociências da USP. Para detectar a infecção, Filippini se aproveitava do estrago que a doença faz no corpo. “A sífilis tem marcas muito claras. Se eu pego uma tíbia (osso da canela) em formato de sabre, por exemplo, sei que as chances de ser um sifilítico são altas”, conta.

Outra teoria é a de que a sífilis sempre existiu na Europa, mas era diagnosticada equivocadamente. “Ela pode ser confundida com a lepra, por exemplo. Os que concordam com a teoria da sífilis pré-colombiana afirmam que ela talvez seja tão antiga quanto a humanidade. Diversas pesquisas afirmam que a bactéria surgiu na África e foi se espalhando pelo mundo junto com nossos ancestrais.

De volta para o futuro

Ilustração de jovem com sífilis.

O Ministério da Saúde, por meio da diretora Adele Benzaken, do Departamento de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), Aids e Hepatites Virais, explicou à SUPER como está tentando controlar a doença. “A sífilis nunca foi vista como prioridade aqui no Brasil. Declará-la oficialmente como epidemia, construir uma agenda sólida para o controle dela e pedir ajuda da população a respeito é importante para reverter o quadro”, expõe Adele.

“Você tem que examinar a situação. Analisar os grupos mais vulneráveis (prostitutas e usuários de drogas, por exemplo) e o restante da população. Se há um aumento repentino no número de infectados, e onde eles estão aparecendo. A sífilis é uma doença que precisa ser analisada por um tempo para entendermos se é um surto ou uma epidemia”, afirma Adele. Declarada a epidemia, os holofotes da mídia se voltam para o assunto, o que ajuda na conscientização popular.

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Mas expor a situação ao público é só uma das frentes de batalha. Outras medidas urgentes estão em curso. Com a declaração da epidemia, o governo está articulando para liberar o preço da penicilina, para que fique mais cara. E isso é bom para o combate à sífilis. Apesar de soar contraintuitivo, a realidade é que a indústria farmacêutica não tinha interesse em produzir um medicamento que não lhe desse uma margem de lucro alta – mesmo que curasse centenas de milhares de pessoas. Negócio é negócio.

Agora, a ideia é estimular um aumento na produção do remédio. Em 2016, como medida paliativa, mais de 1 milhão de doses do antibiótico foram importadas; outras 700 mil foram compradas aqui dentro. O plano é que o estoque atual dure até o fim de 2017, e que já em 2018 a produção atenda à demanda nacional.

Um parecer do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) também liberou a aplicação em postos de atendimento. “A restrição era absurda, a cada 100 mil são menos de três casos em que ocorre choque anafilático. É mais fácil ter uma reação dessa comendo algo em um restaurante – e lá não tem desfibrilador”, afirma Vencelau Pantoja, do Cofen.

Há também um cuidado progressivo com os diagnósticos. Entre 2001 e 2015 os testes rápidos entregues pelo SUS passaram de 1 milhão para 6 milhões; o Ministério da Saúde afirma que está instruindo médicos a falar sobre DSTs e a distribuir o exame na primeira consulta de pré-natal. Nesses casos, o resultado sai na hora, e a mãe já pode iniciar o tratamento. Outra promessa é uma parceria com o Ministério da Educação para que a sífilis e outras infecções sexualmente transmissíveis sejam apresentadas em sala de aula.

Dificilmente essas boas práticas resolverão o problema da sífilis no Brasil, mas podem amenizar o cenário. Ainda que, sem sentir dor, muitos brasileiros infectados não estejam nas preocupantes estatísticas só porque não foram ao médico perguntar sobre aquela feridinha que, olha só, já passou…

Do nível 1 ao game over

A sífilis funciona em fases. Os diferentes sintomas (ou a falta deles) ajudam a determinar a gravidade da infecção

1. Primária – Duração: 4 a 8 semanas

Na início, o único sintoma é uma ferida, indolor, na área infectada (pênis, vagina, ânus ou garganta). O machucado some no fim dessa fase.

2. Secundária – De 2 a 6 meses

Os principais sinais são machucados pelo corpo. Eles aparecem espalhados, mas se concentram na palma das mãos e nos pés.

3. Latente – De 2 a 40 anos

As feridas e os sintomas desaparecem. A partir desse estágio, ela não é mais contagiosa.

4. Terciária – Até a morte

A sífilis reaparece potente: deforma as pernas e ataca o rosto e o cérebro.

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