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A armadilha dos vapes

No Brasil, 20% dos jovens adultos já experimentaram. Nos EUA, virou um problema de saúde pública grave. Entenda em que pé se encontra a febre dos cigarros eletrônicos – que têm se mostrado tão perigosos quanto os convencionais.

Por Rafael Battaglia
Atualizado em 22 jan 2024, 10h17 - Publicado em 15 jul 2022, 10h05

Texto Rafael Battaglia | Ilustração Estevan Silveira 
Design Juliana Krauss e Luana Pillmann | Edição Alexandre Versignassi 

Reportagem publicada originalmente em julho de 2022

7 a 19 segundos. É o tempo que a nicotina do cigarro leva para chegar ao cérebro. Lá dentro, ela ativa o principal neurotransmissor do prazer. E dá-lhe prazer: comer chocolate eleva em 55% a liberação de dopamina; fazer sexo, 100%. A nicotina? 150%.

Com o tempo, essas doses contínuas de prazer acostumam o cérebro, que passa a precisar de doses maiores para se satisfazer. Instaura-se um vício. E não é só a descarga de dopamina que importa aí. É também a velocidade com a qual você obtém o efeito.

Cocaína inalável, por exemplo, sobe os níveis de dopamina em 400%, mas essa descarga vem só 3 minutos após o consumo. Já o cigarro, embora não cause tanta disrupção neuronal, tem efeito praticamente instantâneo. Isso torna a nicotina no mínimo tão viciante quanto cocaína, heroína ou metanfetamina. Com uma perversidade adicional: ela não altera nosso estado consciente, então o usuário pode passar o dia inteiro mimando os neurônios.

É o que 1,3 bilhão de fumantes fazem todos os dias. Com a nicotina, vêm junto outras 7 mil substâncias contidas no cigarro de tabaco – 69 delas comprovadamente cancerígenas, e outras tantas que transformam seu pulmão num cinzeiro com o passar dos anos. Essa história você já conhece. Oito milhões de pessoas morrem em decorrência do tabagismo todos os anos. É a doença de risco evitável que mais mata no mundo.

Quando a primeira geração de cigarros eletrônicos chegou ao mercado, no início dos anos 2000, havia o objetivo de atrair fumantes e fazê-los trocar o cigarro comum por uma alternativa menos tóxica. Os aparelhos aquecem a nicotina líquida armazenada ali, vaporizando-a (vem daí o termo vape, que virou sinônimo de cigarro eletrônico).

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A vaporização é mais suave que a combustão. Quando você queima alguma coisa, essa coisa se transforma em milhares de outras ao mesmo tempo. Boa parte delas arrasadoras para a saúde. Daí a toxicidade do cigarro comum. A vaporização, por outro lado, libera menos porcarias. Saem da equação o monóxido de carbono e o alcatrão, por exemplo, o que ao menos dá um alívio para os pulmões. Vamos falar mais sobre isso adiante. Mas o ponto, por agora, é: parecia uma solução interessante.

Não foi, porém. Passadas quase duas décadas, o que nasceu como uma promessa para diminuir o tabagismo se transformou em um problema de saúde pública. Primeiro porque o vapor até carrega menos toxinas que a fumaça de cigarro, mas isso não significa que as substâncias presentes ali sejam seguras. Segundo, porque expôs jovens que já eram avessos ao cigarro tradicional à nicotina, criando uma nova massa de dependentes químicos.

No Brasil, a comercialização dos vapes é proibida – mas isso não impede o consumo em larga escala. Segundo o Covitel, relatório divulgado neste ano pela Universidade Federal de Pelotas, quase 20% dos jovens de 18 a 24 anos já experimentaram algum tipo de cigarro eletrônico. É mais do que a porcentagem de pessoas da mesma faixa etária que consome cigarros comuns regularmente (12,1%).

Esquema infográfico sobre os dados do consumo de vapes no Brasil.
(Arte/Superinteressante)

No centro da discussão está a Juul, fabricante de cigarros eletrônicos que há poucos anos popularizou o produto pelo mundo – e acabou banida dos EUA em 2022 pelo FDA (Food and Drug Administration, a Anvisa de lá). Vamos à história dela.

A startup do vício

Em 2005, os jovens físicos Adam Bowen e James Monsees eram alunos da Universidade Stanford. Embalados pelo lançamento do primeiro cigarro eletrônico (criado no ano anterior pelo chinês Hon Lik), a dupla decidiu desenvolver a própria versão do aparelho, com o objetivo de ajudar fumantes a largarem o vício (eles próprios, inclusive). Nascia o Ploom, que apresentaram como projeto de mestrado – e decidiram comercializar.

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Mas o Ploom não vingou, e pelo mesmo motivo que outros aparelhos similares da época (aqueles tanques gigantescos): não entregava nicotina na quantidade e na velocidade suficiente para satisfazer os usuários de cigarro.

Anos mais tarde, Bowen e Monsees vieram com uma solução: misturar grandes quantidades de ácido benzoico à nicotina. A mistura das duas substâncias resulta no sal de nicotina, que chega de forma mais rápida ao cérebro. Não só. Ela também torna o princípio ativo mais palatável, o que permitia entulhar muito mais nicotina no líquido. Bingo.

Em 2015, então, Bowen e Monsees lançaram seu novo vape: o Juul. Ele chegou ao mercado com o dobro de nicotina de seus concorrentes: 5% do conteúdo de cada cápsula de líquido da marca (os “pods”), contra 2,5% dos rivais. Era o equivalente a um maço inteiro de cigarros. Cortesia do ácido benzoico: enquanto outros cigarros eletrônicos tinham de 0,2 a 2 mg/L da substância, o Juul tinha 44,8 mg/L.

O estrago estava feito. Em 2016, a empresa vendeu 2,2 milhões de vapes; no ano seguinte, 16,2 milhões. Em 2018, ela já dominava 75% do mercado americano de cigarros eletrônicos. A empresa levou quatro vezes menos tempo que o Facebook para atingir US$ 10 bilhões em valor de mercado.

Em 2018, a pesquisa National Youth Tobacco revelou um dado preocupante: havia 3,6 milhões de adolescentes americanos consumindo vapes regularmente. Entre os alunos do ensino médio, a taxa saltou de 11,7% para 20,8% – um aumento de 78%.
Naquele mesmo ano, a Altria/Philip Morris, segunda maior empresa de tabaco do mundo (e dona da marca Marlboro) comprou 35% da Juul por US$ 12,8 bilhões. A empresa de cigarros eletrônicos, então, passou a valer US$ 38 bilhões – o que, na época, correspondia a 40% de uma Petrobras.

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Em 2019, um juiz federal dos EUA ordenou que fabricantes de vapes enviassem pedidos de regulamentação ao FDA – até lá, poderiam continuar operando como já faziam. As empresas precisariam provar que o seu produto oferecia benefícios na redução do tabagismo convencional.

A agência ainda proibiu que vapes que funcionavam com cápsulas de recarga de nicotina (como o Juul) tivessem sabores. Foi um esforço para diminuir o consumo entre adolescentes, atraídos por sabores que iam da tradicional menta a, veja só, crème brûlée. Em 2020, a fatia de mercado da Juul entre os eletrônicos diminuiu para 42%. A essa altura, porém, não fazia grande diferença: já choviam modelos movidos a sal de nicotina, incluindo aparelhos das fabricantes de cigarros comuns, como a British American Tobacco e a Japan Tobacco International.

Os esforços para conter a epidemia dos vapes escorregaram em dois aspectos. O primeiro foi a demora do FDA para decidir a permanência das principais empresas de vapes no mercado americano (que dita as tendências para o resto do mundo): o prazo dado pela agência foi adiado em 2020 e, novamente, em 2021.

Segundo, o banimento dos vapes saborizados não incluiu a versão descartável do produto, que ainda não eram populares – mas que rapidamente se tornaram.

Nicotina sintética

Em 2020, a pequena empresa americana Puff Bar viu seu faturamento semanal saltar de US$ 14 mil para US$ 3 milhões. Pressões populares e judiciais fizeram o FDA banir a marca, que vendia vapes descartáveis e com saborzinho – mas ela voltou ao mercado em 2021, graças a uma brecha na lei.

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A nicotina é extraída das folhas de tabaco – e produtos feitos com a planta estão, por lei, sob o guarda-chuva do FDA. Mas e se fosse possível obter nicotina de outra forma, que escapasse da alçada do órgão? Foi o que a Puff Bar e diversas outras empresas fizeram: passaram a produzir vapes com nicotina sintética.

Feita em laboratório e sem o uso de tabaco, ela já era estudada desde os anos 1960. Mas, dada a abundância de tabaco para usar como matéria-prima, não havia razões para produzi-la comercialmente. Agora não mais: a demanda de empresas a fim de driblar o FDA criou um mercado para a substância.

Com seu arco-íris de sabores, a Puff Bar se tornou a queridinha entre os estudantes americanos: 26,8% deles a consumiam. O Juul se tornou só a quarta marca preferida entre os mais novos, com 6,8%:

Esquema infográfico sobre os dados do consumo de vapes, por estudantes, nos Estados Unidos.
(Arte/Superinteressante)

 

No Brasil, uma das marcas mais populares é a Ignite, que também usa nicotina sintética. A empresa americana nasceu com foco em produtos derivados de cannabis. Mas, em 2021, abandonou esse negócio e se concentrou em outro: vapes. O fundador da Ignite é o milionário americano Dan Bilzerian, jogador de pôquer e celebridade no Instagram, onde compartilha seu luxuoso estilo de vida com 33 milhões de seguidores. Em uma entrevista à revista Forbes, Bilzerian declarou que espera, um dia, vender a Ignite para alguma gigante do tabaco.

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Bom, o FDA só corrigiu a brecha da nicotina sintética em março deste ano. Desde então, o órgão passou a controlar as decisões de produtos contendo nicotina de qualquer origem. As empresas que usavam nicotina sintética foram proibidas de vender para menores de 21 anos, oferecer amostras grátis e de dizer que o seu produto é menos prejudicial que cigarro. Essas companhias foram obrigadas a submeter pedidos à agência para continuar no mercado. O da Puff Bar segue em análise, enquanto o comércio corre solto.

Em junho, o valor de mercado da Juul já havia despencado para apenas US$ 1,6 bilhão. Foi quando veio a decisão que ganhou o noticiário mundial: o FDA suspendeu a venda dos produtos da Juul em todo território americano. Segundo a agência, os estudos enviados pela empresa “levantaram preocupações devido a dados insuficientes e conflitantes”. Faltaram evidências que mostrassem que a permanência da marca seria apropriada para a proteção da saúde pública.

Também colaborou a epidemia de EVALI, sigla em inglês para “lesão pulmonar associada ao uso de cigarro eletrônico”. Ela hospitalizou milhares e, nos EUA, matou 64 pessoas.

A grande maioria dos pacientes de EVALI usou vapes com outro propósito: fumar óleo de THC – tetra-hidrocanabinol, o agente psicoativo da maconha. Mas o que causou a inflamação, pelo que se sabe até hoje, foi outra coisa: acetato de vitamina E, uma substância segura para ingestão, mas tóxica para inalação. Acontece que alguns produtores clandestinos dos EUA usavam acetato para espessar o líquido que seria vaporizado – ele dá a falsa impressão de haver mais THC na mistura.

Depois que a causa da EVALI foi descoberta, os casos diminuíram. Mas o acetato pode não ser a única causa da doença, já que há registros de casos em que os pacientes não consumiram THC (ou ao menos negam). “Há uma lista de substâncias candidatas que podem estar associadas ao EVALI, e os pesquisadores estão lutando para entender melhor esse problema”, diz Paulo Corrêa, coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).

Ilustrações de pessoas jovens, com diferentes características físicas, fumando cigarro eletrônico, de perfil.
Uma brecha na lei permitiu nos EUA a venda de vapes saborizados, os preferidos entre adolescentes. (Estevan Silveira /Superinteressante)

Não é só vapor

Mesmo se a EVALI não tiver relação com os vapes de nicotina, isso não significa que “está tudo bem”, claro. Uma pesquisa da Universidade Johns Hopkins analisou quatro tipos de vape em 2021 e descobriu mais de duas mil substâncias em seus aerossóis. A maioria ainda não foi identificada, mas os cientistas encontraram um tipo de pesticida e compostos associados à combustão.

Pois é: isso coloca em dúvida a ideia de que os cigarros eletrônicos apenas vaporizam o seu conteúdo. Se há combustão de qualquer coisa ali (seja do líquido, seja da resistência que aquece o líquido), o que temos é um produto que pode ser tão danoso quanto os bastões de tabaco.

“No fim das contas, é o mesmo produto de entrega de nicotina, só que em uma nova roupagem”, defende Silvana Turci, coordenadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Fiocruz.

E há o óbvio: mesmo se os vapes só produzissem nicotina num estado platonicamente puro, ainda assim teríamos um problema de saúde pública. Primeiro pelo potencial viciante. Segundo porque ela está relacionada a doenças cardiovasculares e pode dar origem a substâncias cancerígenas (as nitrosaminas), além de prejudicar o desenvolvimento do cérebro de crianças e jovens adultos.

Ilustração de uma placa de
Existem mais de 2 mil substâncias na fumaça dos vapes – incluindo algumas associadas à combustão. (Estevan Silveira /Superinteressante)

O que pode dar errado

Não existe hexa que supere a vitória do Brasil na luta contra o tabagismo. Ao lado da Turquia, somos exemplos mundiais no assunto, com uma das prevalências mais baixas de fumantes: 9,1% da população adulta (em 1989, era 35%). Desde 2002, o SUS oferece tratamento a quem deseja largar o vício.

Especialistas, contudo, temem que os vapes possam atrapalhar essa campanha. “Usuários de cigarro eletrônico têm três vezes mais chance de experimentar cigarro comum, e quatro vezes mais risco de se tornar um fumante convencional”, alerta Liz Maria de Almeida, coordenadora de Prevenção e Vigilância do Instituto Nacional do Câncer (INCA).

Desde 2009, a Anvisa proíbe a venda dos DEFs – Dispositivos Eletrônicos para Fumar. Entram nessa classificação vapes e outros aparelhos, como os de tabaco aquecido, que esquentam o fumo em até 350°C – o que liberaria menos substâncias tóxicas do que a combustão, que ocorre a 800°C. Já faz tempo que a Philip Morris tenta emplacar no Brasil o iQOS, seu dispositivo de tabaco aquecido vendido em mais de 60 países.

Lei, portanto, existe. Mas falta fiscalização: é extremamente fácil comprar vapes na internet, em tabacarias ou com o ambulante que passa de mesa em mesa no boteco. Em 2021, um relatório da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) revelou que os aplicativos iFood, Rappi e James permitiam a venda de vapes (além de outros produtos derivados do tabaco, que não podem ser vendidos online).

Neste ano, a Anvisa recolheu novas evidências técnicas e científicas sobre os DEFs, que poderiam servir de base para uma eventual revisão da lei. Mas não: no início de julho, a agência decidiu, por unanimidade, manter o banimento.

Isso, claro, não basta para conter o consumo dos vapes. O veto precisa estar aliado a medidas mais rígidas de fiscalização e programas de conscientização, sobretudo para adolescentes. Mas dá para enxergar uma luz no fim desse túnel. Nos EUA, 65% dos estudantes que fumam cigarro eletrônico desejam largar o dispositivo, e 60% já se mexeram de alguma forma para atingir esse objetivo. Ótimo. A melhor forma de lidar com qualquer vício é abandoná-lo. Seu eu do futuro vai te agradecer.

Agradecimentos: João Maurício Castaldelli Maia, psiquiatra e membro do Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas da USP.

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