Revista em casa por apenas R$ 9,90/mês
Continua após publicidade

Sobre moscas brancas e talentos raros

Uma das descobertas mais importantes da história da genética foi feita por um flautista fascinado por insetos mutantes.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
19 jul 2024, 16h00

Carta ao leitor da edição 465, de julho de 2024.

Edward Lewis era um nerd com dois fascínios: flauta transversal e insetos mutantes. Esse geneticista americano pagou o primeiro ano de faculdade com uma bolsa para jovens músicos, mas largou Mozart para ser biólogo – e dedicou décadas de sua carreira no Instituto de Tecnologia da Califórnia a estudar moscas com quatro asas. 

Parece banal. Mas esse é o equivalente artrópode da deusa indiana Lakshmi, com seus quatro braços. Moscas comuns têm apenas duas asas. Atrás delas, fica um par de órgãos minúsculos chamados halteres ou balancins – que evoluíram como asinhas atrofiadas, responsáveis por estabilizar o voo em vez de sustentá-lo (mais ou menos como os mamilos masculinos, que poderiam se tornar seios na adolescência, mas ficam na estaca zero). 

Lewis descobriu que a mosca Lakshmi e outras aberrações – como insetos com patas no rosto ou antenas no traseiro – eram resultado de erros em um conjunto de genes conhecidos pelo acrônimo Hox. Do mesmo jeito que um arquiteto desenha a planta de uma casa antes de erguê-la, os Hox dizem onde ficará cada pedaço do corpo da mosca quando ela ainda é um embrião. Alguns mostram a posição da cabeça, outros indicam a ordem de aparição de diferentes seções do tórax, um aponta a localização do traseiro…

Um cromossomo é um fiozão de DNA enrolado, e os genes se distribuem ao longo desse fio como pérolas em um colar. O interessante é que os Hox aparecem na mesma sequência das partes do corpo que cada um deles constrói. Ao trocá-los de lugar, você decide de onde brota cada coisa. Ponha o HOX dos braços na cabeça e voilà: o bichinho nascerá com patinhas na testa.

Continua após a publicidade

Esses mesmos genes aparecem em todos os outros animais. Nas águas vivas, determinam qual será a ponta dos tentáculos e qual será a extremidade arredondada. Em nós, ditam a sequência das vértebras na coluna. Você, seu cachorro e a pulga no seu cachorro são todos organizados por Hox ao longo do eixo ântero-posterior (o jeito chique de dizer “da cabeça à bunda”).

Essa é só uma das semelhanças entre os sapiens e todos os outros seres vivos da Terra. Em 2014, o Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano da USP espalhou 34 mil cartazes pelo metrô de São Paulo informando nosso grau de parentesco genético com outras espécies: humanos compartilham 11% de seu DNA com um grão de arroz, 60% com uma mosca e 96% com um chimpanzé. 

Diante desse grau de semelhança com o resto da natureza, pegar pedaços de outros seres vivos parece uma maneira óbvia de zerar a fila de transplantes. Nos últimos anos, pesquisadores no mundo todo têm se aproximado cada vez mais do objetivo de usar rins ou corações de porcos em humanos.

Continua após a publicidade

Do ponto de vista estritamente técnico, o problema não são os 84% de genes que temos em comum, mas os 16% que são diferentes – alguns deles estão por trás de rejeições letais. Já do ponto de vista ético, os 84% são a questão: se esses animais são tão parecidos conosco, até que ponto é justo sacrificá-los para nos salvar?

O repórter Bruno Carbinatto aborda esses e outros problemas dos xenotransplantes na matéria de capa deste mês, com a maestria de um jornalista que joga em qualquer posição: ele voltou à Super este ano após três primaveras na cobertura econômica. Sabe como é: nada contra a economia, muito menos contra flautas transversais. Mas fico feliz que Lewis seguiu carreira na genética – e o Carbinatto, no jornalismo de ciência. Agora, tenho o prazer de falar desses dois talentos raros aqui na Super. Verdadeiras moscas brancas.

Retrato de um homem branco com cabelo preto de comprimento curto, sobrancelhas pretas e grossas, olhos castanhos, barba e camisa de botão verde.

Bruno Vaiano
Editor-chefe
bruno.vaiano@abril.com.br

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Oferta dia dos Pais

Receba a Revista impressa em casa todo mês pelo mesmo valor da assinatura digital. E ainda tenha acesso digital completo aos sites e apps de todas as marcas Abril.

OFERTA
DIA DOS PAIS

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.