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Quanto mais ameaçado o Irã se sente, mais se torna uma ameaça ao mundo

O Irã estava se tornando um país mais aberto ao progresso. Com a crise internacional, o cenário é outro: propício ao aumento do conservadorismo.

Por Renato Machado
23 jan 2020, 15h18

Vestindo preto, uma multidão tomou o centro de Teerã para dar adeus a Qassem Soleimani, morto pelos EUA dia 2 de janeiro, em Bagdá. Eram iranianos de todas as idades e classes sociais, que atacavam os inimigos de sempre: “morte aos Estados Unidos”, “morte a Israel”. Tudo indicava um povo unido, exaltando seus líderes e dando carta branca para vingarem a morte do segundo homem mais importante do país. Mas essa aparente união durou pouco. Quando um avião caiu na cidade, matando 176 pessoas, os iranianos perderam o fôlego. Bastou o governo admitir culpa no incidente para uma parcela voltar a gritar. Dessa vez, contra seus líderes. C0ntra o próprio aiatolá: “morte a Khamenei!”.

Em uma semana, o Irã se fragmentava… de novo. Os iranianos enfrentam há quase dois anos uma grave crise econômica, que jogou a população contra o governo do presidente Hassan Rouhani. A fonte dos problemas recentes está na imposição de sanções econômicas pelos EUA, que em maio de 2018 se retiraram do acordo nuclear, assinado também por China, Rússia e potências europeias – o chamado JCPOA1. Foi como o bloqueio continental de Napoleão contra a Inglaterra. Os EUA proibiram o resto do mundo de comprar petróleo do Irã, e a relativa bonança trazida pelo JCPOA terminou bruscamente. A produção despencou pela metade, para 2,1 mil barris diários – que o país agora vende clandestinamente, transferindo o produto em alto-mar, de um navio a outro.

As sanções comerciais, que se aplicam a quase tudo, afugentaram dezenas de multinacionais, que temeram retaliações nos EUA: Renault, Kia, GE. O PIB tinha crescido 9,7%  no biênio 2016-2017.Agora, está derretendo. Caiu 4,8% em 2018 e mais 9,5% em 2019. Isso mais uma inflação que beira os 50% ao ano.

A queda na venda de petróleo provocou escassez de dólar, que fez disparar a taxa de câmbio, encarecendo todos os importados. O governo decidiu, para melhorar suas contas, aumentar o preço dos combustíveis em 300%, em novembro. A população protestou, e a repressão policial deixou 1,5 mil mortos. O vilão da história acabou sendo o governo do moderado Rouhani. Os iranianos, principalmente os mais pobres, estão na penúria por culpa das sanções americanas. E quem foi que acreditou nos americanos e negociou com eles? Rouhani e sua equipe. Mas o governo é apenas uma parte de um regime complexo, com disputas internas, manipuladas pelo líder supremo.

Com a revolução de 1979, o Irã tornou-se uma teocracia, implantando a doutrina velayat-e faqih, ou “governo dos juristas islâmicos”. O povo elege presidente e parlamentares em eleições multipartidárias, como numa democracia. Mas, como numa ditadura, há um líder “supremo”: um clérigo que supervisiona tudo. É ele quem aponta comandantes militares, o chefe do Judiciário, autoriza declarações de guerra, monta o órgão que veta candidatos às eleições. Nos últimos 30 anos, esse homem forte é o aiatolá Ali Khamenei.

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Com exceção dos eleitos – que podem ser linhas-duras, moderados ou reformistas, ao gosto do eleitor –, o resto da estrutura do regime, indicada pelo líder, tende a ser formado por conservadores, mantenedores do sistema. Todos chamuscaram-se com os protestos de novembro, mas o divórcio mais impactante aconteceu entre a população e o presidente, que se elegeu prometendo mais direitos sociais.

Nesse cenário, o assassinato de um herói da guerra Irã-Iraque (1980-1988) e do combate ao Estado Islâmico deu um respiro ao governo. Na cúpula, o discurso foi afinado para exaltar a biografia de Soleimani, criticar os EUA e prometer vingança. A oposição mais liberal – sim, ela existe – calou-se no momento de comoção nacional. O país estava fechado contra os americanos.

Mas por que o general incomodava os EUA? Soleimani era um mestre da guerra de guerrilha: treinava milícias que, na visão americana, desestabilizam o Oriente Médio. A história que o Irã conta é outra: a unidade territorial do país e sua sobrevivência em meio a fortes adversários (Arábia Saudita e Israel) numa região conturbada devem-se em grande parte ao gênio estratégico do general, que montou uma rede de alianças leais à República Islâmica: os Houthis, no Iêmen; Hezbollah, no Líbano, e grupos xiitas no Iraque2.

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Herói, sim; unanimidade, não. Como em um bom filme iraniano, o roteiro reserva surpresas. Soleimani era um dos grandes nomes da Guarda Revolucionária, a mesma que abateu o avião da Ukraine Airlines e que, em novembro, ajudou a reprimir os protestos populares. Uma parte daqueles manifestantes gritou “Soleimani assassino” quando voltou às ruas, em janeiro. Além disso, criticou a “incompetência” do governo, pediu liberdade e transparência, exigiu a renúncia do líder supremo.

Democracia de fachada

Esse grupo entende que a democracia iraniana é uma farsa, moldada para conferir verniz de legitimidade ao regime. Sua desilusão deverá se traduzir em menor comparecimento às urnas, nas eleições legislativas de fevereiro, o que, ironicamente, deve contribuir para que os conservadores vençam.

Enquanto isso, o Irã se afasta mais do Ocidente. Parou de cumprir sua parte no acordo nuclear e esgotou a paciência da Europa, que acionou a cláusula gatilho, abrindo caminho para reimposição de antigas sanções.

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O país volta a se parecer com o Irã do “eixo do mal”, dos tempos de George W. Bush: sancionado economicamente, isolado e muito perto de obter a bomba atômica. Outra carta na manga dos iranianos é cumprir a ameaça  de parar de gastar com os 3 milhões de refugiados afegãos no país, que acabariam emigrando para a Europa.

Um clichê a respeito do Irã, aliás, é o de que o país está em constante conflito entre “modernidade e tradição”. Há dois anos, no auge do JCPOA, a bonança econômica instigava mudanças na sociedade local e ameaçava como nunca as bases conservadoras. As mulheres arriscaram-se a mostrar mais o corpo e os cabelos. O rap virou o ritmo preferido dos jovens. O cachorro se tornou animal doméstico – apesar de proibido pelo islamismo –, e petshops abriram por Teerã. Aos poucos, esses avanços estão desaparecendo, e o que se vê são pôsteres com a foto de Soleimani. S

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