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Os motivos racionais por trás da truculência de Putin

A Rússia apoia o regime infame da Síria, roubou um território da Ucrânia e parece pronta para entrar em guerra a qualquer momento. Entenda as razões

Por Mauricio Horta
Atualizado em 28 jun 2018, 10h59 - Publicado em 26 jun 2018, 16h55
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  •  (SERGEI KARPUKHIN/Reuters)

    No dia 20 de outubro de 2015, o ditador sírio Bashar al-Assad viajava secretamente a Moscou, em sua primeira viagem internacional desde o início da guerra civil deflagrada em 2011. “Antes de mais nada”, disse Assad ao lado de Vladimir Putin, numa sala neoclássica do Kremlin onde líderes estrangeiros são recebidos, “quero expressar à liderança e ao povo russos minha gratidão pela ajuda que estão dando ao meu país”. Fazia só três semanas que Putin tinha iniciado na Síria uma intervenção militar que transformaria o tabuleiro da região. Hoje, Assad, com apoio de Rússia, Irã e Hezbollah, controla as principais cidades sírias e as rotas entre elas; o autoproclamado “Estado Islâmico” foi praticamente desbaratado; e rebeldes apoiados pelo Ocidente resistem em bolsões isolados. Para mexer no Oriente Médio, é melhor agora combinar com os russos. Mas não deve haver dúvida: Putin protege Assad não por viverem um romance antiliberal. O fato é que a intervenção na Síria satisfaz três objetivos da política externa russa: aumentar sua credibilidade junto a governos aliados, garantir a navegação no Mediterrâneo e reafirmar a posição do país como grande potência – não nos moldes da URSS, na bipolaridade da Guerra Fria, mas nos do Império Russo, no conserto europeu do século 19.

    Putin considera o fim da URSS a maior catástrofe geopolítica do século 20. No período em que tentou se recuperar, a Rússia teve dificuldade em manter aliados, e o Ocidente se expandiu em sua direção. “Revoluções coloridas” apoiadas pelo Ocidente derrubaram governos pró-russos na Geórgia (2003) e na Ucrânia (2004). Já na Líbia, antiga compradora de armas russas, a Otan derrubou Muammar Gaddafi numa intervenção em 2011. O líder líbio foi parar nas mãos de rebeldes, que expuseram seus restos mortais em público. Armas líbias foram traficadas para outras guerras civis, e o país mergulhou na anarquia. Esse desastre demonstrou a importância de retomar a credibilidade de Moscou junto a aliados. Ao apoiar Assad, mesmo com o ditador acusado de usar armas químicas, Putin mostra que quem está com ele está seguro.

    A geopolítica reserva um lugar especial para a Síria na política externa russa: a república árabe oferece aos navios russos uma posição estratégica no Mediterrâneo, tanto para defender o acesso aos estreitos de Bósforo e Dardanelos, controlados pela Turquia, quanto para atingir as principais rotas marítimas do planeta. É uma mão na roda para um país com péssimas saídas para o mar. A Rússia é uma potência terrestre pela própria natureza: tem o maior território do mundo e recursos naturais abundantes. Mas sua presença nos mares é contida por uma coroa de gelo e fronteiras terrestres. Seus portos, ademais, são tão escassos quanto problemáticos. A Leste, o de Vladivostok é cercado pelas ilhas do Japão, aliado dos EUA. Ao Norte, os do Mar Ártico ficam congelados boa parte do ano. A Oeste, os do Mar Báltico são cercados por membros da Otan, a aliança militar ocidental criada após a 2 a Guerra justamente para antagonizar a Rússia. Ao sul, o porto de Sevastopol, na Crimeia, é alvo de disputas históricas com o Ocidente. Depois da dissolução da URSS, a península ficou com a Ucrânia, e só voltou para a Rússia com a anexação forçada de 2014.

    A Rússia tem péssimas saídas para o mar. Para driblar isso, Putin anexou a Crimeia e engatou um romance com Assad.

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    Controlar Sevastopol significa manter uma frota no centro do Mar Negro. A partir de lá, a Rússia pode controlar a região do Cáucaso – passagem de oleodutos e criadouro de separatismos – e também defender-se de um eventual ataque naval da Otan. É bastante, mas não tudo: falta uma base do outro lado do Bósforo, para garantir a passagem pelo estreito. É aí que entra a Síria.

    Moscou tem uma base naval em Tartus, cidade síria no Mediterrâneo oriental, desde 1971, quando Hafez Al-Assad, pai de Bashar, tornou-se presidente. As relações entre os dois países mantiveram-se firmes até o fim da URSS, mas a perda da Crimeia reduziu a presença russa nos mares ao Sul. Foi a intervenção de 2015 que permitiu a volta da Rússia àqueles cantos. Putin não só expandiu a base naval de Tartus, como também instalou uma base aérea na vizinha Latáquia. Com isso, a Rússia consegue agora projetar-se para regiões onde havia perdido influência, como o Oceano Índico e o norte da África. A Síria desponta, portanto, como exemplo de como a Rússia pode contornar suas limitações geográficas usando bases em territórios de aliados.

    Um país, duas cabeças

    Em 1993, depois de largar a foice e o martelo, a Federação Russa voltou a ostentar como símbolo nacional o brasão de armas do Império Russo. Nele, uma águia bicéfala vira uma cabeça para o Oeste e outra para o Leste. O desenho, que representa a vastidão territorial russa, reflete também um país dividido em duas identidades nacionais: a ocidentalista e a eurasiana.

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    Para ocidentalistas, a Rússia deveria relativizar sua soberania, ao adotar instituições liberal-democráticas aos moldes europeus e alinhar sua política externa ao Ocidente. Com isso, os benefícios da interdependência compensariam fraquezas geográficas. O argumento é razoável, mas a história recente parece refutá-lo. O presidente Bóris Yeltsin (1991-1999) chegou a adotar uma terapia de choque liberalizante no pós-URSS. Só que, em seguida, tchetchenos proclamaram independência, a economia foi sequestrada por oligarcas, o PIB caiu pela metade em oito anos, e a Otan expandiu-se até as fronteiras do país. Para muitos, a mensagem foi de que o Ocidente só aceitaria o gigante russo se ele tivesse os pés de
    barro.

    Essa desilusão deu ímpeto para eurasianos como Putin, que consideram inevitável o antagonismo com o Ocidente. Para exercer uma política externa autônoma, buscam coordenar-se politicamente com nações emergentes, como os BRICS, fortalecer vínculos com antigos membros da URSS, aproximar-se de potências regionais insatisfeitas, como Turquia e Irã, e defender ativos estratégicos, como a base de Tartus. O plano custa caro – a Rússia destina 5,4% do PIB à Defesa, contra uma média mundial de 2,2%, e sofre sanções ocidentais pela anexação da Crimeia. Ainda assim, o regime de Putin trouxe os resultados esperados: não há dúvidas, hoje, de que a Rússia é uma potência incontornável em um sistema
    internacional multipolar.

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    A intervenção em apoio a Assad pode provocar indignação. Mas a apreciação moral não é uma ferramenta útil para compreender as ações russas. O que Putin busca é demonstrar credibilidade, promover a segurança da Rússia pelos mares e assegurar sua potência. E não importa se, para isso, precise sentar-se com mocinhos ou vilões.

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