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O mundo de cada um

Os ecologistas acham que qualquer pessoa pode fazer algo para mudar o planeta e dizem como. Esse é o mote do Dia da Terra.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h58 - Publicado em 31 mar 1990, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira e Luiz Guilherme Duarte

A nave espacial Terra não transporta passageiros. Somos todos tripulantes. Marshall McLuhan (1911-1980), sociólogo canadense.

 

No quarto domingo deste mês, dia 22, pelo menos um em cada cinqüenta homens, mulheres e crianças dos quatro cantos do mundo, algo como 100 milhões de pessoas ao todo, fará a sua parte naquela que será a maior manifestação coletiva da história: a comemoração do Dia da Terra.

Trata-se de uma invenção americana que agora, ao completar vinte anos, já transpôs todas as fronteiras, nas asas dos movimentos de defesa do ambiente.

O importante é que um evento dessa grandeza tem tudo para carimbar com o signo da universalidade um tipo de preocupação e de ativismo que de modo geral ainda permanece confinado aos guetos verdes da militância ecológica. E não é por outro motivo que a palavra de ordem deste Dia da Terra, modelo 1990 é a desafiadora pergunta “Quem diz que você não pode mudar o mundo?”

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Eis um declarado, irrestrito convite à ação individual para deter o processo de deterioração de um planeta que em seus presumíveis 4,5 bilhões de anos sobreviveu a traumas geológicos e climáticos sem que neles houvesse a marca da mão do homem. No entanto, em um prazo muitíssimo mais curto, medido no horizonte de um punhado de gerações, a Terra provavelmente não será a mesma que o homem se acostumou a conhecer ao longo de alguns milênios. E para que ela não mude tanto a ponto de desfigurar ou mesmo impedir a presença humana em sua superfície é que se quer convencer cada pessoa de que está ao seu alcance fazer algo para mudar esse mundo de previsões apocalípticas, subscritas pela ciência, das quais emergem o pesadelo do buraco na camada de ozônio e o horror do efeito estufa.

Além da penetração maior dos nefastos raios ultravioleta, o acúmulo de gás carbônico na atmosfera, rastro do avanço mal traçado da civilização industrial apoiada na queima de combustíveis fósseis, poderá fazer com que a temperatura do globo aumente até 4,5 graus centígrados nos próximos cinqüenta anos. Com isso o clima que tornou possível a existência humana em quase todos os rincões da Terra se tornará irreconhecível: o nível dos oceanos subirá o suficiente para inundar enormes áreas costeiras e transformar solos férteis em desertos salgados — catástrofes que prenunciarão outras, afetando o conjunto da natureza.

Nesse cenário cada vez mais verossímil, no mínimo 8 bilhões de pessoas terão de ganhar o pão e a água de todo dia em condições dramaticamente adversas. Até que ponto mudanças no comportamento individual podem abrandar esse cenário? Para os ambientalistas, pequenas alterações de hábitos cotidianos tenderão a acumular benefícios em escala literalmente planetária, sendo o primeiro deles a percepção de que governos complacentes e empresas gananciosas não são os únicos vilões nessa história: cada qual tem seu grão de responsabilidade própria pela avalanche de desacertos ecológicos que castiga o mundo.

Embora produtores de apenas 5 por cento do gás carbônico lançado na atmosfera, menos de um quarto do volume made USA, os brasileiros sem dúvida estão entre os mais cobrados a se engajar na luta para salvar a Terra. A razão não há criança que ignore. A Amazônia Legal brasileira representa, afinal, um terço de todas as florestas tropicais do globo e sua preservação tornou-se uma preocupação mundial. Duas mil queimadas por dia, em média, já destruíram nos últimos anos quase um décimo da mata tropical e lançaram aos céus uma quantidade de gás carbônico suficiente para figurar entre os culpados pelo efeito estufa.

A Amazônia certamente não será salva por pequenas mudanças de hábitos cotidianos de pessoas vivendo a milhares de quilômetros da floresta, mas entre o que se passa na mata e o que se faz na cidade existe um parentesco que a vista não alcança — e que os ecologistas se esforçam por exibir assim como evidenciam o nexo entre as diversas agressões ao ambiente. “Temos a destruição das nascentes dos rios pelo garimpo, caça e pesca predatórias incontroláveis, cidades ameaçadas por nuvens de fumaça e praias imundas”, relaciona o jornalista Fernando César Mesquita, 51 anos, presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no governo José Sarney. “Temos, acima de tudo, um problema cultural. As pessoas ainda não reconhecem o seu papel no ambiente.”

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Mas é patente que já há algum tempo os ventos sopram a favor do ambientalismo. Em 1988, por exemplo, cálculos americanos indicavam que a população mundial de militantes do que se convencionou chamar movimentos ecológicos somava 13 milhões de pessoas; na virada para os anos 90, outros 3 milhões se incorporaram à onda verde. No Brasil, a contabilidade disponível se refere a organizações: são já mais de 2 500 entidades ambientalistas, a maioria núcleos de algumas centenas de pessoas dedicadas à defesa de causas específicas. A maior é a Fundação S.O.S. Mata Atlântica, com 3 mil sócios. Outra de bom tamanho é a Associação de Defesa da Juréia, cujos 1400 sócios pretendem preservar a região paulista da Mata Atlântica entre Peruíbe e Iguape.

“Há quinze anos, se você falasse em meio ambiente seria rotulado de romântico e antiprogressista”, lembra o arquiteto Clayton Ferreira Lino, diretor da Fundação S.O.S Mata Atlântica, em São Paulo. “Atualmente, em compensação, a verdadeira militância convive com a moda da militância”. E entre o discurso bonito e a prática de cada um existe um abismo”, critica. Isso talvez se entenda pela constatação de que a bandeira verde nem sempre é leve. Muitas vezes, a busca do melhor para o meio ambiente exige no dia-a-dia individual mais paciência, mais despesas, menos conforto imediato. Isso explicaria por que, embora quatro em cada cinco americanos se considerem ambientalistas, poucos entre eles mudam a própria vida para mudar o mundo — a população dos Estados Unidos roda cerca de 1 bilhão de quilômetros por ano, queimando pouco mais de um quarto do combustível usado na Terra.

“Ninguém está pedindo para que se ande a pé”, assegura o engenheiro Gabriel Murgel Branco, gerente do Programa de Controle de Veículos (Proconve), um bem-preparado plano de metas, aprovado há três anos pelo governo federal, que prevê a fabricação de carros nacionais menos poluidores, estabelecendo limites graduais de emissão de gases pelo escapamento. “Se as pessoas regulassem o motor com freqüência, seguindo sempre a indicação do fabricante, se só comprassem peças originais que garantam o desempenho programado para aquele motor e, finalmente, se não inventassem na garagem coquetéis incrementados de combustível, apenas com isso a poluição nas cidades diminuiria no mínimo 30 por cento”, garante o engenheiro.

Se com um automóvel bem cuidado se pode atenuar parte do problema do aquecimento da atmosfera e mesmo da chuva ácida — a reação das gotas com os poluentes do ar —, em relação à poluição marinha a ação individual só tem a saída da precaução. Claro que jogar lixo na praia é arruinar o lugar ao sol do próprio usuário sujão, mas há coisa pior neste departamento. Na opinião de Luiz Roberto Tomazzi, diretor do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo, a grande inimiga dos mares é a especulação imobiliária. “Ao tirar os vegetais à beira-mar, o solo exposto à erosão é arrastado pela chuva para o mar; ali, as partículas de terra ficam em suspensão, impedindo a luz de penetrar na água”, ele explica. “Assim, sem poder realizar a fotossíntese (a conversão de energia solar em nutrientes), morrem vegetais aquáticos e, em seguida, seus dependentes sucessivos, até chegar aos peixes. Nesse toma-lá, dá-cá todo o ecossistema marinho fica abalado.”

Quando, meses atrás, técnicos da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo chegaram à Ilha Comprida, no litoral sul paulista, descobriram que ali tinham sido vendidos 300 mil lotes em uma área que, para se evitar o excesso de esgoto, comportaria no máximo 70 mil. “Quem compra um terreno no litoral deve exigir um comprovante de que o loteamento tem licença do órgão ambiental da região”, aconselha Ivan Gânglio, diretor de Planejamento Ambiental da Secretaria. “Caso contrário, estará comprando hoje um pedaço do paraíso, para ter amanhã uma casa no inferno.”

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Quem se encontra no litoral ainda tem de cuidar em dobro do desperdício de água. Apenas 3 por cento da água que banha o planeta serviria para matar a sede do homem, ou seja, é água fresca; ocorre, porém, que três quartos desse total permanecem congelados nas regiões polares. Para tornar o líquido ainda mais precioso, três em cada dez lençóis aquáticos subterrâneos — formados pela chuva filtrada pela terra que se satura a determinada profundidade — estão contaminados também devido ao uso exagerado de pesticidas na agricultura, cujos resíduos tóxicos são arrastados solo abaixo pela água.

Para o geólogo Nélson Ellert, da Universidade de São Paulo, que há dez anos pesquisa a poluição desses lençóis, “o consumo excessivo de água causa estragos principalmente na região litorânea”. Ali costuma haver o que se chama sobreexplotação, ou seja, a água fresca, menos densa fica sobre um lençol de água salgada, mais densa. “A diminuição em ritmo acelerado do volume de água doce faz subir aquela água que está logo abaixo, salgando portanto toda a fonte. O fenômeno não é raro, informa o pesquisador, citando áreas do litoral do Rio Grande do Norte, entre os casos mais recentes.

No hemisfério norte, cada vez com mais freqüência quem vai lavar as mãos depara com uma torneira seca e não se surpreende com isso: equipamentos hidráulicos modernos acoplam células fotossensíveis, que fazem a água jorrar apenas quando as mãos estiverem na direção do jato. Isso evita por exemplo a velha cena da escovação dos dentes enquanto a água fresca escorre pelo ralo, um descuido de quem desconhece o seu valor para o homem. Estuda-se também acima do equador a possibilidade de reaproveitar no vaso sanitário a água usada na pia. Faz sentido: cada vez que se aperta a válvula da descarga. o jato contém no mínimo 5 litros de água fresca tratada, a mesma que serviria para a higiene pessoal.

O desperdício é provavelmente o mais curto estopim da bomba ecológica que está para estourar nos próximos anos. Aparece camuflado nas atitudes mais inocentes. como a da dona de casa caprichosa que verte doses generosas de amaciante de roupa no tanque. “Detergentes, sabões, amaciantes, tudo isso no mercado nacional é declarado biodegradável, ou seja, suas moléculas são naturalmente assimiladas pelo ambiente. Mas na prática é outra história”, adverte o químico Omar El Seoud, da Universidade de São Paulo, especialista no assunto. “Se o esgoto não passar por três etapas de tratamento — o que nem sempre acontece —, o produto não terá condições de ser degradado, transformando-se em mais uma substância tóxica no ambiente”, adverte. “Por isso. ultrapassar a recomendação da embalagem é gerar doses extras de poluição.”

Pior é quando se trata daquilo que se joga fora — no sentido literal: a humanidade precisará de aterros suficientes para os 60 milhões de toneladas de lixo que se estima serão produzidos nos próximos sessenta anos. O problema não é apenas a falta de espaço, que já desespera os americanos, por exemplo, mas a contaminação do solo, quando este não é preparado para receber os resíduos, como acontece com oito de cada dez aterros no Brasil. “A única saída é a reciclagem”, prevê a engenheira Maria Helena Orth, diretora de Meio Ambiente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), uma mulher bem-vestida e de hábitos refinados que há quinze anos está de olho nos cerca de 700 gramas que cada brasileiro põe fora todo dia. “É a metade do que ele consome”, calcula.

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Reaproveitar aquilo que se elimina é um costume em relação ao qual o Brasil engatinha. O Japão, mestre nessa tecnologia recicla aproximadamente metade dos 100 milhões de toneladas do lixo produzidos por ano — fabricam com a matéria-prima das lixeiras, entre outras coisas, papel higiênico suficiente para embrulhar a Terra quatro vezes. Na Europa Ocidental, em média, um terço do lixo é reciclado: para estimular a população a separar embalagens de resíduos orgânicos. os franceses até criaram postos onde se trocam garrafas latas e caixas de papelão por billets de metrô ou de ônibus.

Muitas vezes, pode-se ajudar o ambiente simplesmente criando menos lixo, como, fiel às suas convicções, pretende o deputado federal Fábio Feldman, do PSDB de São Paulo, primeiro representante do ambientalismo no Congresso. Ele prepara um projeto pelo qual a indústria que utiliza embalagens descartáveis terá a obrigação de reaver 40 por cento desse material depois de vendido. “O consumidor deveria optar pelo descartável só em último caso, quando vai viajar, por exemplo, ensina. Seria ingênuo em todo caso imaginar que, se cada um cuidar das pequenas questões, as grandes se resolverão sozinhas.

O zelo ecológico na vida pessoal não exclui outras formas de ação, destinadas a influenciar as decisões dos poderosos deste mundo. É por isso que cientistas laureados como o astrônomo Carl Sagan e o químico Linus Pauling, além de manterem regulados os motores de seus carros, como se presume, assinam manifestos dirigidos ao governo americano pedindo leis mais duras de defesa do ambiente. Não é por mero otimismo que observadores como a socióloga Laura Tetti, da Cetesb, a agência de saneamento ambiental do governo paulista, acreditam que as pessoas estão dispostas a pagar o preço necessário para conservar o ambiente e, em última análise, a própria qualidade de vida. “Já passou a fase do ambientalismo romântico”, analisa ela. “Todos agora querem receitas para cooperar.”

 

 

Para saber mais :

O papel de cada um

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(SUPER número 5, ano 3)


A sujeira nossa de cada dia

(SUPER número 7, ano 7)

 

 

 

 

Dinheiro no lixo

No Brasil, apenas 0,8 por cento do lixo é reaproveitado — e isso graças aos garrafeiros e catadores de papel. Mas o governo começa a remexer o problema. De dezembro do ano passado a março último, os moradores do bairro paulistano de Vila Madalena participaram de uma experiência pioneira: receberam sacolas para recolher papéis, latas, vidros, enfim, materiais recicláveis que habitualmente vão parar no lixo. Mais que o zelo ambiental, o que moveu a Prefeitura foi a preocupação com o dinheiro. Não é para menos: tratar as 12 mil toneladas de lixo que os paulistanos produzem todos os dias consome 15 de cada 100 cruzados da receita municipal. Em quatro meses de experiência a Administração conseguiu vender 70 toneladas daquele tipo de material — diante desse resultado,o projeto deverá ser implantado para valer na cidade.

 

 

 

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