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O bolo chileno cresceu, mas faltou dividir

Com Estado mínimo, o Chile se tornou o país mais rico da América Latina. Os protestos recentes, porém, mostram que PIB per capita não é tudo.

Por Pedro Menezes
Atualizado em 16 dez 2019, 15h53 - Publicado em 21 nov 2019, 19h48

Aos 30 anos, em 1978, o economista José Piñera assumiu o Ministério de Trabalho e Previdência Social do Chile. Em meio à brutal ditadura de Augusto Pinochet, Piñera teve autonomia para aplicar conceitos abstratos aprendidos na Universidade de Chicago, onde concluíra seu doutorado poucos anos antes.

Sob o comando de José Piñera, o Chile adotou o sistema de Previdência Social mais famoso do mundo, inspirador de reformas em dezenas de países. Os trabalhadores chilenos passaram a enviar compulsoriamente parte dos seus salários a fundos de investimentos, que administram o dinheiro até a aposentadoria. Cada cidadão para de trabalhar recebendo o que ele mesmo poupou ao longo da carreira – e não aquilo que os trabalhadores na ativa geram, como acontece nos sistemas tradicionais. Até aquele momento da história, nenhum país tinha ido tão longe na aplicação desse modelo de contas individuais, conhecido como “capitalização”.

De acordo com documentos oficiais, na manhã de 14 de outubro de 1980, José Piñera sentou-se ao lado de Pinochet para explicar sua proposta de reforma da Previdência. O chefe ouviu e respondeu: “Acho esse sistema maravilhoso; deve ser implementado imediatamente”. E assim ocorreu, sem maiores debates.

A partir de meados dos anos 1980, o Chile passou a crescer muito mais do que os vizinhos da América Latina. Entre 1984 e 2004, o PIB per capita chileno cresceu a uma taxa média de 4,3% ao ano, em contraste com apenas 1,7% do Uruguai, 1,2% do Brasil e 0,3% da Argentina. Até mesmo a Índia, considerada um exemplo de crescimento, engordou 3,6% ao ano, consideravelmente menos. Assim, o Chile se tornou o país mais rico da América Latina, superando mais de cem anos de liderança argentina no PIB per capita.

O resultado é visível além dos números econômicos. No PISA, principal exame internacional de educação, os estudantes chilenos têm as melhores notas da América Latina. No Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, o Chile também lidera a região. Houve um extraordinário e incontestável aumento no bem-estar de todos os chilenos durante esse período. E a pobreza caiu consideravelmente. Em 1987, 52,8% dos chilenos tinham renda inferior a U$ 5,50 por dia. Hoje, são 6,4% (já levando em conta a inflação do dólar no período).

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Esse sucesso econômico se transformou em prestígio político. Diversos estudos acadêmicos indicam que a geração de poupança e o desenvolvimento do mercado financeiro fizeram do modelo previdenciário chileno um importante motor para a economia do país. José Piñera ganhou prêmios internacionais e se tornou Doutor Honoris Causa por grandes universidades da Europa.

Por que há tanta gente insatisfeita nas ruas chilenas, então? A história da Previdência chilena, e particularmente a de José Piñera, ajuda a entender. Sebastian, empresário bilionário e irmão de José Piñera, é o atual presidente do Chile. A relação entre a família Piñera e o poder político começa no tataravô de Sebastian, José de Piñera e Lombera, nascido em 1786.

Segundo o Relatório da Desigualdade Global, produzido pela Escola de Economia de Paris, o 1% mais rico fica com 23,7% da renda chilena, percentual que só é maior em dois países: Brasil (28,3%) e Catar (29%). De acordo com dados do economista Branko Milanovic, os 2% mais ricos do Chile têm renda próxima à dos 2% mais ricos da Alemanha. No outro extremo, os 5% mais pobres do Chile têm renda per capita próxima à dos 5% mais pobres da Mongólia.

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O 1% mais rico do Chile fica com 23,7% da renda. Esse percentual só é maior em dois países: Brasil (28,3%) e Catar (29%).

O Estado chileno está entre os que menos redistribuem renda entre os países da OCDE. A arrecadação é concentrada nos impostos sobre o consumo, que incidem sobre os mais pobres, e não nas taxas sobre renda e lucro, que os mais ricos pagariam.

E temos o caso do sistema de Previdência. Sua história estava contaminada. As abstrações de um jovem economista se transformaram em política pública sem passar pelo crivo do debate democrático. Esse vício de origem explica por que, nos últimos dez anos, todos os partidos relevantes na política chilena passaram a concordar sobre um assunto: o sistema de capitalização tem problemas graves e precisa de reformas.

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Para incentivar a geração de empregos, José Piñera definiu, lá nos anos 1970, que os trabalhadores seriam obrigados a poupar apenas 10% do salário, além de algumas taxas. No Brasil, a contribuição total supera 30%. Como o percentual de poupança obrigatória é baixo, e muitos trabalhadores passam boa parte da vida sem emprego de carteira assinada, a maioria dos aposentados chilenos recebe aposentadorias pífias.

Quase metade ganha menos do que o salário mínimo brasileiro, apesar de morarem num país consideravelmente mais rico que o nosso. A grande maioria ganha menos do que o salário mínimo local, equivalente a R$ 1.300 reais. O valor da aposentadoria chilena repõe, em média, menos de 40% do salário recebido durante a carreira do trabalhador.

O contraste entre os elogios internacionais e a dura realidade interna é muito citado pelos manifestantes. O crescimento do PIB gerado pelo novo modelo de Previdência parecia bonito em artigos acadêmicos, mas não foi suficiente para garantir um nível de vida adequado aos idosos.

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Os protestos revelam aquilo que os defensores do modelo chileno costumam ignorar: muitas das reformas que ajudaram no crescimento do país foram implementadas por uma ditadura. Agora, já em democracia, os chilenos não querem bancar um Estado pouco preocupado com a desigualdade de renda, muito menos o sistema previdenciário de poupanças individuais.

Por muitos anos, críticos da democracia citaram o Chile como exemplo, argumentando que as reformas de Pinochet jamais seriam aprovadas sob democracia. Pela primeira vez, o que se escuta é o oposto: um doutor pela Universidade de Chicago pode aprender economia com o cidadão comum, mas só se for obrigado a discutir suas ideias com ele. E isso só ocorre sob democracia, como aconteceu em 2019, com os cidadãos chilenos saindo às ruas para marcar sua posição. Sempre.

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