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E se rolasse uma vacina contra a morte?

A vida eterna seria um tédio? Não necessariamente. Até porque ela não seria realmente eterna. Mas o mundo estagnaria sem o poder de inovação dos jovens.

Por Fábio Marton e Alexandre Versignassi
15 jan 2021, 12h42
A

palavra “vacina” não é a mais precisa, já que o envelhecimento (assim como a morte, sua última consequência) é parte da vida, não algo a ser curado. Seja como for, reverter o envelhecimento é a maior utopia da medicina. O mais legal é que não se trata de algo tão inatingível quanto parece. Alguns animais têm o que se chama “senescência negligível” – eles nunca ficam realmente velhos. Hidras são efetivamente imortais. Elas não envelhecem. Só morrem se forem destruídas fisicamente. Entre os animais mais próximos, os vertebrados, tubarões-da-groenlândia comprovadamente vivem mais de 400 anos – o dobro das tartarugas, que são o exemplo mais recorrente de longevidade.

As células dos indivíduos mais velhos fazem o mesmo que as das mais novas: reproduzem-se e renovam-se o tempo todo. Com o tempo, o acúmulo de defeitos na química do organismo, no DNA e em órgãos acaba tornando essa renovação cada vez menos eficiente. Mas não é um processo de uma via só: o DNA humano tem métodos de autorreparo. Só que uma hora os danos se acumulam com mais rapidez do que os consertos.

Se de alguma forma pudéssemos acelerar esse reparo do DNA, teríamos pessoas “imortais”. As aspas estão aí porque bastaria atravessar a rua sem olhar para perder a tal imortalidade. Mas o envelhecimento deixaria de existir.

E aí começam os problemas. Num primeiro momento, os remédios da vida eterna não estariam no SUS. Quem desenvolver vai cobrar caro. O quão caro? Estamos falando de um produto com demanda garantida. Um bilhão de dólares, então, é um bom chute. De acordo com a consultoria Wealth X, há 2.604 bilionários no mundo neste momento. Vamos supor que vários deles topassem transformar uma parte de sua fortuna em vida eterna. Esses seriam os primeiros imortais – eles e seus entes queridos: Jeff Bezos (US$ 180 bi) poderia pagar tratamentos de imortalidade até para os peixes que tem no aquário.

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Bacana, né? Claro que não. Uma coisa é ouvir que Jeff Bezos ganha US$ 9 milhões por minuto. Outra é saber que, diferentemente de você, ele nunca terá que se encontrar com o destino final. Perde-se o grande equalizador da humanidade: a morte. E teria início a maior sensação de desigualdade da história – que poderia causar revoltas igualmente sem paralelo. A imortalidade, ironicamente, causaria mortes.

Bom, depois que a AstraZeneca, ou a Pfizer, ou seja lá quem desenvolvesse a coisa, colhesse seu lucro trilionário, o tratamento chegaria aos sistemas públicos de saúde. Isso acabaria com as revoltas motivadas pela desigualdade, mas não com outra: a dos religiosos, que certamente veriam a vacina da imortalidade como uma afronta aos desígnios divinos. E não é preciso ter religião para ser contra a ideia. As pessoas costumam imaginar o “tédio” de uma vida eterna.

Mas provavelmente isso não seria problema: a água num rio nunca é a mesma, afinal. Visitar Paris hoje ou há 50 anos definitivamente não é a mesma experiência. E, se o cérebro estiver zero bala, você vai continuar se apaixonando, tendo novos filhos – arrumando razões para viver, em suma.

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Não fica nisso. O cérebro não trabalha só com argumentos racionais. Ele se guia por um amálgama de instintos inconscientes. E o instinto de sobrevivência é praticamente invencível. Ele tende a se impor sobre qualquer crença ou opinião que você tenha sobre a “utilidade” da morte. Como disse Woody Allen quando lhe perguntaram se ele pretendia alcançar a imortalidade por meio de sua obra. Ele respondeu: “Não. Pretendo alcançar a imortalidade não morrendo mesmo”.

Como seria, então, esse mundo de Woody Allens? Primeiro, seria o fim do senso de urgência. Por mais que a consciência da finitude nem exista nos mais jovens, a vida é feita de etapas. Um adolescente sabe que não pode demorar demais para entrar numa universidade. Um analista numa empresa tem plena consciência de que há uma faixa etária limite para conseguir uma promoção para gerente. Um profissional na casa dos 50 anos sabe que, se perder o emprego, dificilmente conseguirá uma recolocação. A vida é um videogame: vem em fases. 

A vida eterna não. Vamos supor que a nossa vacina contra o envelhecimento conserte o DNA de todo mundo. O auge biológico acontece por volta dos 23 anos. Dali em diante, por mais que você ainda tenha muito a amadurecer, é ladeira abaixo: começa o envelhecimento. Nossa vacina, então, faria todo mundo voltar a esse auge.

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Nos esportes, seria uma maravilha. Um Pelé da vida poderia tomá-la e voltar a jogar. Para sempre.

Mas o para sempre sempre acaba. E quem diz não é só o Renato Russo. É a estatística. Quanto mais tempo você vive, maior é a chance de se envolver num acidente. A possibilidade de ser atingido por um raio, por exemplo, fica na casa de uma em um milhão. Mesmo assim, eles fazem em média 110 vítimas fatais por ano no Brasil. Entre 2000 e 2019, foram 2.194 óbitos.

Ou seja: o Pelé eterno do nosso exemplo, mais hora, menos hora, morreria em algum acidente. Mesmo se desse a sorte de passar séculos sem uma batida de carro, uma queda de avião ou um tropeço fatal dentro do box do banheiro, o rei seria levado por um raio.

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Também haveria a armadilha demográfica. Muita gente nascendo e pouquíssimas pessoas morrendo significaria um crescimento da população até um nível insustentável. Entre 1979 e 2015 a China da vida real impôs a “política do filho único” para conter o crescimento de sua população – aumentando os impostos de quem tivesse mais de uma criança. Num mundo com poucas mortes e com toda a população mantida para sempre numa faixa etária produtiva, não faltariam leis anticoncepcionais.

Hoje mesmo os casais têm menos filhos do que antes. Numa cultura que visse bebês como uma ameaça ecológica, talvez a própria ideia de ter filhos  sumisse dos planos da maioria. Sim, produzir filhos é um instinto profundo também. Mas ele se manifesta mais na vontade de fazer sexo do que na ânsia da parentalidade. E a parte sexual, com toda a população mundial tendo a mesma tenra idade, seria, para dizer o mínimo, dionisíaca.

Precisaríamos de crianças para assumir o lugar de quem morresse em acidentes, claro. Mas sem dúvida: haveria poucas delas por aí. A imensa maioria da população seria formada por gente centenária, ainda que com corpinho de 23. E o resultado seria uma certa estagnação no mundo das ideias. Sem o ímpeto transformador que só os mais jovens têm de fato, viveríamos num mundo conservador. Para sempre. E fica a pergunta: para você, isso seria uma utopia ou uma distopia?

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