Combate à Poluição: O papel de cada um
Todos levantam a voz para clamar contra a poluição, mas poucos se levantam para jogar seu lixo no cesto. Como acabar com essa sujTodos levantam a voz para clamar contra a poluição, mas poucos se levantam para jogar seu lixo no cesto. Como acabar com essa sujeira?
Fátima Cardoso
Morador de uma cidade grande, João Brasileiro engole diariamente a fumaça lançada no ar por automóveis e fábricas. Tossindo de raiva, acende o último cigarro e joga o maço pela janela do carro. No domingo de sol, leva os filhos a passear no parque e compra sorvetes para os garotos. Cada um, é claro, vai jogar o copinho ou papel por cima do ombro assim que degustar a iguaria. Quando vai à praia, Brasileiro fica horrorizado com o mar sujo pelos esgotos e esbraveja enquanto toma um refrigerante e come uma espiga de milho, cujos vestígios ficarão repousando na areia quando ele sair de lá. Brasileiro gosta muito de reclamar da poluição e da sujeira – dos outros. Em seu próprio rastro, que ele ignora, acumulam-se quilos de detritos – restos de alimentos, copos, latas, garrafas, papéis e toda sorte de objetos dos mais variados materiais e usos, atirados nas ruas, praias, estradas, parques, casas de espetáculo e por aí afora. O lado mais detestável do lixo espalhado em tudo quanto é lugar público, às vezes pelas mesmas pessoas que debateram contra a poluição industrial, é justamente aquele que agride os olhos. Desde que a sociedade ocidental começou a se preocupar com higiene e limpeza pública, no contexto da modernização trazida pela Revolução Industrial do século XVIII, lixo e sujeira se tornaram objeto de repugnância. Aos poucos, a noção de asseio passou a fazer parte dos valores cultivados pelos europeus – pelo menos das classes sociais cujas condições de vida lhes permitiam preocupar-se com isso.
Limpeza, dentro de casa e fora dela, foi sendo associada a boa educação, prova, por sua vez, de boa posição na sociedade. O homem ocidental, em suma, aprendeu a torcer o nariz à sujeira à medida que o desenvolvimento das cidades deu origem ao modo de vida urbano, entendendo-se por isso, entre tantas outras coisas, a prática de tratar o próximo com respeito (urbanidade) e não emporcalhar o que é de todos – o espaço público. “Qualquer lixo nas ruas provoca um efeito multiplicador de desleixo. Se o lugar está limpo, a pessoa sente constrangimento em ser a primeira a sujar”, observa Arlindo Phillipi Jr., da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
Ainda que fosse apenas uma questão estética, a sujeira a nossos pés já seria suficiente para provocar desagrado. Ocorre, porém, que o lixo esparramado é também um problema de saúde. Todo lixo pode ser dividido basicamente em material orgânico e inorgânico. Orgânico é todo dejeto biodegradável, como restos de comida – cascas de frutas, por exemplo -, que serão decompostos pela ação de microorganismos, o que se chama apodrecimento. Largado na rua, esse lixo apodrecido servirá de alimento a ratos, baratas e moscas, transmissores de doenças. Naturalmente, quanto maior o volume de detritos orgânicos, com mais facilidade poderão crescer e multiplicar-se.
A parte inorgânica do lixo é composta de dejetos que não apodrecem, como papel, plástico, borracha, metais e vidro. Tais restos também contribuem para a proliferação de formas daninhas de vida, para as quais servem de ninho. Além disso, podem causar estragos quando não são varridos das ruas. Com a chuva, plásticos e papéis navegam na enxurradas até as bocas-de-lobo e galerias pluviais, que, se não forem limpas periodicamente, entopem, provocando as inundações tão conhecidas dos habitantes das cidades brasileiras. O mesmo acontece em lugares onde há córregos não canalizados, que representam verdadeiros depósitos de lixo em potencial para os moradores dos barracos instalados nas sua margens, onde muitas vezes nem chegam os serviços de limpeza pública.
Longe do asfalto, os transtornos causados pela sujeira não são menores. Uma praia transformada em monturo por hordas de turistas até que é capaz de absorver boa parte dos dejetos, mas devolve o excesso na mesma moeda. Ou seja, restos de alimentos aqui e ali podem sofrer decomposição de modo a ser absorvidos pela areia, mas nas praias mais movimentadas os banhistas sempre conseguem sujar muito mais rápido do que o solo consegue absorver. Como nas cidades, a conseqüência do lixão à beira-mar é a proliferação de moscas e, o que é próprio das praias, o aparecimento de uma profusão de doenças de pele. Quando os detritos são latas e vidros, os riscos de acidentes para pés descalços são óbvios.
Restos de papel também acabam sendo absorvidos em alguns anos, mas quem espalha embalagens plásticas deve saber que está deixando rastro para os arqueólogos do futuro. De fato, plásticos e borrachas simplesmente não são decompostos pela natureza, permanecendo indefinidamente onde foram deixados se ninguém os retirar. “A poluição da praia pelo lixo é pequena em relação à poluição industrial, mas atinge diretamente os indivíduos”, compara João Meirelles Filho, vice-presidente da Fundação S.O.S. Mata Atlântica, que batalha pela preservação da natureza no litoral do país. O lixo que se jogou ontem é o foco de contaminação de amanhã.
Os esgotos lançados ao mar podem causar hepatite e gastroenterite, por bactérias. Já o lixo em decomposição na areia, deixado pelo próprio turista em animadas férias, pode provocar micoses por ação dos fungos nos objetos orgânicos. Conclusões apressadas e socialmente míopes levam a supor que o acúmulo de detritos nas areias é coisa de farofeiros – os turistas dominicais que chegam em caravanas de ônibus para ruidosos piqueniques à beira-mar. “O lixo deixado nas praias freqüentadas pela classe alta é muito maior”, assegura João Meirelles, da S.O.S. Nas praias do Guarujá, as preferidas da burguesia paulistana, por exemplo, são recolhidas 180 toneladas de lixo por mês. Nos meses de temporada, quando a população local duplica, a quantidade de lixo é quase quatro vezes maior.
Quanto mais gente, mais – ou muito mais – lixo pelo caminho. Em São Paulo, são coletadas diariamente 12 mil toneladas de lixo, volume que a coloca em quarto lugar no ranking mundial das cidades produtoras de dejetos, depois da Cidade do México, Nova York e Tóquio. Desse total, porém, mais de um quarto, ou 3600 toneladas, vêm exclusivamente da varreção das ruas. É o produto acabado, literalmente, do comportamento anti-social.
Dói no bolso, é feio, faz mal à saúde – e descreve à sua maneira o lado menos envaidecedor da convivência dos brasileiros com seu país. É uma paisagem que começa a ser desenhada a partir da idéia de que o Brasil é um paraíso inesgotável. Aqui, onde o mar é mais azul, o sol mais amarelo e os periquitos mais verdes, em se plantando tudo dá – e em se sujando tudo some.
“Como o país é muito grande, temos a falsa noção de que, se um lugar ficar sujo, podemos partir para outro”, avalia a socióloga Laura Tetti, diretora da Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Básico ( Cetesb), em São Paulo. Mais grave do que isso, é outra suposição implícita na conduta das pessoas. “O brasileiro pensa que o espaço público é, não o espaço de todos, mas o espaço de ninguém”, resume Laura.
Ser um cidadão respeitador de sinais de trânsito ou das regras básicas de limpeza nunca esteve exatamente na moda, assim como o próprio substantivo. “No Brasil, ‘cidadão’ é uma das formas que o policial usa para chamar o infrator”, ironiza a engenheira ambiental Wanda Maria Risso, da Faculdade de Saúde Pública da USP. De fato, o brasileiro, como não encara a rua como um bem que também lhe pertence e não respeita o próprio como a si mesmo, suja o que é de todos sem cerimônia. O engenheiro Celso Giosa, diretor de operações do Metrô de São Paulo, vai além da educação. “O brasileiro tem um comportamento condizente com a sociedade em que vive”, diz. Sua afirmação está respaldada na experiência de comandar uma ilha de limpeza dentro da metrópole.
Não raro, porém, até o bem-educado cidadão, consciente de que ele mesmo acaba se prejudicando ao pontilhar de detritos a sua passagem cotidiana pela cidade onde vive, consegue exercer seu respeito por ela. Caminhando por ruas onde é tão difícil achar uma lixeira como um bilhete premiado, enfrenta uma situação que beira o ridículo quando quer se desfazer civilizadamente de algo. “O sujeito chega a se sentir um idiota por ser o único a perambular com um papel de sorvete na mão procurando um cesto, enquanto todo mundo joga mil coisas no chão”, comenta Paulo Ganc, diretor do Departamento de Limpeza Urbana de São Paulo.
A prova, novamente, está nos números. Das 17300 lixeiras encomendadas para a capital, apenas umas 3500 estão instaladas. As empresas que colocariam as lixeiras, em troca da venda de espaço publicitário nas caixas, desistem no meio do caminho, pela boa e simples razão de que o nível de depredação chega a 100 por cento – um desastre muito pior, portanto, do que acomete os orelhões. No entanto, jogar toda a culpa nos ombros da população é fechar os olhos ao outro lado do problema – a origem da falta de educação que faz o brasileiro comportar-se como se comporta.
Tadayuki Yoshimura, diretor de operações da Vega Sopave, empresa de limpeza pública que atua em dez cidades brasileiras, lembra o exemplo de Tóquio. Escolhida para sediar os jogos olímpicos de 1964, a capital do Japão, na época tão suja quanto qualquer grande cidade brasileira, foi bombardeada por uma campanha de limpeza sem precedentes. Lixeiras foram espalhadas pelas calçadas e a população tornou-se alvo de uma maciça doutrinação para jogar o lixo ali dentro, e não no chão. Afinal, o que diriam do país os milhares de turistas esperados para o evento? Ao final de quatro anos, às vésperas da abertura da Olimpíada, Tóquio era um modelo de limpeza para estrangeiro nenhum pôr defeito – e continua desse modo até hoje. “Não adianta dizer que o brasileiro é mal-educado se ninguém começar a fazer algo para mudar”, nota, sensatamente, Tadayuki Yoshimura.
Diga-se, a bem da verdade, que o brasileiro não está nem um pouco sozinho no planeta em matéria de maus hábitos no capítulo de limpeza. Há poucos meses, a Comissão Real de Belas-Artes da Inglaterra concluiu, num estudo que Londres – quem diria? – se tornou “suja, degradante e deprimente”. A comissão atribuiu o acúmulo de sujeira nas ruas e nos intermináveis corredores das estações do metrô à falta de disciplina pessoal do grosso de seus 6,8 milhões de habitantes, que espalham lixo em qualquer lugar. Já em Paris, onde parece haver tantos cachorros quanto crianças, o maior problema são as calçadas pontilhadas de excrementos em tamanha quantidade que os limpadores a bordo de motocicletas não conseguem dar conta da limpeza.
Um passeio pela outrora imaculada avenida Champs Elysées sugere que em matéria de descaso pelo que fazem seus animais de estimação, muitos parisienses superam até certos donos de cachorros de Copacabana ou Ipanema. Em compensação, os motoristas alemães, por exemplo, têm o que ensinar aos brasileiros. Seus carros já vêm equipados com uma armação para um saquinho de plástico junto ao console, onde os passageiros depositarão o lixo pessoal. Mesmo porque o gesto displicente de jogar um papel de bala pela janela pode custar caro, sob a forma de multas não menos pesadas do que o castigo por furar um sinal vermelho. Em certos estados americanos, como a Califórnia, placas ao longo das estradas informam aos motorista que jogar lixo pela janela pode valer uma multa de mil dólares.
Para tirar a sujeira de cada um do caminho de todos, o bom senso diz que a preparação dos espíritos deve começar nas escolas de primeiro grau. É um investimento a longo prazo, mas indispensável se deseja ter uma população adulta capaz de se interessar pelo ambiente não apenas da boca para fora. Enquanto essas crianças não crescem, os grandes também podem ser reeducados por campanha. Essa é a estratégia adotada pela Fundação S.O.S Mata Atlântica, que recentemente divulgou em jornais e revistas do país um anúncio com o título: “Qual o animal que deixou essas pegadas?” São latas, maços de cigarros e pacotes de biscoitos largados por gatões e gatinhas nas praias e nas matas. A publicitária Helga Miethke, da agência DPZ, que criou o anúncio, escolheu o caminho do bom humor ao comparar a um animal o despreocupado que sinaliza com lixo os lugares por onde passa. “É melhor ser bem-humorado do que agressivo ou paternalista”, diz Helga.
No Rio de Janeiro, a prefeitura também foi à luta no último verão com uma campanha para que o carioca não despejasse os restos de seu piquenique na areia. Foram espalhadas lixeiras nas praias a cada 70 metros – pois ninguém se disporia a colocar o lixo nas lixeiras dos calçadões. Em São Paulo, a Cetesb, com o apoio da Rede Globo e da Tang, investiu numa campanha no litoral, cobrindo 24 praias e alcançando cerca de 2,5 milhões de pessoas. Uma equipe de quatrocentos monitores distribuía sacos plásticos aos freqüentadores, tentando convencê-los com uma conversa simpática a jogar ali o lixo.
Em Curitiba, por fim, o prefeito Jayme Lerner teve uma idéia original para tornar a cidade mais limpa: trocar lixo por vale-transporte onde os caminhões da limpeza não chegam: 10 quilos recolhidos pelos moradores valem 17 centavos. Enquanto faz uma campanha de impacto imediato nos meios de comunicação, a S.O.S. Mata Atlântica também aposta no futuro, com o Programa de Educação Ambiental dirigido a escolas. A engenheira florestal Marina Ugo Santo, coordenadora do programa, não deixa por menos: para ela, dispor do lixo não é um favor, mas um dever. “O problema do lixo é de quem o produz”, define Marina. “Se você está numa praia e sabe que lá não tem lixeira, paciência: guarde o lixo para jogar mais tarde no lugar certo.” Em matéria de lixo, portanto, o papel de cada um é sua própria responsabilidade.
Para saber mais:
(SUPER número 7, ano 7)
A BRIGA DOS GRAFITES.
Não é apenas no chão que o espaço comum é invadido. Como se não bastassem as pichações, muros e paredes têm sido há algum tempo usados como canal de manifestação daquilo que para seus autores é arte rebelde, mas para muita gente não passa de garatujas de mau gosto – os grafites. A controvérsia corre solta. “Pichação é lixo, grafite de boa qualidade é arte”, defende a crítica de arte Angélica de Moraes. O artista plástico e grafiteiro Hudinilson Jr. sustenta que o grafite tem até a função de preservar muros e paredes encobrindo a poluição de cartazes, fuligem e pichações. “É uma maneira de levar para a rua a idéia de arte”, argumenta Hudinilson. Com desenhos e personagens que tanto podem significar um comentário irônico à vida da cidade como alusões a histórias em quadrinhos, os grafites, geralmente bem-humorados, não agridem tanto quanto as pichações, mas para alguns carregam uma cor autoritária. Afinal, depois que foi pintado, quem passa pelo local é obrigado a vê-lo, goste ou não – como também ocorre com os outdoors de publicidade. É por esse motivo que o crítico João Cândido Galvão, curador da Bienal de São Paulo, julga severamente o grafite: “É uma arte fascista”.
UM EXEMPLO B O LO
Ao longo das 37 estações do metrô paulistano, é difícil ver um papel sobrando. Se alguém jogar algo no chão, logo surgirá um funcionário encarregado de apanhar o lixo fora do lugar. Não há pichações nas paredes e os bancos raramente aparecem quebrados ou riscados. Com 2 milhões de usuários por dia, o metrô completa quase quinze anos como um lugar público excepcionalmente limpo – uma raridade mundial em termos de transporte subterrâneo. Como se explica isso? Desde que o metrô foi inaugurado, sabíamos que o essencial seria ter o usuário do nosso lado”, conta Celso Giosa, diretor de operações.
Para tanto, a companhia precisou mostrar serviço: todos os dias são retiradas das estações, plataformas, terminais e trens 3,7 toneladas de lixo. Limpezas completas são feitas por todas as dependências do metrô em busca do menor resquício de sujeira. À noite, o lixo é retirado das plataformas por uma composição que circula sem passageiros. Tantos empenho custa à empresa cerca de 670 mil cruzados novos por mês – e nenhum centavo em reparos de estragos provocados por sujeira, porque não há o que reparar. O ambiente limpo constrange o passageiro que, de outro modo, se sentiria tentado a jogar lixo no chão. Não é incomum pessoas saírem do trem numa estação, apenas para colocar o lixo no cesto – e voltar ao carro.