Bowie não perdeu a batalha contra o câncer
A metáfora militar é ruim. O câncer não é um invasor inimigo e a morte não é uma derrota.
A notícia da morte foi inesperada e chocou muita gente, mas a forma como ela foi dada não surpreendeu ninguém: “David Bowie perdeu a batalha contra o câncer”, noticiou a imprensa do mundo todo, e em seguida a frase inundou as redes sociais. Não há surpresa nisso porque essa velha metáfora surrada vem sendo empregada há anos para noticiar mortes causadas por tumores.
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Dá para entender porque ela tem tanto apelo. O tratamento de câncer parece-se mesmo com uma luta, de vida ou morte, que deixa o paciente exausto – há mesmo semelhanças com o que um soldado precisa enfrentar num campo de batalhas.
Mas há também diferenças bem importantes.
Para começo de conversa, câncer não é a invasão de um inimigo, como se acreditou por muito tempo. Hoje está bem claro para os cientistas que um tumor não é algo externo a nós contra o qual temos que lutar: ele é parte de nós mesmos, fruto de desequilíbrios nos mesmos processos que nos mantêm vivos. O câncer de fígado que matou Bowie era Bowie também – eram suas próprias células, movidas pelos mesmos genes que geraram sua obra musical ou seus olhos azuis, que perderam o controle de sua reprodução e se transformaram em ameaça. Enfim: tratar um câncer não é como lutar uma guerra. É mais como equilibrar um ecossistema.
Além disso, se formos acreditar que morrer é perder a batalha, isso nos levaria a uma conclusão deprimente: é uma batalha impossível de ganhar. Afinal, nenhum ser humano jamais escapou da mais absoluta das certezas: um dia, morreremos todos. A metáfora é ruim por isso. Soldados, quando vão à guerra, podem vencer ou perder. Já seres humanos morrem sempre, em 100% dos casos. Se a morte é uma certeza, seria absurdo interpretá-la como uma derrota.
O caso de Bowie ilustra bem esse absurdo. Após receber o diagnóstico da doença fatal, um ano e meio atrás, Bowie teve tempo de planejar um novo álbum (Blackstar) e de processar artisticamente as más notícias. Um dos resultados foi a música “Lazarus” e seu desconcertante clip, no qual Bowie zomba da morte e se despede do mundo, numa faixa que provavelmente já entrou para a história da arte. O projeto foi concluído bem a tempo: Bowie morreu dois dias depois de lançar o álbum. Enfim, não foi uma derrota – foi um triunfo artístico final.
O câncer não venceu Bowie. Ele perdeu, na verdade – morreu de fome logo após a parada do coração do astro britânico, na madrugada do domingo. Um câncer nunca derrota ninguém. Já Bowie, inegavelmente, venceu: na segunda-feira, o mundo inteiro estava cantando suas músicas.
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