Versos anti-satânicos
Nem só de preces vive o Alcorão, livro sagrado do islã. Os seus versículos já foram usados para exorcizar demônios e outros entes malignos. Conheça a história dos exorcistas de Alá
Texto Álvaro Oppermann
Por Alá, saia deste corpo e não retorne a ele jamais!”
A frase foi dita em tom imperioso. Era noite. No aposento de entrada de uma casa de chão batido e paredes de barro cozido, um sujeito se debatia, gemia e gritava. Suas feições estavam crispadas. À sua volta, muçulmanos rezavam. Os mais velhos, de olhos semicerrados. Os mais jovens, temerosos, não conseguiam parar de fitar o corpo do homem ao chão, com olhos arregalados: era um possesso. Os presentes entoavam, como numa ladainha monocórdia, os versículos da Surata al-Baqara – “o capítulo da Vaca” – o 2º e mais longo capítulo do Alcorão, o livro sagrado do islã. Ao centro, um homem de barba bem afeitada empunhava o livro sagrado. Seu nome era Mohamed Taher Abdul Muhsin. Sua profissão, exorcista.
“Em nome de Alá, o clemente e misericordioso, saia deste corpo!”, gritou de novo. Ao ouvir novamente o nome de Alá, o possesso estremeceu. Fez-se silêncio, e o homem no chão abriu os olhos. Com voz gutural, disse: “Por Alá, eu prometo sair deste homem e nunca mais voltar”. De súbito, as feições do possuído serenaram e ele recuperou a lucidez. Estava curado da possessão, obra de um espírito maligno, conhecido na tradição islâmica como jinn. “Allahu Akbar!”, gritaram em torno – uma exclamação de louvor a Deus. Abdul Muhsin beijou o Alcorão, depositou-o sobre uma almofada e ajudou o homem recém-curado a se levantar.
Essa cena ocorreu num subúrbio da cidade do Cairo, no Egito, em 1988. Ela consta do livro The Exorcist Tradition in Islaam (“A Tradição do Exorcismo no Islã”, de 1997), do antropólogo jamaicano – convertido muçulmano – Abu Amina Bilal Philips. O exorcismo é um dos capítulos menos conhecidos, e mais polêmicos, da religião muçulmana. Entre islâmicos, a prática sempre foi vista com reticência, pois para o crente dessa religião o autêntico milagre do islã é o Alcorão, com sua beleza poética e profundidade. Tudo o mais sempre mereceu reserva, ou até desconfiança – e nisso, claro, se incluem os casos de possuídos. “Não existe uma posição oficial sobre o exorcismo na lei canônica islâmica”, diz Bilal Philips. O estranho é que o primeiro exorcista da história muçulmana pode ter sido justamente Maomé, como demonstra o historiador Abdelmumin Aya em El Secreto de Muhammad: La Experiencia Chamanica del Profeta del Islam (“O Segredo de Maomé: A Experiência Xamânica do Profeta do Islã”), livro de 2007. Na biografia do profeta, as curas de possessão podem ser contadas às dezenas, inclusive uma que envolve o próprio Maomé, enfeitiçado por um inimigo. Aya também ressalta que o primeiro manual de exorcismo do islã foi… o Alcorão.
Quando foi revelado – segundo a crença islâmica, por meio de aparições do anjo Gabriel a Maomé, no século 7 – o Alcorão logo chamou a atenção dos crentes por um detalhe. Parecia haver, por trás do seu sentido literal, um significado cifrado e oculto. Místicos muçulmanos tomaram esse suposto poder como a presença direta de Deus no livro. Por isso, os versículos da obra teriam poder de curar enfermidades ou expulsar demônios. E mais. O profeta os recomendava para os mais variados problemas, do mau-olhado à picada de escorpião. Amuletos de proteção eram confeccionados com a inscrição de versículos do livro sagrado em pedaços de tecido. “O efeito do mau-olhado é real”, dizia Maomé.
O leitor de hoje pode sorrir diante desses relatos. No entanto, essa atitude é pra lá de compreensível quando contextualizamos o surgimento do Alcorão e do islã. Bruxos e superstições faziam parte do cotidiano de Meca nos tempos de Maomé. Para conquistar adeptos, a nova religião teve de dar uma resposta às questões de ordem sobrenatural – como os enfeitiçamentos – e traduzir as velhas crenças pagãs na forma islâmica. Para essa tarefa, Maomé se valeu do Alcorão, chamado por ele de “refúgio dos crentes”. É verdade que o Alcorão não dedicou nenhum capítulo especialmente ao exorcismo, tratando-o de modo oblíquo. Mas os muçulmanos aprenderam os trechos alcorânicos certos para cada tipo de exorcismo com o profeta, que os tinha aprendido por inspiração do arcanjo Gabriel, ou diretamente de Deus, segundo a tradição islâmica.
Demônios e jinns: os possessores
As possessões, dizia o profeta, podiam ser obra de duas classes de espíritos: demônios ou jinns. A descrição que o Alcorão dava para os demônios era a mesma da Bíblia: eram anjos, criaturas feitas de luz, que teriam decaído pela soberba, quando se recusaram a se prostrar diante de Adão, o primeiro homem. O chefe dos demônios era Satanás, ou Shaitan. Já os jinns (palavra que no Ocidente foi traduzida por “gênio”, como na lenda de Ali Babá) seriam, segundo a cosmologia islâmica, habitantes de um mundo intermediário, entre o material dos humanos e o imaterial dos anjos e demônios. Alguns gênios seriam bonzinhos; outros, malvados. Mas ambos teriam acesso, sem escalas, ao mundo humano, nos ajudando ou atazanando, de acordo com a sua predisposição. Eles também conseguiriam tomar formas corpóreas, ou controlar objetos inanimados, causando, por exemplo, incêndios ao derrubar lâmpadas a óleo. Segundo o exorcista Abdul Muhsin, no depoimento ao autor Bilal Philips, as mulheres seriam mais afetadas do que os homens por possessão de jinns. Os gênios – nada bobos – apreciariam a sua beleza e manteriam, inclusive, relações sexuais com elas. Nos casos de possessão demoníaca, o profeta recomendava a leitura do versículo 82 do capítulo 17 do livro sagrado, tiro e queda para afugentar demônios, relata Philips. Porém, em casos de demônios e gênios renitentes, que se recusam a deixar o corpo, o espancamento do possesso era recomendado, segundo Ibn Qayim al-Jawziya. Ele conta que seu mestre, Ibn Taymiya, partiu para a agressão física frente ao descaso de um gênio aos versos do Alcorão. Com uma vara, bateu no pescoço do possesso até seu braço ficar cansado. Por fim, o gênio, moído de tanta pancada, concordou em ir embora. Quando o possuído voltou a si, ficou espantado com os vergões: não sentira os golpes.
Em árabe, várias palavras são usadas como sinônimo de “exorcismo”. A principal delas é ruqaa. Literalmente, “a cura de um feitiço”. Segundo Abdul Muhsin, os sinais de possessão mais comuns são o desconforto, o hábito do possesso de se levantar e sentar repetidas vezes e falar de maneira incongruente ou incompreensível. Várias ações humanas facilitam o trabalho dos espíritos malévolos, como andar nu pela casa, não fazer a oração matinal, entrar no toalete – local predileto dos jinns mal-intencionados – sem pedir proteção a Deus, jogar água quente ou urinar inadvertidamente num gênio (o que o irrita profundamente) e freqüentar locais de seu agrado, como o cume das montanhas e aterros de lixo. Não se deve bobear com eles. Para combater gênios e demônios, o exorcista deve preencher 3 requisitos: 1) Utilizar apenas palavras do próprio Alcorão. 2) Recitá-las de forma inteligível em árabe. 3) Ter ciência de que é Deus quem expulsa os entes malignos, e não o exorcista.
O caso de possessão mais comum no islã é o de gênios que agem a mando de um feiticeiro. É o equivalente muçulmano do vodu haitiano. Um caso notório, diz o autor de El Secreto de Muhammad, foi o do próprio profeta, enfeitiçado por um mago da cidade de Medina. A bruxaria foi feita a partir de cachos de cabelo de Maomé, amarrados em nós e jogados num poço abandonado. Com o feitiço, o profeta passou a sofrer lapsos de memória. No entanto, o anjo Gabriel revelou o sortilégio ao profeta e aproveitou para lhe passar duas suratas curtas – Al-Falaq (“A Alvorada”) e An-Nass (“Os Humanos”) – que encerram o Alcorão. Maomé pediu ao seu genro, Ali, que fosse até o poço e encontrasse os cachos. Depois, pediu-lhe que desatasse os nós, um a um, com a concomitante recitação das duas suratas. Isso libertou o profeta do encantamento. Com o tempo, os capítulos viraram uma das principais armas dos exorcistas.
Hoje em dia o exorcismo é visto com ceticismo nos meios islâmicos, principalmente no ambiente cosmopolita das grandes metrópoles, como Damasco ou Argel. “Deve ser reconhecido que em muitos casos a origem desses problemas é puramente biológica”, diz o psiquiatra Ali Muhammad Mutaawi, da Universidade do Cairo. Aquilo que já foi categorizado de possessão é hoje diagnosticado como doenças mentais pela ciência moderna, como neurose, esquizofrenia ou outras síndromes psíquicas. Porém, como mostra o autor Bilal Philips, a mística do Alcorão está longe de morrer, em pleno século 21. Enquanto o mundo ainda tiver tendas dos milagres, se ouvirá, no meio da noite, recitais alcorânicos como o dos companheiros do exorcista Abdul Muhsin, engalfinhados na luta contra os seres do além. Acredite-se neles ou não.
O capeta muçulmano
O Alcorão conta como nasce um demônio
Chamá-lo de “príncipe das trevas”, “maldito“ e “tinhoso”, entre outros insultos, não é exclusividade bíblica. Esses e outros adjetivos são usados no Alcorão para definir Satã, ou Shaitan, no idioma árabe, palavra que significa “o adversário”. Adversário da humanidade, obviamente. Assim como no cristianismo, a figura do Diabo está presente no islã. Tão presente, aliás, que diversos místicos, como Ibn Attallah e Shibli (ambos do século 10) garantiram que “quem não acredita no Diabo não acredita em Deus”. A história de Satanás é descrita no Alcorão e segue de perto a narrativa do Livro do Gênese, na Bíblia. Quando Deus criou Adão, feito de argila, ordenou que os anjos e gênios, feitos de luz e de fogo, respectivamente, se inclinassem diante dele. Diversos se recusaram a fazê-lo e foram amaldiçoados por Alá. Um desses seria Iblis, que é chamado de Lúcifer, na Bíblia.Chefe de uma legião de seres imateriais, ele afastou-se de Deus amaldiçoando Adão, como consta dos capítulos 4 e 34 do Alcorão: “Juro que me apoderarei de uma parte dos teus servos [os homens]. E os desviarei com falsas promessas”. Como bom vilão, Iblis assumiu outra identidade. Nascia o Shaitan. E com esse nome passou à história. À nossa história.