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Uma breve história da higiene pessoal

Os povos mesopotâmicos usavam um graveto para escovar os dentes. Os romanos conheciam o sabão, mas preferiam tomar banho com óleos. E os egípcios chupavam balinhas para mascarar o mau hálito. Saiba o que nossos antepassados faziam para ficarem limpinhos (ou nem tanto).

Por Maria Clara Rossini
17 ago 2023, 16h23

O animal escolhido dependia da preferência de cada deus: ovelhas, bois e porcos eram os mais usados nos sacrifícios. Os rituais religiosos romanos começavam com a oferenda de incensos e vinho, e inspeção das entranhas dos animais, antes que eles fossem cobertos com sal e trigo. Depois, os bichos eram queimados, dando fim ao ritual.

Supostamente, um dos locais onde rolavam essas oferendas era o topo de uma montanha chamada Monte Sapo. Reza a lenda que os resíduos das oferendas eram arrastados para um rio, na base do monte. Os romanos adoravam lavar suas roupas ali, já que aquela água deixava as vestimentas magicamente limpas.

Os rituais romanos existiram, mas o Monte Sapo não – não há evidências arqueológicas ou qualquer menção ao local nos registros romanos. A lenda é usada para justificar a descoberta e a etimologia do sabão (sapo, em latim; provavelmente um derivado de sebum – sebo, gordura).

Mas a história não é de todo inútil: é bem possível que a humanidade tenha descoberto as propriedades higiênicas da substância ao redor de uma fogueira. O registro mais antigo de algo que lembre o sabão está dentro de um cilindro de 4.800 anos, que pertenceu à civilização suméria, da Mesopotâmia (atual Iraque). Os escritos cuneiformes gravados no recipiente são traduzidos como “gordura animal cozida com cinzas”.

Isso que é o sabão: um óleo ou gordura junto de um composto alcalino, como a soda cáustica ou cinzas de madeira. Essa reação química forma uma molécula que tem uma ponta polar (se liga à água), e uma apolar (se liga à gordura). Ao lavar as roupas (ou qualquer outra coisa), a parte apolar se junta à sujeira e a polar gruda na água – que arrasta a imundice para longe.

Os banhos e rituais de limpeza da Mesopotâmia envolviam ingredientes como cinza de plantas e óleos. Os registros não mencionam uma substância única que possa ser identificada como sabão – é provável que sua “receita” tenha sido desenvolvida e aprimorada com o tempo.

As primeiras civilizações eram bem mais asseadas do que você imaginaria. Desde então, a humanidade passou por períodos cheirosos – e outros mais fedidos. Mas vale lembrar que, ao longo da história, as práticas de higiene se encaixaram mais em uma preferência pessoal do que em uma norma coletiva (isso só mudaria no século 20, como veremos adiante). Mesmo assim, é possível identificar alguns padrões culturais e pontos de virada na história da higiene pessoal.

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Roma: tudo junto e misturado

As casas de banho coletivas da Grécia e da Roma antigas estão entre os cenários mais característicos da época. Os banhos gregos começaram no século 5 a.C., e 200 anos depois os estabelecimentos se tornaram comuns nas cidades romanas. Essas civilizações não só davam grande importância à limpeza pessoal como também faziam dela um evento social. Os cidadãos passavam horas conversando, fazendo jogos, bebendo vinho ou lendo nas bibliotecas disponíveis nas casas de banho. A frequência variava, mas alguns apareciam diariamente.

O curioso é que essas civilizações já conheciam o sabão, mas a substância não era usada nos banhos. Eles preferiam se cobrir com óleos perfumados e então usar um instrumento de metal chamado estrígil para raspar o excesso da pele (o óleo é apolar, então não é lavado pela água).

O sabão em si era usado para outros fins. Lavar roupas era um deles, mas não só. O historiador romano Plínio, o Velho, escreveu que a substância também era usada como pomada para cabelo, mas nada de passar no corpo.

Ilustração das latrinas romanas, é possível observar diversas pessoas utilizando as latrinas e logo a frente um personagem lava as mãos em um balde de água.
Os buracos em que as pessoas defecavam eram tão próximos quanto os assentos de ônibus – e os visitantes conversavam com tanta naturalidade quanto se estivessem em um. (Matheus Santa Cruz/Superinteressante)

Se tomar banho em grupo já parece algo íntimo demais para os padrões de hoje, imagine fazer o número 2 na companhia de outras pessoas. As latrinas públicas romanas eram espaços aonde os cidadãos iam para fazer suas necessidades. Um ao lado do outro, sem paredes, como um mictório para tarefas mais “pesadas”. Os buracos em que as pessoas defecavam eram tão próximos quanto assentos de ônibus – e os visitantes conversavam com tanta naturalidade quanto se estivessem em um. Os dejetos eram levados pela água corrente que passava embaixo dos assentos.

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(Detalhe: os romanos não foram os únicos a fazer cocô em comunhão. No século 16, o rei Henrique VIII da Inglaterra construiu um edifício chamado “Grande Casa do Alívio”, que comportava 14 pessoas ao mesmo tempo.)

Para fazer a higiene bucal, Grécia e Roma herdaram um objeto da Mesopotâmia e do Egito: o graveto de mastigar. Uma das pontas continha fibras de madeira que geram fricção com os dentes, removendo a placa bacteriana. A outra extremidade era afiada e funcionava como um palitão de dente. O primeiro objeto do tipo data de 3.500 a.C., também cortesia dos sumérios – a primeira civilização propriamente dita, vale lembrar (veja mais na página 5).

Limpar os dentes com um graveto pode parecer anti-higiênico, mas diferentes estudos mostram alguns benefícios da prática. Em 1985, a Organização Mundial da Saúde avaliou o uso de gravetos para higiene bucal na África, onde o item é comum em algumas regiões. Além de “raspar” os dentes (que ajuda remover a placa) a análise verificou que muitas das plantas utilizadas contêm fluoreto, composto conhecido por prevenir cáries. Você encontra versões industrializadas desses gravetos na Amazon americana, vendidos como uma alternativa natureba às escovas de dente.

Ilustração de mulheres sumérias escovando os dentes com gravetos.
Povos da Mesopotâmia e Egito usavam o graveto de mastigar. Uma das pontas continha fibras de madeira que geram fricção com os dentes, removendo a placa bacteriana. (Matheus Santa Cruz/Superinteressante)

Feita a digressão, voltemos ao passado. A valorização da higiene pessoal diminuiu na Europa do século 4 em diante, à medida que a cultura romana entrava em decadência e o cristianismo se espalhava pela Europa. Vejamos por quê.

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Igreja e peste

A doutrina cristã deu origem a várias vertentes, mas é fato que, pelo menos no início da crença, seus seguidores não eram muito fãs do banho. O princípio do ascetismo (a ideia de renegar os prazeres do corpo para atingir a ascensão espiritual) estava em voga numa versão, digamos, raiz. E contribuiu para a negligência da higiene pessoal. Além disso, os banhos públicos não agradaram os primeiros cristãos, que associavam esses ambientes à perversão e à prostituição.

A abdicação do corpo (e dos hábitos de higiene) passou a ser associada à santidade, e logo a sujeira virou sinônimo de devoção. Quando o arcebispo britânico Tomás Becket morreu, em 1170, os monges que prepararam o corpo observaram que suas roupas de baixo estavam infestadas de piolhos.

O cristianismo é uma derivação do judaísmo; e sua doutrina deu origem à terceira grande religião monoteísta, o islamismo. Curiosamente, nenhuma das outras duas é fã do ascetismo radical.

Os judeus antigos tomavam banho após atos considerados “impuros” e tinham o hábito de lavar os genitais todos os dias. O islamismo já começou dando atenção à higiene oral (Maomé usou o graveto para limpar os dentes até seus últimos dias de vida).

A cultura asceta entrou em declínio com a evolução do cristianismo (de outra forma, os piolhos de Becket não teriam chamado a atenção). Mas não havia clima cultural para um retorno dos banhos públicos, nem o hábito de tomá-los em casa com alguma frequência – os invernos rigorosos (ausentes das terras originais dos judeus e muçulmanos) também não ajudavam.

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Nem as crendices. No século 14, a peste bubônica se espalhou pelo mundo – e principalmente pela Europa. Infelizmente, chegaram à conclusão errada para combatê-la: que as doenças eram “absorvidas” pelos poros da pele, e que o melhor seria obstruí-los. Com sujeira. Mais um banho de água fria na higiene.

Banho? Só se precisar

Dois banhos. Esse foi o máximo que o rei Luís XIV, da França, tomou ao longo da vida adulta. O primeiro foi em 1665, aos 27 anos. Ele sofria de convulsões, e seu médico recomendou um banho terapêutico. Não aguentou, e o processo foi interrompido. Luís XIV teve dores de cabeça pelo resto do dia. Os médicos tentaram novamente no ano seguinte, mas sem sucesso.

O trauma foi suficiente para afastá-lo da água pelos seus 49 anos seguintes. Sua majestade não se atrevia nem a tomar uma ducha depois de acordar. Em vez disso, servos secavam seu corpo todas as manhãs, já que o rei suava muito durante a noite. Para ele, trocar a camisa de linho que ficava colada ao corpo (coisa que ele fazia quase todo dia) era o equivalente a tomar um bom banho.

Luís XIV pode ser um caso extremo, mas não está tão distante dos hábitos de higiene adotados por seus contemporâneos europeus. No início do século 18, os corredores do palácio de Versalhes precisavam ser limpos uma vez por semana, já que muita gente fazia suas necessidades por lá mesmo.

Mesmo nos lugares mais nobres, o saneamento ainda deixava muito a desejar. Penicos e cadeiras higiênicas guardavam as fezes e urina até que fossem esvaziados. Em alguns locais havia também fossas que acumulavam os dejetos, o que tornava o trabalho de esvaziamento ainda mais insalubre. No século 19, Henry Moule inventou a privada seca, usada até hoje em locais que não têm sistema de esgoto. Ela consiste basicamente em jogar terra sobre as fezes, em vez de serem levadas por um jato de água.

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A privada com descarga, como conhecemos, foi criada por um afilhado da rainha Elizabeth I. Sir John Harrington instalou o equipamento no palácio da madrinha em 1596, mas ninguém deu bola para a invenção. Além de ser cara, o cheiro do esgoto voltava pelo cano após a descarga. Demorou 200 anos para que o artefato se popularizasse. Em 1775, Alexander Cumming criou um cano em formato de S, que retinha água (como se fosse um tampão) e evitava que o cheiro voltasse. Era o que faltava para a ascensão da privada entre o público.

Quadro com as origens de outros hábitos de higiene ao redor do mundo.
(Arte/Superinteressante)

Por falar nele: e o cheiro? Se pegar o metrô lotado no final do expediente já pode ser uma experiência traumatizante para seu nariz, imagine conviver com pessoas que passavam anos sem tomar banho. Foi o que Peter Ward, autor do livro Clean Body, perguntou ao seu avô, que tomava um banho a cada seis meses. “Não tínhamos as facilidades que vocês têm hoje”, ele respondeu. “Provavelmente a gente cheirava muito mal, mas eu nunca percebi.”

É aquilo: onde todo mundo fede, ninguém fede. Da mesma forma que nos acostumamos com o cheiro da nossa casa, cachorro e do próprio corpo, o cheiro padrão da época era apenas um pano de fundo para outros aromas. É provável que nós, do século 21, notássemos o odor corporal – mas os narizes da época já estavam acostumados.

É claro que isso não era desculpa para negligenciar o próprio cheiro. As pessoas mascaravam o odor com perfumes para o corpo e misturas de ervas para a boca – algo que vinha sendo feito desde a antiguidade (os egípcios, por exemplo, chupavam uma espécie de balinha de menta, e já usavam uma pasta aromática para limpar os dentes).

Vale ressaltar que essa é uma história da perspectiva europeia, e não representa os hábitos de todas as culturas da época – muito pelo contrário. É hora de atravessar o oceano e falar de quem estava em terras brasileiras antes de 1500.

Outros ares

Pero Vaz de Caminha se enganou quando disse que os indígenas eram “naturalmente” sem pelos. Na carta enviada ao rei Dom Manoel, de Portugal, Caminha escreve que as mulheres nativas andavam nuas, sem nenhum fio lá embaixo. A conclusão óbvia foi que elas nasciam dessa forma – uma ideia sem sentido que acabou se perpetuando pelos séculos seguintes.

Nem passou por sua mente que talvez as indígenas usassem métodos de extração de pelos do corpo. A população nativa de fato tem uma tendência genética a produzir menos fios (principalmente se comparado aos europeus barbudos que atracaram na América), mas eles também se depilavam. O uso da língua e escama de pirarucu eram alguns desses métodos. Povos de hoje do Alto Xingu, por exemplo, usam cera de abelha para remover os pelos.

Isso sem contar os óleos de plantas (como andiroba) que passavam nos cabelos e corpo após seus banhos diários. Cada população tinha (e ainda tem) maneiras próprias de praticar hábitos de higiene.

Ilustração mostrando povos indígenas se banhando em um rio.
Quando os europeus chegaram ao território brasileiro, os povos indígenas já cultivavam o cuidado pessoal: usavam língua de pirarucu para depilação e óleos de plantas para hidratar o cabelo. (Matheus Santa Cruz/Superinteressante)

Atualmente, nossa higiene pessoal é um bem bolado de influências culturais. O hábito de tomar banho todos os dias (e mais de uma vez ao dia) arraigou-se no Brasil por influência indígena – de acordo com uma pesquisa encomendada pela P&G, tomamos 8,5 banhos por semana, em média, contra 6,5 dos americanos. Já a privada e o sistema de esgoto são europeus, mas limpar-se com papel higiênico é da China. Os chineses também inventaram a primeira escova de dentes, que era feita com pelo de porco.

No século 20, os hábitos de higiene deixaram de ser culturais e individualizados para se tornarem o que conhecemos hoje: uma espécie de norma social. A padronização de métodos e costumes de higiene pessoal pelo mundo começou graças a (provavelmente) o maior avanço da biologia: a descoberta dos micróbios.

A higiene cosmética

A aversão dos europeus à higiene pessoal só se dissolveu com o desenvolvimento da teoria dos germes. Em 1882, Robert Koch formalizou o que aprendemos no ensino fundamental: microrganismos causam doenças. Até então, a teoria mais aceita defendia que as enfermidades eram causadas pelo mau cheiro, os “miasmas”. Faz algum sentido, dado que os patógenos muitas vezes estão associados a sujeira e falta de higiene. O problema é que não adianta mascará-los com perfume, como era feito na época.

O sabão consegue eliminar essas criaturas microscópicas, da mesma forma que falamos lá no início do texto. O médico húngaro Ignaz Semmelweis (1818-1865) constatou a importância do sabão antes mesmo da teoria dos germes: ele era residente-chefe de uma maternidade, e percebeu que uma das alas do hospital chegava a ter o triplo de mortes maternas em comparação à outra.

O problema é que os médicos dessa primeira ala mexiam com cadáveres antes de fazerem os partos – e transmitiam os patógenos dos corpos mortos para os vivos. Em um estudo experimental, Semmelweis pediu para que os médicos passassem a lavar as mãos com sabão antes do procedimento. Isso reduziu o número de mortes de 12,24% para 3,04% em alguns meses.

A descoberta dos germes foi um marco. Quem já tomava banho continuou com o hábito; quem não tomava se afeiçoou à ideia. Ao longo do século 20, a indústria notou um mercado em ascensão – não só na produção de sabonetes, mas em todo o ramo de higiene pessoal. Foi no início do século que a P&G (fundada em 1837) expandiu sua produção para diferentes estados americanos, devido ao aumento da demanda. Em 1927, Hans Schwarzkopf criou a fórmula atual e possibilitou a produção em larga escala do shampoo – até o século 20, o produto era uma espécie de sabão líquido.

As marcas também se aproveitaram da teoria dos germes. A americana Listerine, criada em 1880, só ganhou notoriedade no século seguinte. O enxaguante bucal passou a ser vendido como uma maneira instantânea de matar os micróbios da boca e ainda popularizou o termo “halitose”, dando uma noção de gravidade ao mau hálito.

Mas a coisa só se expandiu para o resto do mundo após a Segunda Guerra Mundial. O American Way of Life propagandeado durante a Guerra Fria vinha acompanhado de pastas de dente, sabonetes, loções para pele, produtos para cabelo, desodorantes, cremes de barbear etc. Embora ainda existam diferenças culturais e locais, a indústria de higiene padronizou
esses hábitos.

Hoje, a higiene pessoal é quase sinônimo de produtos cosméticos. Atualmente, as mulheres passam em média cinco horas por semana limpando e cuidando do corpo, enquanto os homens dedicam três horas à tarefa (5). Parece que voltamos às raízes romanas – desta vez, com a privacidade de usar um chuveiro em casa.

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Fontes: Livro Clean: the history of personal hygiene, The Clean Body: A Modern History, The Dirt on Clean e Em Casa: Uma Breve História da Vida Doméstica.

Em casa: Uma breve história da vida doméstica

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