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Uma breve história da bunda

O glúteo máximo foi fundamental na evolução. Graças a ele, nos tornamos predadores mais ágeis e inteligentes. Entenda como as nádegas nos tornaram humanos.

Por Alexandre Carvalho
19 Maio 2023, 10h18

Chegado a um elitismo, Monteiro Lobato (18821948) não tinha em alta conta o português mais simples falado pela maioria da população brasileira. Chamava o vocabulário do povão de “língua bunda”. Uma expressão pejorativa, claro. Queria dizer que a linguagem inculta, bem diferente da erudita que ele dominava, era “simplória”, “de baixa qualidade”.

Tratar assim, sem carinho nenhum, nosso par de nádegas, como se fosse um palavrão, é um costume universal, claro. Se chamamos um covarde de “bunda-mole”, os americanos ofendem seus compatriotas com um mais virulento kiss my ass ( “beije minha bunda”).

Pura injustiça com o glúteo máximo. Por sua importância na transformação de hominídeos em seres capazes de teorizar sobre a criação do Universo, ele bem que merecia fazer parte de expressões das mais sofisticadas. Afinal, segundo estudos recentes, a bunda foi essencial para a evolução humana. E agora você vai saber por quê.

Adaptada para a savana

A linhagem evolutiva dos humanos e dos chimpanzés separou-se há 8 milhões de anos. Mas ainda não encontramos fósseis do nosso ancestral comum com os grandes macacos. O provável antepassado mais antigo que conhecemos, batizado de Sahelanthropus tchadensis, viveu há 7 milhões. Ele já ensaiava o bipedismo, mas era de fato mais parecido com um chimpanzé do que com um humano. Tinha o corpo adaptado para viver em árvores. Porque, de fato, habitava florestas relativamente densas. Tinha também pernas flexíveis e ágeis, além de pés apropriados para se agarrar em galhos. 

Mas o habitat deles foi mudando, provavelmente por conta de uma das muitas mudanças climáticas no planeta. E isso exigiu a intervenção da seleção natural.

Nossos ancestrais foram se fixando em savanas cada vez mais secas. Com menos árvores para se pendurar – e muitas presas e predadores no chão árido –, a evolução foi adaptando a anatomia deles em nome da sobrevivência ao longo de milhões de anos. 

O Australopithecus afarensis, um hominídeo de 1,5 metro, e que surgiu entre 3,8 e 3,5 milhões de anos atrás, foi um dos que se adaptaram melhor. Em vez de um dedão opositor no pé, que funcionava como o polegar da mão, permitindo o movimento de pinça que facilita se pendurar em galhos e subir em árvores, essa criatura tinha os cinco dedos dos pés alinhados e uniformes. Sinal de que, bem ou mal, já não precisava usar os braços para se locomover. Conseguia caminhar com elegância. 

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Mas, para que nossa ascendência pudesse se alimentar e sobreviver na savana, seria preciso mais do que isso. Era necessário correr. 

É aí que entra na nossa história uma criatura que viveu há 1,9 milhão de anos, às margens do Lago Turcana, perto da fronteira entre o Quênia e a Etiópia. Em 1974, o paleontólogo Bernard Ngeneo descobriu o fóssil de um hominídeo – ou melhor, o fóssil de parte do quadril dele, batizado de KNM-ER 3228. Ngeneo ainda não sabia, mas tinha encontrado a chave para situar a bunda no processo de evolução dos seres humanos. 

Demorou até 1990 para que outro pesquisador desse ao KNM-ER 3228 a importância merecida. Daniel Lieberman, chefe do Departamento de Biologia Evolutiva de Harvard, debruçou-se sobre aquele fóssil para concluir que ele abrigava uma bunda de respeito, bem maior que as dos ancestrais mais antigos, que viviam nas árvores. 

Essa constatação veio ao encontro de uma hipótese de Lieberman: a de que o bipedismo não surgiu apenas para que andássemos eretos e tivéssemos as mãos livres para manusear ferramentas e armas; essa habilidade foi desenvolvida para que pudéssemos correr.

Mas para que correr se qualquer quadrúpede veloz nos deixaria comendo poeira na savana? Porque, embora não tenhamos a velocidade de um antílope, somos melhores maratonistas. E isso faz toda a diferença quando a questão é ter fôlego para, na hora da caça, alcançar animais muito rápidos, mas que não mantêm o ritmo por muito tempo. A capacidade para correr também foi um diferencial para chegar aos restos de um bicho parcialmente devorado antes que essa carne tivesse tempo de estragar (ou antes de outros carniceiros).

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Bundas ilustradas em uma espécie de linha do tempo, mostrando a evolução do crescimento dessa parte do corpo.
(Clara Candelot/Superinteressante)

Num experimento de Lieberman que envolvia porcos trotando numa esteira, um colega seu, Dennis Bramble, observou que as cabeças dos suínos ficavam balançando para lá e para cá durante o exercício, e isso os impedia de correr direito. Concluiu que era uma consequência de os porcos não terem o “ligamento nucal”. Esse cordão vai da parte posterior do crânio até o ligamento supraespinhoso, localizado nas costas e que conecta as pontas das vértebras. 

Essa pequena engrenagem na nuca deixa a cabeça estável enquanto o corpo se movimenta em alta velocidade. Grandes corredores do mundo animal, como cavalos, leopardos e cachorros, têm esse ligamento. Chimpanzés e gorilas não. Mas o ser humano, veja só, tem. Ou seja, embora nem todo mundo seja um Usain Bolt, evoluímos para correr. 

Examinando fósseis do Museu de História Natural de Harvard, então, esses pesquisadores descobriram que o ligamento nucal surgiu com o Homo erectus, de 2 milhões de anos atrás e justamente o primeiro exemplar do gênero Homo, o nosso, com características mais humanas do que simiescas.

O ligamento nucal chegou junto com outras características anatômicas perfeitas para que esses hominídeos pudessem correr bem: dedos mais curtos nos pés, que podiam dobrar e flexionar quando se lançavam para a frente; pés arqueados e tendões de aquiles longos, que agem como molas e amortecedores; joelhos capazes de suportar o peso das pisadas duras de uma criatura em alta velocidade. E não menos importante: o erectus também foi a primeira espécie do nosso gênero a ter uma bunda proeminente. 

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Se o ligamento nucal segura a cabeça no lugar enquanto corremos, é o traseiro que equilibra o resto do corpo. “A bunda é uma adaptação essencial para a capacidade humana de correr com estabilidade, por longas distâncias, sem se machucar”, explica Heather Radke, autora de Butts – a Backstory (“Bundas – Uma História de Fundo”, sem edição no Brasil).

Os músculos da bunda (que se contraem quando corremos) formam um aparato complexo de estabilização do corpo humano. Enquanto o equivalente deles nos chimpanzés apenas permitem que esses animais projetem suas pernas para a frente, nos humanos eles funcionam endireitando o tronco enquanto os membros se movem rapidamente. Além de nos manter eretos durante o trote, o glúteo máximo controla o balanço da perna no ar, a flexão do quadril no impacto do pé quando encosta no chão (também nos desacelera um pouco nessa hora) e estende a coxa a cada passada. 

Quanto mais rápido você correr, maior será o envolvimento dos glúteos. Mas, para nossos ancestrais nas savanas, mais importante que a velocidade era o alcance na corrida que essa estabilidade proporciona. Maior estabilidade significa menos esforço, então somos tecnicamente capazes de correr por horas. Diferentemente dos grandes velocistas do Reino Animal. 

Cavalos e outros quadrúpedes não conseguem respirar com eficiência em suas disparadas, só quando se movem devagar. Sua velocidade máxima, então, não combina com grandes distâncias. Antílopes não têm a capacidade de modular sua temperatura no pique para fugir de um leão faminto. Humanos, trotando em baixa velocidade, sim. Então, quando os animais se cansavam, nossos ancestrais coseguiam chegar onde eles estivessem para matá-los. Ou eram capazes de alcançar rapidamente os restos do banquete de um animal maior.

Mais comida, mais nutrientes, maior desenvolvimento do cérebro. Não é à toa, portanto, que o Homo erectus, além de ter sido o primeiro de nossos ancestrais a correr longas distâncias graças ao equilíbrio proporcionado por suas bundas , foi o primeiro a ter um cérebro grande, já equivalente a 70% do nosso. 

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Homem versus cavalo

Parece contraintuitivo que humanos, correndo devagar, alcançassem animais mais rápidos? Uma evidência dessa possibilidade existe ainda hoje, numa dessas competições exóticas que nós, humanos, gostamos de promover: a corrida de homens contra cavalos. 

Em junho do ano passado, o corredor britânico Ricky Lightfoot venceu uma prova (de longa distância, mais apropriada para o estilo maratonista) contra cavalos realizada no País de Gales. 

Um grupo de 1.200 corredores competiu contra 60 cavalos e cavaleiros no evento, que aconteceu ao longo de colinas escarpadas e terreno lamacento do interior galês. A vitória foi por pouco. Ricky, um bombeiro de 37 anos, completou os 35 quilômetros em duas horas, 24 minutos e 23 segundos. Um segundo antes que o cavalo Lane House Boy.

Essa estranha competição foi criada na década de 1980, depois que duas pessoas, já animadas em um pub local, apostaram se um homem poderia derrotar um cavalo em uma corrida de longa distância. Demorou, mas ficou provado que sim. Em 2004, o atleta Huw Lobb, então com 27 anos, se tornaria o primeiro humano a deixar os cavalos para trás nessa maratona inter-espécies.

Pessoas ilustradas fazendo diversos movimentos que só são possíveis por causa do desenvolvimento da bunda, como: correr, agachar, escalar.
(Clara Candelot/Superinteressante)
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Mil e uma utilidades

Aliás, a bunda não nos deu só a corrida no processo evolutivo. Um outro grupo de cientistas, liderado por Jamie Bartlett, da Universidade do Colorado, aponta para mais um superpoder do par de nádegas: sua faceta multifunção. 

Bartlett diz que o glúteo máximo é “semelhante a um canivete suíço”. Ele concorda com a hipótese de que esse músculo se desenvolveu para que atravessássemos longas distâncias correndo em marcha lenta. Mas adiciona outra afirmação: a de que, ao nos dar agilidade para agachar, levantar, fazer escaladas e até manter o corpo em posição para arremessar pedras e paus, fez com que tivéssemos mais desenvoltura para nos livrar de predadores.

Armazém de calorias 

Até agora falamos do papel do glúteo máximo na evolução humana. Mas a bunda também é feita de gordura. E a adiposidade tem sua participação na odisseia humana – principalmente para mulheres grávidas ou amamentando. 

A gestação de um bebê exige que a mulher consuma, aproximadamente, 300 calorias a mais que o seu normal por dia. A amamentação também demanda mais combustível para gastar. Hoje, qualquer mercadinho próximo resolve essa necessidade. 

Mas, há milhões de anos, quando o alimento era escasso e eventual, as lactantes muitas vezes precisavam contar com o que havia de gordura no corpo para alimentar seus bebês – pelo menos com o mínimo necessário para a sobrevivência. Não é por acaso que as mulheres têm mais gordura espalhada pelo corpo que os homens – que contam com mais músculos. Nesse “espalhamento”, a bunda foi privilegiada pela evolução – assim como as coxas. Mas por que essas partes? 

Porque elas estão distantes de órgãos vitais do organismo, como o coração e o pulmão – partes que podem adoecer se estiverem cercadas de tecido adiposo. “Há evidências de que mulheres com bundas e coxas maiores têm leite materno mais gorduroso, uma vantagem evolutiva para ajudar seus bebês a se desenvolver”, explica Heather Radke. “Principalmente em lugares sem acesso imediato a gordura significativa.”

E aí voltamos à essência deste texto: até a gordura da bunda das mães foi importante para que os bebês do passado crescessem com mais nutrientes. Um fator imprescindível para que tivessem cérebros maiores e mais capazes. A combinação dessa gordura com os músculos dos glúteos abriu, em grande parte, o caminho para o surgimento do Homo sapiens, há 300 mil anos. Em outras palavras, a bunda nos tornou humanos.

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