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Sim, você já assistiu esse filme

Você às vezes tem a sensação de que assistiu ao mesmo filme ou de que leu o mesmo livro diversas vezes? O americano Joseph Campbell, um estudioso de mitos, tem uma explicação para isso.

Por Carlos Charnij
Atualizado em 31 out 2016, 18h23 - Publicado em 30 set 2006, 22h00

O herói está tocando sua vida tranquilamente, até que recebe um chamado à aventura. Sem querer se complicar, ele em princípio recusa o chamado. Mas logo acontece alguma desgraça e surge um sábio ou mentor que o encoraja a encarar o desafio e partir rumo à sua missão. No caminho, muitas tarefas difíceis, inimigos e aliados. Ao final da estrada, enfrenta um teste dificílimo para finalmente conseguir sua recompensa. Mas, antes de poder voltar para casa, ele precisa sobreviver a uma grande perseguição. Só então o herói pode aproveitar o tesouro, ficar com a mocinha ou ter a certeza de que o mundo foi salvo.

Sim, você já viu essa história milhares de vezes. De maneira bem resumida, o primeiro parágrafo deste texto é o que o americano Joseph Campbell (1904-1987), um estudioso de mitos, chamou de “a jornada do herói”, ou monomito. Suas pesquisas sobre o tema foram publicadas em 1949, no livro O Herói de Mil Faces, no qual Campbell aponta quais seriam as idéias elementares presentes em todos os grandes mitos por meio do estudo comparativo de inúmeras histórias das mais diversas culturas. Mas, em vez de mofar em algum canto escuro de biblioteca, o estudo de Campbell modificou profundamente os rumos da indústria do entretenimento. Livros, filmes, seriados, novelas e até mesmo os reality shows bebem na fonte da jornada do herói, criando desde épicos cultuados, como as sagas de Guerra nas Estrelas, O Senhor dos Anéis e Matrix, até aquele filme morno que, apesar de prender sua atenção por duas horas, não dura nem cinco minutos na memória.

E por que essa fórmula mágica funciona tão bem? “Responder essa pergunta equivale a responder por que a ficção é fundamental para o ser humano, uma questão que divide filósofos, psicólogos e antropólogos num debate que começou há milhares de anos”, diz Lúcio Manfredini, estudioso de mitologia e roteirista da TV Globo. “O fato é que, em todas as épocas e lugares, as pessoas não só apreciam histórias como têm necessidade delas, e essas histórias, como o Campbell mostrou, sempre seguem os mesmos padrões.” Uma das possíveis razões, bastante apoiada na psicanálise, seria que o monomito capta as forças e impulsos primitivos do nosso inconsciente e dramatiza-os na forma de símbolos (os passos da jornada). “Isso nos ajuda a lidar com essas angústias de forma mais consciente, ajudando no nosso equilíbrio emocional”, diz Manfredini. De fato, o psiquiatra suíço Carl Jung (que trocava correspondência com Campbell) acreditava que os elementos da jornada do herói estavam intimamente ligados ao nosso subconsciente. Todos nós, mesmo sem saber conscientemente, já nasceríamos com esses padrões pré-programados em nossas mentes. Na prática, isso quer dizer que todo ser humano, independentemente de sua cultura, já nasceria sabendo identificar conceitos como herói, mentor ou jornada.

Mas, em vez de se perder em discussões puramente teóricas, Campbell resolveu arregaçar as mangas. O ponto de partida foi sua tese de mestrado, na década de 1920, quando demonstrou que os contos do Rei Arthur e a Távola Redonda tinham diversos elementos em comum com as lendas dos índios norte-americanos. Partiu então para uma temporada de dois anos na Europa, onde estudou os mais diversos assuntos. Entre eles, a língua sânscrita, o hinduísmo e a psicanálise. Ao longo dos 20 anos seguintes, colecionou todos os mitos que encontrou e comparou-os à exaustão. Resultado: todas as histórias que sobreviviam ao tempo – desde as lendas gregas até os relatos sobre as vidas de Buda e Jesus Cristo – tinham elementos estruturais em comum. A jornada do herói realmente existia e funcionava.

Livro de receitas

“O livro de Campbell definitivamente mudou minha vida”, diz o roteirista americano Christopher Vogler. Ao ler O Herói de Mil Faces durante a faculdade de cinema, Vogler viu que ali havia material de primeira – apesar de a linguagem ser bastante acadêmica e um tanto difícil de digerir numa primeira leitura. Em 1993, quando trabalhava no roteiro de O Rei Leão, na Disney, Vogler escreveu um texto de sete páginas chamado “O Guia Prático Sobre o Herói de Mil Faces”, no qual transcreveu as observações de Campbell de uma maneira simplificada e bastante objetiva – praticamente uma cartilha. “Aquilo foi muito útil para mim e, a julgar pela velocidade com que se multiplicou pelas máquinas de fax de Hollywood, ajudou a muitas outras pessoas também”, diz o roteirista. O guia foi sendo aprimorado até se tornar a obra A Jornada do Escritor, um verdadeiro livro de receitas sobre a jornada do herói.

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“A obra de Campbell tem duas grandes funções para os filmes”, diz Vogler. “A primeira é mostrar que existe uma estrutura que podemos usar para criar novas histórias. A segunda é servir de ferramenta para descobrir por que uma determinada história falha em chamar nossa atenção e então tentar consertá-la”. Pode soar bastante industrial (e é), mas, como você deve ter percebido, toda essa técnica não conseguiu acabar com as histórias ruins que inundam a literatura e o cinema. “A estrutura ajuda, mas é preciso sabedoria para escolher os elementos certos. A inspiração ainda é absoluta”, diz o roteirista.

Mas, uma vez que se acerte a mão, a satisfação é garantida. “Veja o caso de Guerra nas Estrelas e O Senhor dos Anéis”, diz Vogler. “São sagas que seguem exatamente essa estrutura, de maneira óbvia e escancarada. Ambas falam sobre pessoas lutando contra o lado negro de suas naturezas. Mas os elementos míticos são tão fortes que é impossível não se envolver.” E o que acontece quando as coisas dão errado? “Veja o exemplo da trilogia Matrix”, diz Manfredini. “No primeiro filme, Neo segue os passos da jornada do herói. Virou objeto de culto instantâneo. No segundo, os mitos ficaram meio de lado e deram lugar a citações intelectuais bem mais difíceis de se entender. Já no terceiro ficou tudo reduzido a meros clichês, que acabaram desagradando a maior parte dos fãs conquistados na primeira parte.” Para ele, além da técnica, entram outros fatores como a criatividade, o talento e, acima de tudo, a sensibilidade do autor.

E, caso você esteja preocupado agora por saber que há um mecanismo por trás das suas histórias favoritas, não tema. Elas não vão se tornar menos legais. Afinal, segundo Campbell e Jung, nós somos programados para gostar dessa estrutura. “Sentimos prazer em ver novas variações”, diz Vogler. “Já analisei milhares de roteiros ao longo da minha carreira e continuo me surpreendendo com as guinadas dos personagens”, tranqüiliza Vogler. “No fundo, o que importa numa história é ela nos dar a sensação de que a vida tem algum sentido.”

 

Para saber mais

LIVROS

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O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell, Pensamento, 1995

Oculto por trás de mil faces, existe um herói por excelência, um arquétipo de todos os mitos.

A Jornada do Escritor, Christopher Vogler, Nova Fronteira, 2006

As etapas para escrever uma boa história.

 

A fórmula mágica

As idéias de Joseph Campbell, na prática

O quadro abaixo é uma adaptação do passo a passo proposto pelo roteirista Christopher Vogler e sua aplicação no Episódio IV do filme Guerra nas Estrelas

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1. O mundo normal

Mostra o herói em sua vida cotidiana

Luke Skywalker vive com seus tios em Tatooine

2. O chamado à aventura

Surge um problema ou desafio

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Mensagem da princesa Leia para Obi-Wan Kenobi, mostrada por R2-D2

3. A recusa da aventura

O herói teme enfrentar o desconhecido

Luke fica com seus tios para ajudar na colheita

4. Mentor ou sábio encoraja a aventura

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Surge um guia que dará conselhos, conhecimentos e itens de ajuda

Após o assassinato dos tios de Luke, Obi-Wan o encoraja a seguir viagem, conta sobre os Jedis e lhe dá o sabre de luz de Anakin Skywalker

5. O primeiro limiar e o encontro com inimigos e aliados

Surge o primeiro conflito, que marca a passagem do herói para o mundo da aventura. Surge gente disposta a ajudar e a atrapalhar (se fosse moleza, não precisaríamos de um herói)

A fuga de Tatooine. Luke encontra aliados como Han Solo e Chewbacca e também com Jabba the Hut, um inimigo

6. O herói entra na caverna profunda (o covil do inimigo) e enfrenta o desafio supremo

O herói precisa encarar a morte de perto, numa situação onde sua derrota é certa

A invasão da Estrela da Morte para resgatar a princesa Léia. Luke e seus aliados são quase mortos

7. A recompensa

Todo esse sofrimento não podia ser a troco de nada, não é verdade?

Resgate da princesa e obtenção do esquema da Estrela da Morte

8. O caminho de volta

Achou que tudo tinha acabado? Não, sem antes uma perigosa perseguição

A perseguição durante a fuga da Estrela da Morte

9. Ressurreição

O herói sai vivo do mundo da aventura, mas não é mais o mesmo. Ele foi transformado pela jornada

Com o auxílio da Força, Luke destrói a Estrela da Morte. É o seu início como Jedi

10. O retorno com o elixir

O retorno para o mundo normal. Em muitos casos, é quando as pessoas comuns recebem a dádiva trazida pelo herói

A cerimônia da vitória, no final do filme

 

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