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O apocalipse da Idade do Bronze

No século 12 a.C., um fenômeno histórico abalou várias civilizações do Mediterrâneo: umas ruíram, outras sobreviveram muito enfraquecidas. Os motivos são desconhecidos até hoje. Veja o que novos estudos revelam sobre esse período – e o que ele pode ensinar ao mundo atual.

Por Reinaldo José Lopes
12 ago 2024, 10h00

EEra o ano de 1177 a.C., e o mundo estava acabando. Ou, pelo menos, o mundo que havia sido construído durante séculos (ou até milênios) por reis, guerreiros e burocratas do Mediterrâneo.

Essa gente tinha se acostumado a uma espécie de globalização em pequena escala, graças à qual era possível navegar, comercializar objetos luxuosos e enviar cartas com propostas de casamento, ameaças ou simples saudações a pessoas do outro lado do mar. Era uma realidade próspera e relativamente tranquila. Mas veio abaixo em pouco tempo – e nunca se reergueu por completo.

Trata-se do “apocalipse da Idade do Bronze”, um fenômeno histórico que arrasou civilizações da Grécia à Síria, passando pelo Egito faraônico, no século 12 a.C. – e até hoje não foi plenamente esclarecido. Alguns povos aguentaram muito melhor o tranco do que outros, e houve até quem saísse da catástrofe generalizada mais forte do que tinha entrado nela.

Essa é a questão que arqueólogos e historiadores estão começando a elucidar com mais clareza: o que aconteceu naquele período? E, se algumas civilizações até se beneficiaram do apocalipse, qual é a receita para sobreviver ao fim do mundo?

O interesse em desvendar o apocalipse da Idade do Bronze não é simples curiosidade acadêmica. “De muitas maneiras, o nosso mundo não é muito diferente do deles antes do colapso”, afirma o historiador Eric Cline, professor do Departamento de Estudos Clássicos e do Antigo Oriente Próximo da Universidade George Washington (EUA).

Cline publicou recentemente o livro After 1177 B.C.: The Survival of Civilizations (“Depois de 1177 a.C.: A sobrevivência das civilizações”, ainda inédito no Brasil). Na nova obra, ele apresenta as descobertas mais recentes sobre o que aconteceu depois que a poeira e as cinzas da catástrofe baixaram.

Trata-se de uma continuação de um livro anterior do arqueólogo, também com a data fatídica no título (1177 a.C.: O ano em que a civilização entrou em colapso, lançado em português no ano passado).

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Para ele, as semelhanças entre a Idade do Bronze tardia e o século 21 não podem ser desprezadas. Ambos são mundos fortemente conectados pelo comércio internacional, pela difusão de tecnologias e por relações diplomáticas e de competição entre civilizações.

“Quando você vê o que aconteceu com eles e onde estamos agora, o cenário é um pouco preocupante, porque percebemos como também somos dependentes dessas conexões”, analisa o pesquisador.

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O Egito derrotou os “Povos do Mar”. Mas nunca mais foi o mesmo. (Rodrigo Damatti/Superinteressante)

A data faraônica

A globalização da Idade do Bronze não se esfacelou num único ano cabalístico. O processo foi mais gradual – o que não significa que a data escolhida por Cline seja totalmente arbitrária. O ano citado nos títulos dos livros foi estabelecido de forma precisa graças à cronologia egípcia, uma das mais detalhadas e bem preservadas da Antiguidade.

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1177 a.C. corresponde ao oitavo ano do reinado do faraó Ramsés III, devidamente registrado em monumentos construídos por ordem dele próprio. Foi quando o soberano egípcio enfrentou e derrotou duas vezes uma aliança de misteriosos invasores que, ao que tudo indica, já havia tocado o terror em outras áreas do Oriente Próximo algum tempo antes.

Esse grupo de agressores costuma ser chamado coletivamente de “Povos do Mar”, e há uma discussão acadêmica interminável sobre a identidade desses sujeitos. Os nomes de tais povos, citados nos monumentos egípcios, são difíceis de pronunciar e à primeira vista parecem saídos de algum romance best-seller de fantasia: Denyen, Peleset, Shekelesh, Sherden e por aí vai.

Com base na etimologia desses nomes, muitos pesquisadores propõem que os Shekelesh seriam oriundos da atual Sicília (já que na Antiguidade o nome da ilha italiana era pronunciado como se fosse “Sikília”).

 

Grafico - mapa

Os Sherden poderiam ter vindo da atual Sardenha, também na costa italiana. Já os Peleset seriam os futuros filisteus, um povo talvez oriundo da ilha de Creta que, relativamente pouco depois do ataque ao Egito, fundou cidades na região da atual Faixa de Gaza e se tornou inimigo dos israelitas da Bíblia.

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Não há certeza sobre essas identificações. Mas as inscrições egípcias indicam, com segurança, que os Povos do Mar vinham de regiões periféricas dos grandes impérios da Idade do Bronze, e parecem ter operado como uma mescla de piratas e refugiados armados.

Atacavam, pilhavam e incendiavam cidades costeiras, mas também levavam consigo suas mulheres, filhos, carroças e animais domésticos, provavelmente com a intenção de se fixar nas terras onde desembarcavam.

No caso do Egito, deu ruim para os Povos do Mar, conforme Ramsés III conta em seus monumentos. O esforço de guerra, porém, drenou tanto os recursos egípcios, além de arrancar outras regiões da esfera de influência dos faraós, que o reino do Nilo nunca mais voltou a ser a potência internacional que havia sido durante da Idade do Bronze.

E os egípcios até que saíram no lucro. As invasões “bárbaras” parecem ter sido, por exemplo, um fator importante para o completo desaparecimento do Império Hitita, que tinha unificado quase todo o território da atual Turquia sob seu comando nos séculos anteriores.

No litoral dos atuais Síria, Líbano, Israel e Palestina, muitas cidades-estado antigas e poderosas viraram fumaça, entre as quais Ugarit, a grande senhora do comércio do Mediterrâneo Oriental na época.

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Por fim, uma onda de destruição se abateu também na Grécia continental. Nessa época, no lugar dos políticos e filósofos que fariam a fama da civilização grega bem mais tarde, a região era ocupada por vários pequenos reinos que pareciam “Egitos” em miniatura, na chamada civilização micênica.

Os micênicos eram governados por reis extremamente poderosos, cercados de luxo, defendidos por guerreiros que lutavam em carros de guerra (ou bigas, como diriam os romanos). Burocratas registravam – e, claro, taxavam – toda a produção dos camponeses e artesãos, incluindo até os nomes das vacas sobre as quais cobravam impostos, usando o linear B, uma forma de escrita baseada em sílabas (a língua por trás do linear B era uma forma muito arcaica do grego).

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Fenícios e cipriotas viram oportunidade na crise – e prosperaram. (Rodrigo Damatti/Superinteressante)

Quando a poeira do colapso baixou, tudo isso tinha deixado de existir. Os palácios luxuosos foram incendiados ou abandonados, a população grega pode ter caído pela metade e até a arte da escrita foi completamente esquecida (o linear B era complexo demais para continuar sendo ensinado quando já não havia necessidade de burocratas palacianos).

Mas os Povos do Mar (quem quer que fossem eles) não podem ser responsabilizados sozinhos por tanta desgraça. Tudo indica que, para que eles conseguissem causar tanto estrago, foi preciso que boa parte do Mediterrâneo Oriental já tivesse sido desestabilizada por outros fatores, e o principal parece ter sido o clima.

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Num estudo publicado em 2023 no periódico especializado Nature, uma equipe liderada por Stuart Manning, da Universidade Cornell (EUA), mostrou que todo o século anterior ao colapso foi marcado por condições cada vez mais secas na esfera de influência dos hititas, por exemplo. Situações parecidas podem ter afetado as ilhas do mar Egeu, a Grécia e talvez até a Itália.

Por fim, pouco depois de 1200 a.C., três anos consecutivos de seca totalmente fora do comum chegaram, coincidindo, ao que parece, com o abandono de Hattusa, a capital hitita. “Um ano de seca intensa afetando uma área grande pode destruir vidas, mesmo no mundo moderno”, diz Manning.

“Dois anos contínuos costumam destruir as estratégias de resiliência a longo prazo, fazendo com que, por exemplo, não seja mais possível alimentar animais domésticos nas fazendas. Um terceiro ano consecutivo é muito raro, e muito sério”, afirma.

“No mundo pré-moderno, isso acabaria minando a autoridade do rei, tanto pela incapacidade de coletar impostos e alimentar o Exército quanto também do ponto de vista simbólico: claramente os deuses abandonaram e rejeitaram os governantes.”

Se o trabalho dos historiadores de Cornell estiver correto, a instabilidade provocada pelas condições climáticas desastrosas talvez explique por que os Povos do Mar resolveram botar suas famílias e seus cacarecos numa carroça, enfiá-la num navio e sair Mediterrâneo afora atacando cidades.

Por outro lado, as colheitas ruins também podem ter estimulado revoltas internas em vários reinos – até porque, na maioria dos casos, não há indício de que uma população vinda de fora tenha conquistado os domínios palacianos.

Seja como for, o cenário geral da desgraça e suas causas estão ficando razoavelmente claros. O apocalipse da Idade do Bronze está relacionado a guerras e fenômenos climáticos, com suas consequências políticas e econômicas. Mas também houve quem se virasse relativamente bem em meio a esse caos.

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A ruína mudou a Grécia – e resultou em uma nova cultura. (Superinteressante)

Assírios, fenícios e cipriotas

Na categoria dos sobreviventes, cada caso é um caso, mas há alguns pontos interessantes em comum. Talvez a situação mais simples de entender seja a da Mesopotâmia (grosso modo, o atual Iraque), onde a Assíria, no norte, e a Babilônia, no sul, mantiveram sua estrutura estatal mais ou menos intacta.

A sorte de ambas essas potências mesopotâmicas é que, para começo de conversa, elas estavam relativamente longe do Mediterrâneo – e, portanto, fora do alcance direto dos navios dos Povos do Mar. O segundo ingrediente da sobrevivência: liderança com a cabeça no lugar.

“Eles tiveram os líderes certos na hora certa. Enquanto o Império Hitita, por exemplo, bem no momento em que a grande seca causava seus piores efeitos, acabou dilacerado por uma guerra entre membros da família real”, compara Eric Cline.

Por volta de 1267 a.C., o rei hitita Mursili III entrou em conflito com seu tio, Hattusili III, e a disputa desencadeou uma guerra civil – vencida pelas forças de Hattusili.

E há, é claro, um fator ainda mais crucial: água. Água em abundância faz toda a diferença do mundo para um império agrário. “Assírios e babilônios podiam contar com o Tigre e o Eufrates, que continuaram fornecendo água em quantidades adequadas mesmo durante a grande seca”, diz o arqueólogo americano. “Os egípcios tinham o Nilo. Já os hititas não contavam com nenhum rio tão resiliente em seu território.”

Ok, faz sentido. Mas, com exceção da liderança, os outros fatores, ambos geográficos, não são muito fáceis de controlar, ainda mais com a tecnologia da época. Dois outros sobreviventes por excelência do apocalipse em miniatura parecem ter conseguido se virar bem por outros motivos – que, ao menos em parte, foram escolhas tomadas por suas sociedades. Estamos falando dos fenícios e dos cipriotas, povos que não costumam estar no topo da lista dos mais famosos ou poderosos da Antiguidade, mas que convém não subestimar.

“Os fenícios são o que o financista Nassim Nicholas Taleb chama de antifrágeis: eles conseguiram florescer justamente em meio a uma situação caótica”, diz Cline. Um elemento importante para o sucesso das cidades-estado fenícias, como Sidon, Biblos e Tiro (todas localizadas no atual Líbano) parece ter sido o seu oportunismo.

Ao perceberem que havia um vácuo comercial causado pela destruição de Ugarit, a antiga senhora do tráfego marítimo, os fenícios deram um jeito de ocupar os espaços que tinham ficado vazios no Mediterrâneo.

Isso significa que, mesmo num cenário de declínio do comércio marítimo, os marinheiros da região conseguiram se manter no topo. Ao que parece, a organização política e econômica das cidades fenícias também era menos centralizada e autoritária que a dos finados reinos micênicos da Grécia, antes membros importantes do comércio internacional.

Assim, elas tinham mais flexibilidade para aproveitar as novas oportunidades, inclusive avançando para o Mediterrâneo ocidental (na Espanha e na costa africana, por exemplo) em busca de matérias-primas e novos parceiros comerciais.

O caso dos habitantes da ilha de Chipre tem algumas semelhanças com o dos fenícios – a posição insular no meio do Mediterrâneo certamente os empurrava para o comércio marítimo. Mas Cline destaca outro ponto-chave: inovação tecnológica.

“Eles são inovadores, inventivos. Conseguiram mudar de ramo, passando da produção de cobre para a de ferro, embora a de cobre não desapareça totalmente, claro”, explica.

Não é por acaso, afinal de contas, que a Idade do Bronze (metal que tem o cobre como uma de suas matérias-primas) tenha acabado, dando origem justamente… à Idade do Ferro.

Na verdade, a produção de ferro já era conhecida por algumas das civilizações da Idade do Bronze, mas os processos usados para transformar o metal em armas e utensílios mais confiáveis e bem mais baratos que os de bronze ainda estavam sendo desenvolvidos. E os cipriotas desempenharam um papel crucial nisso.

“Não sei se aquele velho ditado sobre a necessidade ser a mãe da invenção sempre é verdadeiro, mas ele certamente funcionou no caso deles”, afirma o historiador. “Eles já estavam envolvidos no comércio internacional com o cobre: bastou trocar de mercadoria.”

Excetuando os ingredientes geográficos, portanto, já temos uma lista do que parece ter salvado a pele de ao menos algumas das civilizações após o grande colapso: boas lideranças, com poucos conflitos internos; relativa descentralização; capacidade de identificar novos nichos de mercado; inovação tecnológica.

Tudo isso faz bastante sentido, sem dúvida. Mas também é preciso considerar que, na trajetória mais ampla da história humana como um todo, talvez o apocalipse da Idade do Bronze não tenha sido lá tão trágico.

Os sobreviventes da nobreza e dos escribas dos palácios micênicos certamente devem ter chorado um bocado pela destruição de seus salões decorados e de suas muralhas imponentes. Entretanto, foi justamente a queda dos governos palacianos que abriu espaço para uma reconstrução quase total da vida política e social na Grécia.

Os antigos monarcas foram substituídos por assembleias dos proprietários de terras, que passaram a tomar decisões coletivamente. E, com o passar dos séculos, em vários lugares, como a famosa Atenas, surgiram alguns dos primeiros experimentos de política democrática da História. Sem o desastre, seria muito mais difícil que isso acontecesse.

Do mesmo modo, na terra então conhecida como Canaã, a destruição de cidades-estado antes submetidas ao poder imperial do Egito, junto com a perda da própria influência egípcia, transformou completamente a história da região. Ali, grupos que sobreviveram à catástrofe criaram os novos reinos de Israel e Judá, celebrando sua libertação do domínio do Egito (que eles descreveram como uma escravidão em solo egípcio) e a fé num novo deus chamado Yahweh (ou Javé, na forma aportuguesada).

Começava assim a surgir a tradição religiosa que daria origem à Bíblia e às crenças judaicas, cristãs e islâmicas. Tal como no caso dos gregos, sem a destruição das antigas estruturas imperiais, esses caminhos inovadores talvez nunca chegassem a ser trilhados.

O apocalipse da Idade do Bronze foi devastador, mas também permitiu que coisas novas surgissem. Sugere que há algo de verdade naquela máxima tão batida, de que toda crise também pode trazer oportunidades. Desde que se esteja preparado – e no lugar certo.

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