Mito: “a Ditadura Militar foi branda”
Os generais queriam parecer legítimos. Mas, discretamente, foram endurecendo o regime – até transformar a tortura e o extermínio em política de Estado.
A ditadura militar brasileira matou pelo menos 434 pessoas por motivos políticos. É menos que os 3.065 da ditadura chilena (1973-1990) e os estimados 30 mil da ditadura argentina (1976-1983). O Congresso permaneceu aberto, com exceção de três períodos que somam menos de um ano, e as eleições legislativas ocorreram conforme o calendário. E não houve uma ditadura pessoal, como aconteceu no Chile, com Augusto Pinochet (1973-1990), no Paraguai, com Alfredo Stroessner (1954-1989), ou mesmo no Estado Novo, com Getúlio Vargas (1937-1945).
É por comparações assim que algumas pessoas consideram o regime militar uma “ditabranda”. Engano. Na verdade, a ditadura se empenhou exatamente em manter uma aura de legitimidade. Uma das grandes preocupações dos generais era não fazer o Brasil parecer mais uma republiqueta bananeira. Mas por trás da aparente brandura escondia-se a dureza.
Para começar, os assassinatos políticos e a tortura. Todos os generais presidentes negavam a prática, como se fossem resultado da ação de alguns poucos radicais. Mas foram não apenas omissos com abusos, como também chancelaram a criação do sistema DOI-Codi, que fez da tortura e do extermínio uma política de Estado.
O Congresso também permaneceu aberto a maior parte da ditadura. Mas isso só foi permitido com o fim dos partidos políticos, a cassação de 173 deputados e a perda dos direitos políticos de 509 opositores. Como se não bastasse, toda vez que a oposição ameaçava crescer, os militares alteravam a legislação eleitoral no meio do jogo. Assim, era fácil dar a impressão de haver disputa política – e, ao mesmo tempo, impedir qualquer alternância no poder.
A ditadura ainda manteve o acesso à Justiça, mas só para os crimes comuns. Já os crimes políticos, enquadrados na Lei de Segurança Nacional, foram levados para a Justiça Militar. E, conforme a máxima atribuída a Georges Clemenceau, “a Justiça Militar está para a Justiça assim como a música militar está para a música”.
Operação limpeza
Nenhum presidente desse período foi democrático, mas alguns se preocupavam mais com a legitimidade do que outros. Castelo Branco planejava uma rápida limpeza para retirar da política os que considerava “subversivos” ou “corruptos”. Em seguida, convocaria eleições diretas e devolveria o País aos civis. Não é de surpreender que Carlos Lacerda, pré-candidato pela UDN, tenha saudado o golpe com lágrimas: “Obrigado, meu Deus, muito obrigado!”
Em vez de jogar fora a Constituição de 1946, a ditadura inventou uma jabuticaba jurídica: o Ato Institucional, que fazia a chamada “revolução vitoriosa” caber no ordenamento jurídico anterior. Apesar de acabar com a eleição presidencial direta e permitir expurgos políticos, o AI não eliminava direitos civis como a liberdade de expressão e a garantia de habeas corpus, mesmo em casos de crime político.
NA DITADURA OCORRERAM
– 6.016 denúncias de tortura
– 434 mortos ou desaparecidos
Originalmente, o AI não tinha número – afinal, deveria ser um só. Mas a ditadura outorgou 17. Isso porque os militares não se limitavam ao aparente legalismo de Castelo. Os generais eram um grupo heterogêneo. Eles sabiam muito bem o que não queriam: corruptos, populistas e comunistas. Mas não concordavam sobre o que queriam. Enquanto os castelistas mantinham certos pudores constitucionais, a linha dura pressionou pelo aprofundamento da ditadura. E conseguiu. Em outubro de 1965, o presidente já assinava o AI-2, que instaurava de vez as eleições indiretas, aumentava os poderes do presidente e acabava com os partidos políticos. Agora, era só a Arena, governista, e o MDB, oposição consentida pelo governo.
“Castelo realmente pensava que poderia encerrar o período revolucionário; queria a eleição de um presidente civil, da área política, para que o País entrasse em regime normal”, disse Ernesto Geisel a pesquisadores do CPDOC, da FGV. “Isso tudo foi obstado, porque os mais radicais, que nós chamamos de linha dura, exerceram pressões, envolvendo os próprios políticos, que por sua vez preferiram eleger o Costa e Silva.”
Ano rebelde
Conforme o regime militar se prolongava, o apoio da população diminuía. O milagre econômico ainda não tinha começado, os salários vinham caindo, e Seleção não tinha sequer passado da primeira fase na Copa de 1966. A aura de legitimidade se apagava. Apoiado pela linha dura, Costa e Silva tomou posse em março de 1967, cheio de ambiguidades. Ao Congresso, prometia abertura; aos militares, continuação do regime. Enquanto isso, o movimento estudantil se organizava para demandar novas liberdades, e a esquerda armada começava a se mobilizar. Em abril, o regime desmontava a Guerrilha do Caparaó, liderada por Brizola. Em agosto, o líder comunista Carlos Marighella participava em Havana de uma conferência de guerrilhas latino-americanas. No final do ano, abandonou o PCB, que continuava contra as armas, e formou a Ação Libertadora Nacional (ALN), maior grupo guerrilheiro da época.
Era questão de tempo para o País entrar em convulsão. O gatilho do ano rebelde veio em março de 1968, quando a polícia matou a tiros o secundarista Edson Luís num protesto contra os preços do Calabouço, um restaurante estudantil no centro do Rio. Isso desencadeou uma onda de manifestações contra o regime a que se uniram estudantes, artistas, religiosos, políticos de oposição. O fantasma das greves também assombrou em Contagem (MG), Osasco e São Bernardo do Campo (SP), e a guerrilha urbana começava a escalar.
Membros da ALN assaltavam bancos, passando-se por criminosos comuns. Na madrugada de 26 de junho, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) lançou um caminhão com 15 quilos de dinamite contra o Quartel General do 2º Exército, próximo ao Ibirapuera, em São Paulo. Matou o soldado Mário Kozel Filho e feriu outros seis militares. Por outro lado, militares indisciplinados estouravam bombas em teatros, universidades e missões diplomáticas de países socialistas, e grupos de extrema-direita agrediam artistas e estudantes.
A linha dura pressionava no vai ou racha. Usando como pretexto um discurso do deputado Moreira Alves, que defendia a desobediência civil contra militares, Costa e Silva baixou na sexta-feira 13 de dezembro de 1968 o AI-5. Agora, o presidente poderia fechar o Congresso, intervir nos Estados e municípios, cassar mandatos e suspender a garantia do habeas corpus – tudo sem apreciação judicial. A ditadura se escancarava.
Capitães do mato
Os grupos armados eram uma novidade para a qual os órgãos de segurança estaduais não estavam preparados. Agora, com os poderes excepcionais garantidos pelo AI-5, a ditadura pôde criar uma nova estrutura repressiva, especializada no combate a organizações de esquerda. O protótipo surgiria em São Paulo, em junho de 1969: a Operação Bandeirante.
A Oban, sediada a cinco minutos do Quartel General do 2º Exército, integrava Forças Armadas, PF, SNI, SSP, Dops, Guarda Civil Metropolitana e Força Pública de SP num único organismo autônomo e extraoficial. Era uma anomalia que atravessava a hierarquia militar. Sem dotação orçamentária oficial, dependeu de doações de empresários e políticos paulistas para virar realidade.
PUNIÇÕES POLÍTICAS
– 154 militares transferidos para a reserva
– 752 militares reformados
– 509 suspensões de direitos políticos
– 1.784 demissões
– 1.167 aposentadorias
– 566 mandatos cassados
– 443 outras punições
Um de seus funcionários mais notórios foi o delegado da Polícia Civil Sérgio Paranhos Fleury, líder do Esquadrão da Morte, grupo que ganhou celebridade por executar criminosos comuns. Somado a ele estavam policiais do Departamento Estadual de Investigações Criminais, conhecido pelo uso de tortura em interrogatórios. Agora, seus variados métodos foram incorporados ao combate à subversão. As denúncias de tortura subiram de 308, somadas de 1964 a 1968, para 1.027 em 1969.
Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) assumiu a presidência em 30 de outubro. Satisfeito com os resultados da Oban, decidiu institucionalizá-la e replicá-la nas outras regiões militares do País. Assim, criou os Centros de Operações de Defesa Interna (Codi), responsáveis pelo planejamento de operações de repressão política, e os Destacamentos de Operações e Informações (DOI), encarregados de colocar essas operações em prática.
“Foi a mesma coisa que matar uma mosca com um pilão”, disse o general Adyr Fiúza de Castro, fundador do CIE e chefe do Codi do Rio, a pesquisadores do CPDOC da FGV. “O método mata a mosca, pulveriza a mosca, esmigalha a mosca, quando, às vezes, apenas com um abano é possível matar aquela mosca ou espantá-la.”
No início, o DOI-Codi se dedicava a desmontar as organizações armadas recorrendo à tortura. São Paulo, porém, mostrou novamente seu vanguardismo em janeiro de 1971, quando o general Humberto de Sousa Melo, comandante do 2º Exército, adotou o extermínio e o desaparecimento de corpos como método padrão da repressão em São Paulo. Assim se institucionalizou o “desaparecimento” político – tarefa realizada com o auxílio de centros clandestinos de tortura e assassinato, cuja criação só foi possível pela grande autonomia dada ao DOI-Codi.
No início de 1974, a luta armada urbana estava desarticulada, com militantes presos, banidos, exilados, mortos ou desaparecidos. No campo, restava a Guerrilha do Araguaia, que seria dizimada ao final do mesmo ano.
Lenta e insegura
Sem mais desculpas para o chumbo, o presidente Ernesto Geisel (1974-1979) anunciou em agosto uma política de “distensão lenta, gradual e segura”. Mas restava um grande problema – o bloco anárquico nas comunidades de segurança e informações, ou, como Elio Gaspari prefere dizer, a “tigrada”. A autonomia dada a esses insubordinados da direita militar transformou-os num poder paralelo. Agora, sem rebeldes para reprimir, a tigrada perdia a razão de ser. Só uma coisa poderia livrá-la da extinção: um novo inimigo.
Para o Centro de Informações do Exército (CIE), o novo inimigo do regime era a paz. Sim. O clima de tranquilidade que seguiu à derrota da esquerda armada seria apenas uma ilusão criada pelas esquerdas. Sua verdadeira intenção seria desarmar o espírito dos órgãos de segurança para derrotá-lo. Assim, a repressão seria necessária com ou sem a ação do “inimigo interno”.
Já o DOI-Codi de São Paulo elegeu como novo inimigo o velho e decadente PCB – exatamente aquele que tinha renunciado às armas ainda em 1958. O DOI-Codi iniciou uma série de prisões, torturas e assassinatos que desembocaram na morte do diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, em outubro de 1975. O jornalista foi torturado até morrer. Depois, seu corpo foi preso pelo pescoço com uma cinta a uma janela de 1,63 metro, para simular suicídio. Passados três meses, o metalúrgico Manuel Fiel Filho foi morto em condições semelhantes a Herzog.
Pegou mal. A essa altura, um amplo movimento encabeçado pela Igreja Católica escancarava para o mundo que a ditadura torturava e matava. Estava claro para Geisel que seu maior inimigo não era mais a esquerda – que se convertera à campanha pela redemocratização -, mas a tigrada anárquica nas Forças Armadas. Um dos tigres mais ameaçadores era o ministro do Exército, general Sylvio Frota, que tentava articular a própria candidatura à sucessão presidencial com o apoio da linha dura. Geisel demitiu-o em 1977.
Coito rompido
Nas eleições de 1974, candidatos puderam, pela primeira vez na ditadura, participar de debates em rádio e televisão. O resultado assustou Geisel. O MDB dobrou sua bancada na Câmara, com 161 dos 364 assentos; no Senado, conquistou 16 das 22 vagas em disputa. O resultado indicava uma abertura mais rápida do que o previsto na “distensão lenta, gradual e segura” de Geisel. Então, ele fez o que a ditadura fazia melhor – mudar as regras no meio do jogo.
Nas eleições seguintes, de 1976, candidatos foram obrigados a limitar sua propaganda à exibição de uma fotografia e à narração de seu currículo. Era o tédio contra a democracia. No ano seguinte, Geisel fechou o Congresso e impôs o “Pacote de Abril”. Com ele, um terço dos senadores seria eleito indiretamente; Estados governistas ganharam representação proporcionalmente maior na Câmara, e o mandato presidencial do presidente seguinte passou para seis anos. Com isso, Geisel conseguiu que o Congresso elegesse seu candidato – João Baptista Figueiredo (1979-1985). Mas a abertura continuou.
Castelo realmente pensava que poderia encerrar o período ‘revolucionário’. Isso foi obstado porque os mais radicais pressionaram a eleger Costa e Silva.
General Ernesto Geisel
Dias depois da eleição, o Congresso derrubou todos os Atos Institucionais – inclusive o AI-5. Em agosto de 1979, Figueiredo assinou a Lei da Anistia, válida tanto para militantes presos e torturados durante o regime quanto para os agentes da repressão. E os partidos voltaram à legalidade.
Militares radicais continuaram a agir, mas de forma cada vez mais clandestina. Explodiram bancas que vendiam publicações de esquerda. Em agosto de 1980, enviaram uma carta-bomba ao presidente da OAB; a secretária abriu e morreu. Um dos autores da carta morreu no ano seguinte, com uma bomba em seu colo, num Puma estacionado no Centro de Convenções Riocentro. A poucos metros, 20 mil pessoas assistiam a um show em comemoração ao Dia do Trabalhador, com músicos de esquerda. Para não comprar briga com os militares que apoiavam os atentados, Figueiredo fez vista grossa à obstrução das investigações do Riocentro.
Em seus estertores, a ditadura tinha um governo desmoralizado, uma economia em franca recessão, uma Câmara com 51% dos deputados na oposição e um acumulado de 6.016 denúncias de tortura e centenas de mortos e desaparecidos. A ditadura brasileira foi longa, dura e sem ternura.
CASSAÇÕES NA CÂMARA
MDB – 76
PTB – 37
Arena – 31
PSD – 9
PSP – 7
UDN – 3
PDC – 3
Total – 166
Este post é parte do dossiê “21 mitos sobre a Ditadura Militar”, que pode lido na íntegra aqui.