Marcas do passado
Escorada em tradições ainda mais antigas que as da máfia italiana, a Yakuza sobrevive à repressão policial e expande seus negócios para muito além do continente asiático
Texto Mariana Sgarioni
Nas clínicas de cirurgia plástica do Japão, um fenômeno está em curso. Cresce a cada dia o número de mafiosos procurando um cirurgião que possa devolver-lhes um ou mais dedos das mãos. Isso mesmo, dedos! Quando um membro de uma das dezenas de gangues criminosas daquele país comete um erro, manda a tradição que ele se automutile, numa espécie de penitência tão sádica quanto repugnante. O problema é que, no Japão, ter 1 ou 2 dedos a menos nas mãos pode pegar mal, muito mal. O mesmo vale para quem tem o corpo todo tatuado, outra tradição da máfia japonesa. Para quem apresenta uma dessas marcas, fica difícil arrumar emprego, casar, ser convidado para festas, até freqüentar academias de ginástica e piscinas públicas. Em muitos desses lugares, tatuados e mutilados são gentilmente convidados a se retirar. Afinal, essas são características incontestes da Yakuza, a temida máfia japonesa.
Tatuagens e dedos decepados são apenas dois dos tradicionalíssimos rituais da Yakuza. Existem outros tantos não tão famosos, mas igualmente carregados de simbolismo. O de iniciação é um deles – e, felizmente para o candidato a mafioso, não envolve qualquer tipo de sofrimento físico. O novato (chamado kobun) apenas bebe saquê em companhia do líder do clã (o oyabun) e de um terceiro integrante da máfia. Em seguida, eles trocam os copos e, assim, fica selada para sempre uma relação de hierarquia e forte submissão ao líder. Como recompensa pela lealdade absoluta e obediência inquestionável, o chefe estará sempre a postos para dar conselhos e orientações, além de proteção e prestígio. As punições por desobedecer o oyabun ou falhar em uma missão variam bastante. Vão da simples humilhação, como a expulsão do clã, ao castigo físico, como o yubitsume – a automutilação de um dedo.
Submissão e capacidade de agüentar a dor em nome da organização criminosa à qual pertence são os significados simbólicos do yubitsume. O mafioso que se automutila recebe de seu superior uma faca e uma tira de gaze. Na raça, sem qualquer tipo de anestesia, ele deve cortar o dedo mínimo em sua junta superior, colocá-lo em uma caixa e oferecê-lo ao chefe. Segundo o sociólogo Peter Hill, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, há uma tendência entre os mafiosos de não praticar mais o yubitsume, justamente para evitar a exclusão social quando eles abandonam o crime organizado. “Quando seus filhos se casam, por exemplo, eles querem ser vistos como pessoas respeitáveis”, afirma o especialista em Yakuza, que há anos se dedica exclusivamente ao estudo das principais gangues criminosas do Japão. “Mas para ser respeitado, é preciso, antes de qualquer coisa, ter os 10 dedos das mãos.”
Se um bom cirurgião plástico até pode dar um jeito na falta de um dedo, ainda não inventaram cirurgia capaz de apagar uma tatuagem que cobre praticamente o corpo inteiro. Essa tradição da máfia japonesa, chamada irezumi, talvez seja a mais arraigada tanto entre criminosos do passado quanto entre os mafiosos das gerações mais recentes. Em geral, os tatuadores também são integrantes da Yakuza. O trabalho costuma ser executado segundo técnicas antigas, com agulhas de bambu. Os desenhos podem ser os mais variados. E o mais curioso: normalmente eles são escolhidos pelo tatuador, não pelo tatuado. Dragões, flores, espadas, montanhas, oceanos revoltos e samurais são os temas mais freqüentes, além da simbologia característica de cada clã. Representam, assim como na automutilação, a capacidade de suportar a dor em nome da organização, e um compromisso vitalício com a máfia.
TRADIÇÕES SECULARES
A origem dos rituais da Yakuza está associada a conceitos muito peculiares de honra, lealdade e obediência – ideais presentes na sociedade japonesa há pelo menos 5 mil anos. Mas a organização criminosa não é tão antiga assim. Ela provavelmente nasceu no século 17, a partir dos chamados kabuki-mono – gângsters itinerantes que assustavam os povoados do Japão medieval, intimidando e executando moradores com suas espadas. Os mafiosos, obviamente, contestam essa versão dos fatos. Assim como os integrantes das máfias italianas, que se autodenominam “homens de honra” e protetores dos mais fracos, os integrantes da Yakuza preferem alimentar a idéia romântica de que descendem de honrados guerreiros samurais, que num dado momento durante a Idade Média perderam seus mestres e passaram a defender povoados indefesos da ação de bandidos.
A verdade talvez esteja no meio dessas duas histórias. Há registros históricos de samurais do século 17 que, não submetidos a uma hierarquia militar, acabaram se voltando para o crime ou viraram proprietários de negócios ilícitos, como casas de jogos e prostituição. De uma forma ou de outra, eram todos marginalizados pela sociedade japonesa. O próprio nome “Yakuza” reflete essa marginalização. Proveniente de um jogo de cartas japonês chamado Oicho-Kabu, o termo vem da junção de três palavras: “ya”, “ku” e “za”, que significam, respectivamente, os números 8, 9 e 3 nesse jogo. A soma é o número 20, que não vale ponto algum. Ser um yakuza, portanto, seria o equivalente a não ter qualquer valor.
Passados mais de 3 séculos de seu nascimento, as quadrilhas mafiosas do Japão cresceram, multiplicaram-se e ampliaram seus negócios, num fenômeno muito parecido com o experimentado por outras grandes máfias internacionais, como a italiana, a americana e a russa. No final do século 19, os membros da Yakuza uniram-se a políticos para exterminar adversários, cooptar empresários e ampliar seus negócios ilegais. A máfia tirou proveito do processo de industrialização do país no início do século 20 e passou a operar nos mercados formais de transporte e construção civil. Despois da 2a Guerra Mundial, a escassez de comida deu origem a um lucrativo mercado negro, devidamente explorado pelos mafiosos. Entre os anos de 1958 e 1963, o número de integrantes da Yakuza chegou a espantosos 180 mil, divididos em mais de 5 mil clãs espalhados por todo o Japão. Desde o início da década de 1990, entretanto, leis severas contra o crime organizado vêm encurtando o raio de ação das quadrilhas. As autoridades japonesas, além de reforçar a repressão policial, oferecem a ex-criminosos uma chance de recomeçar a vida fora do submundo. Algumas empresas da economia legal até participam de programas de reabilitação do governo, garantindo emprego a mafiosos que decidem abandonar o crime organizado. Mas a maior parte da sociedade japonesa ainda os rejeita.
Hoje, a Yakuza conta com cerca de 110 mil integrantes ativos no Japão, divididos em aproximadamente 2 500 famílias. A organização está solidamente estabelecida em vários países asiáticos, como China, Taiwan, Coréia do Sul, Filipinas e Vietnã (veja mapa das págs. 14 e 15). Mas o crime organizado japonês estendeu seus tentáculos também sobre a Austrália, diversos países da Europa e os EUA. Suas atividades ilícitas mais lucrativas, dentro e fora do Japão, incluem jogos de azar, extorsão, tráfico de drogas e prostituição. Muitos clãs estão envolvidos até o pescoço com tráfico de mulheres, especialmente vindas do leste europeu. Mas seus investimentos na economia legal também são cada vez maiores. Em 1989, por exemplo, o chefão da Yakuza Susumu Ishii passou a controlar a empresa de trens metropolitanos de Tóquio – um negócio de mais de US$ 255 milhões. O último cálculo confiável feito pelas autoridades japonesas é assustador: em 2004, as várias gangues mafiosas do Japão teriam movimentado – entre atividades legais e ilegais – o montante de US$ 13 bilhões.
As máfias do sol nascente
A Yakuza é formada por dezenas de gangues, com células espalhadas por todo o país. Conheça 4 das mais poderosas
YAMAGUCHI-GUMI
É o maior braço da Yakuza. Nascida em Osaka, numa região famosa pela indústria do entretenimento, tem mais de 39 mil membros divididos em 750 clãs – cerca de 35% de toda a máfia no Japão. Investe na expansão de seus domínios, principalmente em Tóquio.
TOA GO KIGYO
Chergou a ser a gangue mais poderosa de Tóquio depois da 2a Guerra Mundial, mas foi desbaratada pela polícia em 1965. A partir daí, seus líderes montaram a empresa East Asia Enterprises, para encobrir a nova facção criminosa. Muitos de seus integrantes são coreanos.
SUMIYOSHI-RENGO
Esta gangue é a principal rival da Yamaguchi-gumi, com cerca de 10 mil membros distribuídos em mais de 170 clãs por todo o país. Muitos acreditam que a Sumiyoshi seja uma espécie de confederação de pequenas quadrilhas, pois não existe a figura de um poderoso chefão.
INAGAWA-KAI
É o terceiro maior grupo criminoso do Japão, com mais de 5 mil membros. A principal fonte de receita do grupo é o jogo ilegal, um negócio no qual opera desde 1945. Mas também fatura alto com chantagens, extorsões e tráfico de drogas. Sua base é a região de Tóquio e Yokohama.
15% DO TOTAL
De mafiosos em atividade no Japão são de origem coreana.
110 mil CRIMINOS
Estão ligados às várias gangues mafiosas espalhadas pelo Japão.
US$ 13 BILHÕES
Dinheiro movimentado pelas máfias japonesas apenas em 2004.
Entrevista
Na própria pele
Filha de chefe da Yakuza revela os bastidores da organização
Mariana Sgarioni
Curiosa como toda criança, uma menina de apenas 6 anos ouve barulhos no escritório de sua casa e resolve empurrar a porta, que está entreaberta, para dar uma espiadinha lá dentro. A cena a que ela assiste é digna de filmes de terror: um homem encharcado de sangue entrega para o pai da menina uma caixa com um pedaço do próprio dedo, que ele acabara de decepar. “Papai, por favor, não machuque esse homem!”, grita a menina, que corre chorando para o colo da mãe.
A automutilação testemunhada pela garota é um ritual típico da Yakuza, próprio de mafiosos que cometem algum erro: eles cortam um pedaço do dedo e entregam-no ao chefe, como um “pedido de desculpas”. A menina em questão é Shoko Tendo, hoje com 40 anos, filha de um chefe da Yamaguchi-gumi, o braço mais poderoso da máfia japonesa. Shoko resolveu contar essas e outras histórias horripilantes em seu primeiro livro de memórias, Yakuza Moon (ainda sem tradução para o português), lançado no final de 2007 na Europa e nos EUA.
Nascida em 1968, Shoko narra em seu livro como foi crescer dentro da organização criminosa mais temida do Japão. Sua trajetória é de arrepiar: ainda criança, foi abusada sexualmente por um dos capangas de seu pai. “A partir daí, nunca mais confiei nos adultos.” Aos 12 anos, tornou-se uma delinqüente, sempre às voltas com o consumo de drogas. Nessa época, acabou indo parar em um reformatório. Quando fez 16 anos, sua vida tornou-se ainda mais tumultuada. Os negócios do pai iam mal e a família perdeu tudo. Shoko mergulhou de vez nas drogas e passou a fazer sexo em troca de dinheiro, para financiar o vício. Era constantemente espancada por seus amantes, a maioria gângsteres. Certa vez, seu rosto ficou tão machucado, que ela precisou de uma cirurgia plástica.
Aos 20 anos, marginalizada pela sociedade japonesa, Shoko Tendo tomou uma decisão radical: tatuaria seu corpo inteiro, no melhor estilo da máfia japonesa. De acordo com as tradições da Yakuza, os desenhos gravados na própria pele simbolizam o clã ao qual o mafioso pertence e indicam que ele é capaz de suportar a dor em nome de sua organização. As tatuagens de Shoko levaram mais de 100 horas para serem concluídas e cobriram o tórax, os braços, o peito e os seios. Ela diz que sua intenção nunca foi assumir-se como integrante de um grupo criminoso. Queria apenas chocar e fazer as pazes com sua origem. Hoje, a moça diverte-se ao colocar o braço para fora do carro em dia de congestionamento: “Todos os motoristas abrem passagem, saem correndo de medo.”
Durante os anos em que você esteve envolvida com a Yakuza, chegou a testemunhar algum assassinato?
Shoko Tendo: Nunca vi um assassinato. Quando era adolescente e fazia parte de uma gangue que corria de carros e motos, vi um amigo morrer violentamente. E mais de uma vez presenciei o espancamento de pessoas com barras de ferro, até quase a morte. Certa vez, briguei com um namorado e acabei cortando-o com uma faca. Também já tive armas de fogo nas minhas mãos, mas isso tudo é coisa do passado. No Japão, não se pode andar armado, muito menos usar uma arma de fogo. É crime.
Como você enxerga a morte?
ST: Creio que a morte seja uma forma de você se livrar da dor e do sofrimento. Se é algo bom ou ruim, isso já é outra história.
De que forma a maternidade mudou sua vida? Ela foi determinante na mudança?
ST: A coisa que mais me faz feliz, hoje em dia,é ver minha filha crescer. Por favor, não me pergunte sobre o pai dela. Prefiro não falar sobre ele. Só quero dizer que já não vivemos juntos. Nosso casamento acabou e ele ainda não se casou com outra mulher.
Você escreve em seu livro de memórias que aprendeu a não confiar em ninguém. DE ONDE VEM ESSA DESCONFIANÇA?
ST: O hábito de confiar facilmente nos outros acaba nos trazendo muitos problemas. Sempre desconfio de alguém que, de repente, começa a ser muito bacana, querendo se aproximar muito rápido. Isso geralmente não é boa coisa. Talvez eu pense dessa forma porque a sociedade japonesa é desconfiada e invejosa. Quando o presidente de uma empresa chamada Live Door foi preso, por importação e exportação ilegais, muita gente comemorou apenas porque tinha inveja de vê-lo passear com seus carrões. A mesma coisa aconteceu quando a empresa do meu ex-marido foi à falência. Isso aconteceu porque ele confiou nas pessoas erradas.
Em seu livro, Yakuza Moon, você afirma que nunca houve espaço para mulheres na organização criminosa. Por que a máfia japonesa funciona assim?
ST: A Yakuza é uma organização criminosa em que as mulheres nunca conseguiram transitar com muita facilidade. Você acha que uma mulher estaria preparada para morrer protegendo os seus chefes, por exemplo? Os mafiosos japoneses acreditam que uma mulher não conseguiria fazer isso.
SHOKO TENDO
• Filha de um chefão da Yakuza, 40 anos, mãe solteira de uma menina de apenas dois anos. Foi viciada em drogas pesadas, como cocaína e heroína, e fez sexo por dinheiro para sustentar o vício. Seus amantes eram gângsteres.
• Aos 6 anos, viu um mafioso cortar o próprio dedo e entregar ao pai – ritual característico da Yakuza, um “pedido de desculpas” por um erro cometido. Aos 20, decidiu tatuar o corpo inteiro – outra tradição da máfia japonesa.
• Embora o pai tenha sido mafioso, Shoko afirma ter orgulho de sua origem. “Ele foi o homem que me ensinou a ter caráter.” Ela abandonou as drogas, rompeu com a Yakuza e hoje só escreve – para “exorcizar os demônios”.