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Manter o horário de verão não faz sentido. Mas faz.

O horário de verão não diminui o consumo de energia, e causa acidentes de trabalho. Saiba como ele surgiu e por que parou de fazer sentido.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 8 mar 2024, 19h23 - Publicado em 23 out 2019, 18h45

A noite era diferente na Idade Média. Os camponeses adormeciam pouco depois do pôr do sol. Entre meia-noite e duas da madrugada, então, despertavam por duas horas: comiam, transavam, meditavam sobre seus sonhos e faziam orações (havia rezas compostas especificamente para esse interlúdio da madrugada). Então deitavam para um segundo round, de umas quatro horas – e se levantavam com o Sol, no dia seguinte.

O historiador Roger Ekirch, da Universidade Estadual da Virgínia, nos EUA, pesquisou a noite do Ocidente pré-industrial por 16 anos, e compilou mais de 500 menções a esse sono em dois estágios, inclusive em Dom Quixote, de Cervantes. Era o jeito normal de dormir.

O sono segmentado foi desaparecendo lentamente na Europa do século 17, quando cidades como Paris e Amsterdã passaram a ter iluminação pública. Ficar acordado até tarde se tornou um hábito charmoso para a elite urbana. Quem chegava em casa na hora em que começaria o segundo sono acabava dormindo um sono só. Para os pobres, porém, a noite em dois capítulos só acabaria de vez com a Revolução Industrial, no século seguinte.

Em cidades como Manchester e Liverpool, policiais ganhavam uma gorjeta para bater com bastões nas portas de cortiços e acordar os trabalhadores pela manhã. Nascia o despertador. Os ciclos da civilização foram desassociados dos ciclos astronômicos.

Foi nesse contexto, em 1784, que Benjamin Franklin se deu conta: há muita luz natural no começo da manhã, mas boa parte das pessoas está dormindo e não pode aproveitá-la. No fim do dia, porém, ficamos acordados por várias horas após o pôr do sol, queimando toneladas de velas para manter os cômodos iluminados – concluiu o herói da independência americana.

Não seria eficaz do ponto de vista econômico, então, fazer o dia do relógio correr para trás em relação ao dia astronômico – transferindo, desta forma, a luz da manhã para a noite? Ele esboçou contas rápidas e calculou que, em Paris, 96 milhões de livres tournois (a moeda francesa da época) seriam economizados em cera de vela.

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Em 1784, Benjamin Franklin calculou que adiantar os relógios no verão poderia gerar uma economia milionária em cera de vela.

A ideia ficou no ar. Em 1895, o biólogo neozelandês George Hudson formulou o horário de verão da maneira que conhecemos hoje – mas com um ajuste de duas horas. Ele queria mais tempo no fim da tarde para caçar insetos. Mas a ideia só sairia do papel na Alemanha, em 1916. O objetivo era desviar toda a energia possível do uso civil para o militar, por conta da 1ª Guerra Mundial, e outros países copiaram na hora. A adoção também foi ampla após a crise do petróleo, na década de 1970 – boa parte da energia elétrica, afinal, ainda vinha de geradores a diesel.

O fim do horário de verão

Alguns países acabaram abandonando a medida nas últimas décadas (como a China e a Rússia). Mesmo assim, 1,5 bilhão de pessoas, em 60% das nações, ainda passam por alguma forma de horário de verão. Os únicos que nunca instituíram a mudança são os próximos à linha do Equador – onde os dias e noites têm a mesma duração ao longo do ano todo. Até por isso a Região Norte do Brasil deixou de ter horário de verão em 1988, e a Nordeste (com exceção da Bahia no início), em 1991.

Em 2019, essa se tornou a realidade do País todo. Você sabe: pela primeira vez desde 1985 não há horário de verão, por decreto presidencial. Jair Bolsonaro levou em consideração uma pesquisa do Ministério de Minas e Energia dizendo que 53% dos entrevistados se declararam insatisfeitos com a ideia de adiantar o relógio em uma hora.

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Há mais argumentos contrários: dois pesquisadores da Universidade do Estado de Michigan, nos EUA, analisaram os 576 mil acidentes com operários reportados à Mine Safety and Health Administration (órgão que regula as condições de trabalho na mineração) entre 1983 e 2006. E descobriram o seguinte: há 3,6 vezes mais chances que a média de um trabalhador se ferir na segunda-feira após a mudança de horário. No escritório, ninguém se machuca – mas a falta de concentração se traduz em mais Instagram e menos trabalho. Perder uma hora de sono é dureza.

Um estudo de 2014 da Universidade de Colorado encontrou um aumento de 6,3% nos acidentes de carro nos seis primeiros dias após a mudança de horário, ao longo de dez anos. Outro estima que as vidas de 171 pedestres e 195 ocupantes de veículos seriam poupadas se não houvesse horário de verão. Derrames são 8% mais frequentes dois dias após o reajuste de relógios – entre idosos, 20%, entre pessoas com câncer, 25% (é sempre bom lembrar, porém, que correlação não implica causação).

Quem tem ar-condicionado em casa costuma deixá-lo ligado da meia-noite às sete da manhã nas noites de verão – justamente o horário em que, na época de Benjamin Franklin, ninguém acendia velas.

O horário de verão economiza energia?

Mas e quanto ao principal – a economia de energia? Nada feito: de acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), desde a popularização do ar-condicionado, o pico de consumo de energia elétrica ocorre entre 14h e 15h, quando o dia está mais quente e há mais gente no escritório – e não entre 17h e 20h, quando a maioria chega em casa.

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Além disso, quem tem ar-condicionado em casa costuma deixá-lo ligado da meia-noite às sete da manhã nas noites de verão – justamente o horário em que, na época de Benjamin Franklin, ninguém acendia velas.

“Antes, o chuveiro era o vilão do setor elétrico. Hoje, é o ar-condicionado”, afirmou ao Estado de S. Paulo Nelson Leite, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Aneel). De fato, eventualmente o horário de verão piora a conta de luz: um estudo feito no Estado de Indiana, nos EUA, indicou um aumento de US$ 9 milhões no gasto dos consumidores – dá US$ 1,3 por habitante, mas ainda assim não se trata de uma economia.

Ou seja: o horário de verão, do ponto de vista técnico, não faz mais sentido. Adotá-lo se tornou uma questão cultural. Quem acorda muito cedo não gosta, quem chega em casa tarde gosta – e faz tempo que sabemos disso. E, no Brasil, não temos indícios de que o horário de verão vai voltar tão cedo.

No artigo científico em que justifica a implementação da medida, de 1895, George Hudson (o da Nova Zelândia) escreve o seguinte: “Um longo período de lazer à luz do dia passa a ser disponibilizado para críquete, jardinagem, ciclismo ou quaisquer outros passatempos desejados”. Se você é brasileiro, leia cerveja e futebol. Talvez seja simplesmente mais gostoso acabar o expediente sem a sensação de que, com ele, acabou o dia.

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