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Como Portugal moldou a história do continente africano

Os portugueses foram os primeiros europeus a chegarem à África – e os últimos a saírem. Entenda o que aconteceu nesse período de mais de 500 anos.

Por Igor Natusch
Atualizado em 11 nov 2019, 17h09 - Publicado em 17 Maio 2019, 17h11

Dizer que a presença de Portugal na África foi duradoura é um eufemismo. No longo processo de exploração das riquezas do continente pelos europeus, os lusitanos não apenas abriram a porta, na primeira metade do século 15, durante as Grandes Navegações, como a mantiveram escancarada pelo máximo de tempo possível – e só foram fechá–la nos anos 1970, muito depois dos demais países do Velho Continente. Uma trajetória que teve efeitos profundos sobre a África, dilapidando recursos naturais e espalhando filhos e filhas do continente pelo mundo, dentro de navios superlotados de escravos.

Desde o Império Romano, os europeus tinham contato direto com o norte africano, algo que ia muito além do domínio sobre o Egito e dos flertes com Cleópatra. A expansão islâmica a partir do século 7, porém, praticamente cortou o contato europeu com o norte da África e com as rotas trans–saarianas, que conduzem a região ao sul do deserto do Saara. Na Península Ibérica, a reação dos cristãos europeus à presença dos mouros, oriundos de onde hoje ficam Marrocos e Argélia, só foi ganhar força a partir do século 11 – conduzida primeiro pelo reino de Castela, hoje território espanhol, depois pela coroa portuguesa.

Ou seja, se você não tivesse um acordo com os muçulmanos, precisava partir para a briga para entrar na África – ou achar um jeito de dar um drible neles. E Portugal fez, basicamente, as duas coisas. Com a conquista de Ceuta, ocorrida em 1415 sob comando do rei João 1o, o reino português estabeleceu sua primeira posse em solo africano e passou a ter relativo controle sobre o Estreito de Gibraltar, o canal que separa Espanha e o norte da África (hoje, Marrocos), na entada do Mar Mediterrâneo. Além de fortalecer sua posição no litoral marroquino, isso tornou real o sonho de explorar o sul do Atlântico – uma vantagem importante para Portugal no cenário comercial da época.

A ideia de contornar a África para chegar à Ásia não era exatamente inédita. O grego Heródoto, considerado o pai da história, relata que teriam sido navegadores fenícios os primeiros a fazer a viagem, a partir de 600 a.C. A estratégia portuguesa, porém, tinha uma outra lógica, estritamente de negócios. Embora mais penosa, a trilha pela costa africana era o trajeto possível à Coroa, já que os mercadores de Gênova e Veneza, grandes adversários comerciais, se entendiam bem demais com os islâmicos, o que fechava as rotas asiáticas aos portugueses.

Além da briga pelas Índias, a criação de entrepostos no Atlântico (as chamadas “feitorias”) era a chance de passar a rasteira nos genoveses e disputar o acesso a produtos de grande valor, em especial o cobiçado ouro africano. “Era sabido que o ouro que surgia na Península Ibérica islâmica vinha do interior da África. Os portugueses tinham certeza de que havia ouro em algum lugar e queriam conquistar essas cidades”, explica Valdemir Zamparoni, professor de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O avanço português foi deixando rastros – muitos deles, visíveis até hoje. A exploração dos rios entre as bacias do Senegal e Níger, por exemplo, é a origem do nome Lagos, que batiza a capital da Nigéria e é referência direta à cidade homônima em solo português.

Foram os lusitanos quem involuntariamente batizaram Camarões, em referência à grande quantidade de crustáceos na foz do Rio Wouri, onde chegaram em 1472. E os desembarques nos futuros territórios de Guiné–Bissau (1446) e Cabo Verde (1460) são eventos decisivos para a história dessas regiões e de todo o continente.

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Em meio à busca por metais e especiarias, os escravos também faziam parte do comércio português. Ocorrida em 1441, a expedição de Nuno Tristão ao Cabo Branco, na costa da atual Mauritânia, não foi apenas o primeiro grande avanço rumo ao sul do continente, mas foi também a primeira remessa de escravos africanos para Portugal. No caso, um pequeno grupo de pescadores, atacados e feitos prisioneiros. Porém, embora fosse desde sempre um negócio lucrativo, a captura de escravos não era, ao menos no começo, a essência da empreitada.

A importância desse comércio mudou a partir do estabelecimento dos engenhos de açúcar na Madeira e em outras ilhas da costa atlântica – modelo que, depois, viraria uma vantajosa fonte de renda também nas Américas.

Para abastecer a demanda crescente por trabalhadores forçados, os portugueses estabeleceram acordos com líderes locais. O mais comum era que os vendidos fossem prisioneiros de batalhas conta povos rivais, embora vítimas de sequestros e criminosos da própria comunidade também virassem moeda de troca de vez em quando.

O que não quer dizer, é claro, que os portugueses não tenham tentado obter escravos à força. Tentaram, e bastante. O problema é que enfrentar os povos locais não era nada fácil. Textos históricos como a Crônica do Felicíssimo Rei Dom Manuel, de Damião de Góis, demonstram que, desde o século 16, era comum a presença de batelões portugueses onde hoje é costa da África do Sul, tentando atacar aldeias próximas ao mar para fazer prisioneiros. Resultado: na maioria das vezes, os europeus tomaram uma surra.

Após o sucesso em cruzar o Cabo das Tormentas (hoje Cabo da Boa Esperança), no extremo sul da África, com Bartolomeu Dias, em 1488, o alcance português ganhou contornos mais definitivos, especialmente nos territórios de Angola e Moçambique.

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Com o fim do tráfico de escravos na segunda metade do século 19, a lógica europeia na África mudou. Até então, as expedições dependiam do pagamento de impostos e da tolerância de líderes africanos.

A perda do Brasil, disparada pela declaração de independência de 1822, fez com que Portugal olhasse com mais atenção para as colônias africanas. Já em 1834, o político Sá da Bandeira apresentou um projeto de desenvolvimento para o continente, que previa a abolição do tráfico negreiro e o uso dos habitantes na agricultura das próprias regiões onde residiam. Mas a resistência dos mercadores de escravos demorou a ser vencida e só a partir do final do século 19 a ideia começou a prosperar.

Até aquela época, Angola e Moçambique serviam a funções distintas: a primeira fornecia escravos, enquanto a segunda era pouco mais que uma sequência de entrepostos no contato com a Índia Portuguesa. No começo do século 20, a instabilidade política e econômica em Portugal era enorme, e a ordem passou a ser incentivar a ida de portugueses à África. Mas a ideia não empolgava muito, com cerca de mil a 2 mil portugueses indo morar no continente africano por ano – quase nada comparado às dezenas de milhares que embarcavam de Portugal, na mesma época, em direção ao Brasil.

A partir do golpe que instaurou o Estado Novo em Portugal, regime autoritário que vigorou de 1933 até 1974, as subdesenvolvidas e subpovoadas colônias africanas passam a ser vistas como um complemento ao fornecimento de produtos para Portugal. Nos anos 1950, António Salazar vai na contramão das demais nações colonizadoras: enquanto Inglaterra e França planejavam sua retirada, Lisboa apresentava os territórios africanos como orgulho nacional e bancava terras, gado e sementes para quem quisesse tentar a sorte lá.

Quando estouraram as guerras de independência, havia algo em torno de 200 mil portugueses em Angola e 80 mil em Moçambique. A maioria levava uma vida confortável, enquanto os negros viviam nas periferias, deixando a “cidade do asfalto” quase toda para os brancos. Raros eram os que chegavam a estudar em escolas, que dirá subir na vida. E embora a convivência fosse bem menos tensa do que no Apartheid da África do Sul, os castigos físicos eram comuns até pelo menos o começo da década de 1970. Com a revolução de 1974, os contrários à continuidade da colonização assumiram o poder no país. A partir daí, finalmente, os portugueses começaram a deixar a África.

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Nossa África

Os diferentes povos cujo sangue está no DNA do brasileiro.

Moçambique

Nhanjas

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(Rodrigo Bastos Didier/Superinteressante)

É um subgrupo dos povos de origem Bantu, que se espalham pela África sul-equatorial. Foram maciçamente trazidos ao Brasil a partir dos territórios de Moçambique e Angola. Por aqui, os bantu criaram a capoeira e influenciaram a música, com berimbaus e cuícas. Mas a principal contribuição foi linguística, uma das bases do nosso português. Se chamamos nosso irmão menor de “caçula” em vez de “benjamim”, como em Portugal, é por influência deles.

Angola

Ovimbundos

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(Rodrigo Bastos Didier/Superinteressante)

Um dos subgrupos Bantu, foram trazidos ao Brasil a partir de Angola – eles hoje ainda se concentram somente nesta região e representam 37% da população do país. É um dos grupos étnicos mais homogêneos, vivendo até hoje em aldeias onde criam gado e cultivam plantações. Mantêm sua cultura própria (as mulheres usam roupas multicoloridas), apesar das influências externas. No século 18, constituíram reinos importantes, que intermediavam o comércio de escravos.

Benim

Iorubás

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(Rodrigo Bastos Didier/Superinteressante)

Também chamados de nagôs, são originários da região que hoje engloba o sul da Nigéria, o Togo e o Benim, principalmente. O animismo iorubá – a visão de que animais e plantas e entidades não humanas têm essência espiritual – é um dos pilares do candomblé, baseado no culto a orixás, como Iemanjá, Xangô e Ogum. Para evitar a fúria cristã, os nagôs batizaram suas divindades com nomes de santos católicos, como São Jorge. Mais tarde, essas tradições ajudariam a moldar a umbanda brasileira.

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Brasil no meio do caminho

Por conta da escravidão, o território brasileiro também começou a ser povoado pelos africanos. Vindos de diferentes regiões e com vivências diversas, eles traziam consigo uma ampla gama de culturas. Os portugueses, é verdade, fizeram grande esforço para “branqueá-los”, forçando a conversão ao catolicismo e a adoção de língua e nomes portugueses, além de castigar os que se recusavam a abandonar os costumes nativos. Mas os escravizados não cederam. Além da resistência física, com os quilombos, emboscadas e motins, os negros que forjaram o nosso país foram mantendo viva a memória de suas raízes.

Foi nesse Brasil colonial cada vez mais impregnado pelo imaginário africano que surgiram religiões como a umbanda e o candomblé, seguidas hoje por milhões de brasileiros. Se você curte uma roda de samba, um chorinho ou mesmo uma bossa nova, é porque tradições musicais de origem africana, em especial o lundu, deram tom e ritmo ao que viria depois. Juntando dança e arte marcial, a capoeira brasileira chegou a ser perseguida pelos portugueses e hoje é patrimônio cultural da humanidade. A feijoada, o vatapá e o azeite de dendê não existiriam no Brasil. E várias palavras foram incorporadas ao nosso vocabulário, como moleque, caçula e farofa, por exemplo.

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