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Como eram os jogos de tabuleiro das civilizações antigas

Senet, do Egito. Latrunculi, do Império Romano. Mancala, da África Oriental. Tafl, dos ancestrais dos vikings. Conheça os jogos de tabuleiro mais antigos de que se tem notícia – e aprenda a jogá-los.

Por Luisa Costa
Atualizado em 27 fev 2023, 11h23 - Publicado em 16 fev 2023, 14h31

Texto: Luisa Costa | Edição: Maria Clara Rossini | Ilustração: Mariana Andrello e Leticia Kamioka | Design: Luana Pillmann

Se você vivesse no Egito de 2 mil a.C., um de seus passatempos seria jogar senet. Caso fosse um cidadão da Suméria, a civilização que criou a escrita, há 5 mil anos, talvez tentasse a sorte no Jogo Real de Ur. Seja qual for a época ou lugar, os jogos de tabuleiro quase sempre estavam presentes para combater o tédio. Alguns foram evoluindo com o tempo, e nunca deixaram de ser jogados – caso de Chaturanga, o jogo indiano que deu origem ao xadrez, exportado para o resto do mundo via Pérsia. Outros sumiram do mapa, foram descobertos por arqueólogos, e ganharam reconstruções contemporâneas. Graças a esse trabalho, dá para aproveitar hoje jogos de eras passadas – todos estão à venda nos sites de e-commerce. Bom divertimento.

Imagem com ícones para cada tipo de jogo e suas respectivas legendas.
(Arte/Superinteressante)

Chaturanga

Declarar “xeque-mate” é o objetivo final dos jogadores de xadrez. Significa que o rei adversário está encurralado, e não há movimento que se possa fazer para evitar a captura da peça. É uma expressão que vem, como outros termos do xadrez, da língua persa: shah mat significa, literalmente, “o rei está congelado”.

É que os persas foram importantes para a disseminação desse passatempo na Europa e Ásia. Mas os responsáveis pelo jogo de tabuleiro mais popular já inventado são os indianos – mais especificamente os que viviam na região de Punjab (noroeste da Índia), no século 6.

Lá surgiu um jogo chamado Chaturanga, que tinha duas características principais encontradas em todas as versões posteriores do xadrez: peças diferentes têm poderes de movimentação e captura diferentes; e a vitória é baseada no destino de uma única peça, o rei. O tabuleiro também era quadriculado, com 8 casas de largura por 8 de altura, e os dois exércitos inimigos se distribuíam de maneira simétrica nos dois lados opostos do tabuleiro. (Acredita-se que versões anteriores do jogo eram mais bizarras: comportavam quatro exércitos para quatro jogadores.)

Esquema ilustrado e infografado contendo arte 3D de Chaturanga e informações sobre seu tabuleiro e peças, origem e de quando é datado.

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As peças se moviam de um jeito parecido com a versão consagrada do xadrez, mas não idêntico. Os peões não avançavam duas casas a partir da fileira inicial, por exemplo. E os bispos moviam-se apenas duas casas. Bispos não, aliás: as peças especializadas nas diagonais eram elefantes de guerra. As torres eram bigas (carruagens velozes puxadas por dois cavalos). E, em vez da rainha, o que havia era o “ministro” – uma peça que andava apenas uma casa na diagonal, em qualquer direção.

O surgimento da dama é, inclusive, considerado a mudança mais radical nas regras do xadrez durante sua evolução. Ela apareceu durante os séculos 15 e 16, quando algumas monarcas da Europa alcançaram papéis protagonistas – como Maria I, que se tornou a primeira mulher a governar a Inglaterra. Nessa época, a dama se tornaria a peça mais poderosa do jogo, já que pode se movimentar à vontade em todas as direções do tabuleiro.

Jogo Real de Ur

A Suméria pode ser considerada a primeira grande civilização humana, que floresceu por volta de 4 mil a.C. Sua antiga capital, Ur, hoje é um sítio arqueológico no atual sul do Iraque. A cidade (que tem a honra de aparecer na narrativa bíblica como a terra natal de Abraão, o fundador do judaísmo) também é o berço do jogo de tabuleiro mais completo e antigo já encontrado. Na década de 1920, arqueólogos desenterraram quatro tabuleiros no Cemitério Real de Ur. O nome original do jogo perdeu-se no tempo, e ele acabou batizado, justamente, como Jogo Real de Ur.

Os tabuleiros feitos de madeira, conchas e lápis-lazúli (uma rocha azulada que os sumérios usavam em tudo) datam de 2600 a 2400 a.C. Tinham 20 casas e 14 peças, em duas cores diferentes. Seis tetraedros (dados de quatro lados, em vez de seis) sorteiam quantas casas os peões devem andar. Cada jogador tinha sete peças e três dados.

Esquema ilustrado e infografado contendo arte 3D do Jogo Real de Ur e informações sobre seu tabuleiro e peças, origem e de quando é datado.
(Mariana Andrello/Leticia Kamioka/Arte/Superinteressante)
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Não é fácil descobrir as regras de um jogo milenar. Mas o Jogo Real de Ur é um caso excepcional: seu manual de instruções também foi desenterrado. Uma tabuleta cuneiforme escrita por volta de 177 a.C.

O jogo foi feito para duas pessoas. O objetivo é levar todas as sete peças do início ao fim do tabuleiro antes do adversário. Os participantes tiram um número nos dados e escolhem uma peça para mover. A peça movida pode ocupar o lugar de uma peça adversária (expulsando-a do tabuleiro) ou um espaço vazio. Segundo o manual, as casas centrais do jogo ainda seriam usadas para adivinhações, com cada uma indicando um “futuro” diferente para o jogador.

O manual, entretanto, não resolve todas as questões. Há interpretações distintas sobre a trajetória dos peões ao longo das casas, assim como o significado das flores que aparecem em alguns tabuleiros. Elas poderiam indicar “casas seguras”, onde um jogador não pode comer a peça de outro, ou “casas bônus”, que dariam direito a uma segunda jogada para quem caísse ali – hipótese considerada mais provável.

Mini infografico explicando como jogar o Jogo Real de Ur.
(Arte/Superinteressante)

 

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Tafl

Tafl é uma família de jogos da Escandinávia em que dois exércitos lutam entre si. A versão mais popular é o “hnefatafl” (pronuncia-se “néfutáfil”), também conhecido como “xadrez viking” – embora os vikings de fato sejam do século 8, e os jogos escandinavos dessa linhagem remontem ao século 5. Também não é exatamente um xadrez, já que os exércitos não são do mesmo tamanho. Um dos jogadores exibe o dobro de peças de seu oponente – que, por sua vez, tem o único rei do jogo em mãos. Este último deve protegê-lo do perigo ao redor.

Literalmente ao redor. O rei começa na casa central do tabuleiro, cercado por seus defensores, enquanto o exército adversário divide-se em quatro grupos, que se distribuem nos lados do tabuleiro. O objetivo do jogador com mais peças é capturar o rei; o objetivo do exército real, escoltar seu líder até uma casa periférica – por onde o soberano “escapa”, metaforicamente. O jogo acaba assim que um deles cumpre sua missão.

Em turnos alternados, os jogadores movem suas peças na vertical ou na horizontal. Diferentemente do xadrez, não há distinção entre as peças: todas se movem da mesma maneira. Elas podem percorrer quantas casas forem a cada turno, desde que o caminho esteja vazio. Um jogador captura uma peça adversária “prendendo-a” entre duas de suas peças. O rei, por sua vez, só pode ser capturado se estiver rodeado por quatro peças inimigas, uma de cada lado.

Esquema ilustrado e infografado contendo arte 3D de Tafl e informações sobre seu tabuleiro e peças, origem e de quando é datado.

Arqueólogos já encontraram tabuleiros de 7×7 até 19×19. Eles eram gravados em superfícies de pedra ou de madeira. Tinham padrão quadriculado ou buracos nos quais se encaixavam pinos. O número de peças, claro, variava de acordo com o tamanho do tabuleiro – seguindo a proporção de dois atacantes para cada defensor.

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Os escandinavos jogavam tafl antes mesmo de 400 d.C. Ele saiu de moda conforme o xadrez ganhou força, durante os séculos 11 e 12 – mas foi redescoberto por arqueólogos.

Trilha

O objetivo aqui é movimentar as peças no tabuleiro para formar fileiras de três. Repetidamente. A cada vez que você forma uma fileira, uma peça do adversário sai do tabuleiro. Quanto menos peças você tem, mais difícil formar um conjunto de três. Perde quem não consegue mais fazer uma fileira e atacar o adversário, por falta de peças.

Trilha é mais antigo que a Chaturanga, o ancestral do xadrez. E tal qual o xadrez nunca deixou de ser jogado. O primeiro tabuleiro de que se tem notícia está gravado em um bloco de pedra no templo de Kurna, no Egito. Acredita-se que a inscrição tenha sido feita por operários que construíram o edifício em 1400 a.C. As partidas, nesse caso, provavelmente eram jogadas com pedrinhas, nas horas vagas do pessoal.

Esquema ilustrado e infografado contendo arte 3D de Trilha e informações sobre seu tabuleiro e peças, origem e de quando é datado.
(Mariana Andrello/Leticia Kamioka/Arte/Superinteressante)
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O jogo fez parte da cultura europeia desde o período romano e foi especialmente popular durante a Idade Média. Arqueólogos já encontraram tabuleiros de trilha em sítios arqueológicos da antiga cidade grega de Troia, em um cemitério da Idade do Bronze na Irlanda e num barco funerário de um rei viking.

As regras do jogo são bem conhecidas. Há versões alternativas em que cada adversário começa com 3, 6 ou 12 peças – mas aqui apresentamos como se joga a versão de 9 peças.

Mini infografico explicando como jogar Trilha.
(Arte/Superinteressante)

Latrunculi

Península itálica, século 1 a.C. O escritor e filósofo romano Marcus Terentius Varro descreve um tabuleiro acompanhado de peças de vidro colorido e pedras preciosas – azuis, vermelhas e brancas. Mais tarde, o poeta romano Ovídio tenta explicar a mecânica: um jogador pode mover suas peças para frente ou para trás, de modo a capturar as peças do oponente. O vencedor recebe a alcunha de “imperador”.

A literatura romana tem um punhado de referências ao Ludus latrunculorum, ou “jogo dos mercenários”. Esse jogo de estratégia testa as habilidades militares dos adversários – e é provavelmente uma adaptação de outro jogo, o grego Petteia, que aparece em textos atribuídos a Homero.

Também chamado de Latrunculi, o jogo do Império Romano tinha tabuleiros quadriculados de vários tamanhos: arqueólogos já encontraram grades de 7×7 casas e até de 17×18. Acredita-se que um jogo de tamanho comum, entretanto, tinha grade de 8×8.

Esquema ilustrado e infografado contendo arte 3D do Latrunculi e informações sobre seu tabuleiro e peças, origem e de quando é datado.
(Mariana Andrello/Leticia Kamioka/Arte/Superinteressante)

Apesar das evidências arqueológicas e das referências ao Latrunculi na literatura romana, é difícil fazer uma reconstrução certeira do jogo. Uma dica da possível posição inicial das peças foi encontrada em 1996, no Reino Unido: um tabuleiro de madeira 13×13 apodreceu, mas restaram algumas dobradiças de metal e 13 fichas para cada jogador (brancas de um lado, azuis de outro). Elas estavam colocadas paralelamente na primeira fileira de casas em cada extremidade do tabuleiro.

Pesquisadores juntam pistas como essas para reconstruir as regras e adivinhar a mecânica do jogo romano. Uma reconstrução famosa é a do arqueólogo alemão Ulrich Schädler, feita em 1994. Veja no infográfico abaixo.

Mini infografico explicando como jogar Latrunculi.

Senet

Quem vivia no Egito entre 3 mil e 400 a.C. provavelmente jogou z’n’t – ou Senet, como se convencionou chamar para preencher o espaço das vogais não grafadas. Ele aparece em todo lugar: o faraó Tutancâmon foi enterrado com cinco caixas do jogo; Nefertari, esposa do faraó Ramsés II, aparece jogando senet em uma pintura na sua tumba.

O tabuleiro podia ser uma caixa de madeira decorada, como a encontrada em escavações feitas em Abidos, um dos sítios arqueológicos mais importantes do Egito. Confeccionado em 1550 a.C. com madeira e faiança azul turquesa, o tabuleiro está hoje no Metropolitan Museum of Art, em Nova York – e inspirou a ilustração que você vê abaixo. Mas este não era um jogo exclusivo da elite. Arqueólogos também já encontraram tabuleiros riscados em superfícies de pedra ou moldados em cerâmica.

Esquema ilustrado e infografado contendo arte 3D de Senet e informações sobre seu tabuleiro e peças, origem e de quando é datado.
(Mariana Andrello/Leticia Kamioka/Arte/Superinteressante)

Senet é um jogo de sorte para duas pessoas. O tabuleiro consiste em três fileiras de 10 casas. Cada jogador tem um punhado de peças, e o objetivo é levá-las, uma por vez, ao fim do tabuleiro antes do adversário. Para isso, o jogador tira um número nos dados e move uma de suas peças, seguindo o trajeto que você vê no infográfico abaixo.

As cinco casas finais do tabuleiro são marcadas com hieróglifos – e, em alguns tabuleiros, a décima quinta também. Acredita-se, então, que elas tinham significados especiais. Se um jogador caísse na 27ª casa (chamada “Casa da Água”), sua peça retornava à 15ª (a “Casa do Renascimento”). Já as casas 28, 29 e 30 exigiam que o jogador tirasse, respectivamente, 3, 2 ou 1 no dado para levar sua peça ao fim do tabuleiro.

Também vale dizer que o jogo tinha um significado simbólico para os antigos egípcios. Registros da época do Novo Império – entre 1550 e 1070 a.C. – mostram que eles associavam as casas perigosas do tabuleiro aos obstáculos da jornada para a vida após a morte. Em outras palavras, senet era também uma metáfora do sonho de obter a imortalidade.

Mini infografico explicando como jogar Senet.
(Arte/Superinteressante)

Mancala

A expressão “jogar mancala” é tão genérica quanto o termo “jogar cartas”. Esse nome é dado não para um, mas para uma família de centenas de jogos em que dois jogadores movimentam peças em um tabuleiro. Elas podem ser pedras, sementes ou feijões. São sempre iguais na forma e na função, além de pertencerem, todas, aos dois jogadores. No início do jogo, as peças estão distribuídas em duas fileiras de buracos, que são as casas do tabuleiro. O objetivo é contá-las e pensar em movimentos estratégicos para capturá-las e removê-las da partida. Mas não é preciso retirar necessariamente todas.

Esquema ilustrado e infografado contendo arte 3D de Mancala e informações sobre seu tabuleiro e peças, origem e de quando é datado.
(Mariana Andrello/Leticia Kamioka/Arte/Superinteressante)

Ao menos não no caso do Oware, uma das versões mais populares de mancala. Esse foi o jogo nacional do antigo Império Axante, que ocupou a atual região da Gana entre os séculos 18 e 19. Ali, cada fileira de casas pertence a um jogador, que retira quatro pedras de qualquer casa da sua fileira, no seu turno, e as semeia no sentido anti-horário, uma de cada vez, nas casas seguintes. Quando uma pedra é colocada em uma casa que já contém três delas, o dono desta casa fica com as quatro peças e as remove do tabuleiro. O jogo termina quando restam apenas quatro pedras em jogo, e ganha quem estiver com o maior número delas em mãos nesse momento.

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