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Arqueólogos desvendam os filisteus, o legado do gigante Golias

História do povo filisteu, de origem grega, que durante três mil anos foi conhecido apenas como um dos mais bárbaros vilões da Bíblia.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h10 - Publicado em 31 mar 1993, 22h00

Cadu Ladeira

A nova face de um povo sofisticado, de origem grega, que durante 3 000 anos foi conhecido apenas como um dos mais bárbaros vilões da Bíblia.

A provocação vinha de muitos dias. As tropas alinhadas frente a frente nas colinas de Judá não tinham se encorajado ao combate, mas o fanfarrão Golias não poupava os israelitas. Desde a derrota de Ebenezer, por volta de 1050 a.C., quando a Arca da Aliança foi capturada pelos filisteus, os judeus vinham amargando seguidas humilhações para seus eternos rivais, e as bravatas do gigante Golias pareciam confirmar esse destino. Com quase 2 metros de altura, diariamente ele desafiava os guerreiros de Israel, sem jamais encontrar resposta. Um dia, porém, alguém resolveu aceitar o convite. Não um soldado, mas um jovem chamado Davi. Munido apenas com uma funda, o rapaz enfrentou o desafiante e conseguiu o que parecia impossível: a pedra lançada por sua arma atingiu a cabeça do gigante Golias, derrubando o mais bravo dos soldados filisteus e, com ele, o moral do seu exército.

Enquanto para os hebreus surgia ali um novo herói, o futuro rei que unificaria Israel e Judá, para os filisteus aquela pedrada certeira foi o início do fim. Com a derrota de Golias, começava o declínio da hegemonia em Canaã desse misterioso povo, que atravessou quase 3 000 anos de história condenado ao papel que a Bíblia lhe reservou: uma escória de bárbaros cruéis e mudos, sem direito a sua própria história, já que nenhum vestígio deles foi encontrado até a metade do século passado. Nas últimas décadas, no entanto, escavações arqueo-lógicas em Israel revelaram outra face dos filisteus, bem mais fiel à realidade do que aquela pintada nas passagens bíblicas. Os vilões que subornaram Dalila para descobrir o segredo da força de Sansão, os ladrões que se apoderaram da Arca da Aliança e encontraram em Davi o seu algoz eram uma sociedade brilhante e desenvolvida, que durante muito tempo foi uma espécie de agente civilizatório da cultura grega micênica na região de Canaã.

Uma mudança radical na imagem dos filisteus, que a cada nova escavação desvenda aspectos desconhecidos de uma história escondida pelas terras áridas do deserto. Cidades bem organizadas, cercadas por muralhas sólidas e com áreas industriais e residenciais nitidamente separadas, prédios públicos e templos grandiosos, palácios no mais puro estilo arquitetônico micênico, são pouco a pouco reconstruídos nos sítios arqueológicos. Mais impressionante, porém, é a força econômica desse povo: em quase todos os seus centros urbanos, restos de inúmeras oficinas denunciam uma atividade incessante.

Pequenas confecções e tinturarias foram encontradas em quantidade. Sua indústria cerâmica, capaz de criar peças sofisticadas, enfeitadas com desenhos de espirais, pássaros, animais e homens — marcas registradas da cultura micênica —, contrastava com a tos-ca arte dos israelitas, que na época ainda produziam vasos de barro cru. A fama de sua metalurgia, que os próprios textos bíblicos registram, também não era gratuita: forjas de bronze e adagas finamente acabadas, com cabo de marfim, fazem parte de seu legado. Em Ekron, a mais resplandecente de suas capitais, as instalações para produzir azeite de oliva eram tão grandes que, pelos cálculos dos estudiosos, a produção média devia ultrapassar 1 milhão de litros por ano, um quinto do que Israel exporta atualmente.

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Até o século passado, todo esse resplendor era apenas mais um dos mistérios indecifráveis da história da humanidade. Quem eram os filisteus, de onde tinham vindo e por que desapareceram, ninguém sabia. Tudo que se conhecia estava no Velho Testamento. E só. Era certo que chegaram como invasores e ocuparam as terras de Canaã, desde a atual faixa de Gaza até o território onde hoje se encontra a capital israelense, Telavive. Especulava-se também que chegaram lá entre os séculos XIII e XII a.C., já que as primeiras referências a eles são do chamado período dos Juízes, quando os descendentes de Abraão ainda não passavam de grupos de pastores e a única unidade entre as tribos judaicas era a religião. No mais, a narrativa bíblica enfatizava o convívio tumultuado entre os dois povos, até que, no século VII a.C., eles simplesmente somem tanto das páginas da Bíblia, como de Canaã e da história.

No século XVIII, no entanto, graças ao enciclopedista francês Dom Calmet, surgiria a primeira tese plausível sobre a origem dos filisteus. Especialista na Bíblia, em Lingüística e profundo conhecedor da História greco-romana, Calmet dedicou a vida àquilo que esperava ser a enciclopédia definitiva sobre todo o conhecimento bíblico. Mas durante seu trabalho deparou um problema: como escrever um verbete sobre os filisteus, se os textos bíblicos eram extremamente vagos? As únicas pistas que encontrou foram referências a eles como habitantes de uma misteriosa ilha chamada Caphtor ou ainda como integrantes da desconhecida nação dos ceretitas.

Uma barreira aparentemente intransponível, não fosse uma pista reveladora. Consultando uma versão da Bíblia em grego do século II a.C., feita em Alexandria, no Egito, Calmet viu que “nação dos ceretitas” tinha sido traduzida como “nação dos cretenses”. Seriam os filisteus cretenses? Mais tarde, ele achou uma confirmação valiosa de sua desconfiança em documentos bizantinos do século VI: neles, Gaza, um dos grandes centros filisteus, era chamada Minoa em homenagem ao rei Minos de Creta, que teria visitado a cidade e lhe dera seu nome. Quando publicou, em 1720, sua enciclopédia, Calmet já não tinha mais nenhum tipo de dúvida: Caphtor virou Creta e os filisteus foram apresentados como imigrantes cretenses em Canaã.

Embora não passasse de uma engenhosa conjugação de textos, sem provas históricas, hoje se sabe que antes da controvertida tese de Calmet ninguém chegou tão perto da verdade sobre os filisteus. Mas foi preciso esperar 109 anos até que, definitivamente, essa relação entre os filisteus e o mundo grego da Idade do Bronze fosse confirmada. E, novamente por obra dos franceses, na famosa excursão de Napoleão Bonaparte ao Egito, em 1798, a mesma que levou para a Europa a Pedra da Roseta usada por Jean-François Champollion para decifrar os hieróglifos. Impressionado com um mural esculpido nas paredes de um templo no sul do Egito, um artista chamado Dominique Vivant Donon resolveu reproduzir suas cenas: batalhas em terra e no mar entre egípcios e um estranho povo com cocares de penas; pelejas que durante muito tempo se acreditou serem parte de uma campanha do faraó Sesóstris na Índia, no século XX a.C.

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Em 1829, Champollion em pessoa enterraria essa versão durante sua visita ao templo, chamado Medinet Habu, quando traduziu uma palavra-chave que mudou totalmente a história daqueles desenhos: filisteus. Os relevos de Tebas não tinham nada a ver com Sesóstris ou a Índia, mas, sim, retratavam a vitória, cerca de 800 anos depois, de Ramsés III contra uma tentativa de invasão dos chamados Povos do Mar, guerreiros provenientes do Mar Egeu. Entre eles, os filisteus.

A saga de Ramsés eternizada nas paredes de Medinet Habu é o marco da redescoberta da história filistéia e, atualmente, poucos duvidam de que o fracasso no Egito seja a origem da colonização de Canaã pelos Povos do Mar — além dos filisteus, também se estabeleceram lá pelo menos mais três deles, os sardanas, os sicalaias e os danunas, todos presentes na tentativa de invasão do Império do Nilo. Foi provavelmente a serviço do faraó vitorioso que eles chegaram à terra dos cananeus. Na época, Ramsés enfrentava dificuldades para manter o controle de suas posses na região e pode ter enviado os prisioneiros de guerra, na condição de mercenários, para garantir a defesa de suas cidades. Além disso, quando tentaram entrar no Egito, os guerreiros do mar não vinham sozinhos, mas traziam mulheres e crianças: para muitos historiadores, a presença das famílias é uma prova de que o ataque aconteceu como uma migração em massa, após a destruição de Tróia. É quase certo que os Povos do Mar lutaram como aliados dos troianos e foram obrigados a fugir com a vitória dos atenienses e espartanos, novos senhores da Grécia e do Egeu, que ergueram seus domínios sobre as cinzas de potências micênicas como Creta, Chipre, Tróia e Micenas.

Daí em diante, tudo o que se sabe sobre os filisteus se deve ao trabalho de arqueólogos, que a partir da metade do século passado se empenharam em recuperar a memória dos filisteus e de todo o mundo micênico, desenterrando achados sensacionais como Tróia, o palácio de Cnossos em Creta e a própria cidade de Micenas. No caso da Palestina — nome da região vem da transliteração hebraica de Philistia —, o declínio da influência egípcia transformaria os filisteus em seus herdeiros naturais como senhores da região. Durante a fase dos Juízes, eles reinaram absolutos. O poder de suas cidades, Ashkelon, Gaza, Ashdod, Gath e Ekron, era incontestável, assim como sua cultura, que aos poucos deixou de lado a reprodução da arte micênica para se tornar uma espécie de amálgama cultural com as mais variadas influências. A cerâmica foi abandonando o estilo típico dos egeus para ganhar personalidade própria. As covas coletivas também foram deixadas de lado, substituídas pelos enterros individuais em esquifes de barro inspirados nos sarcófagos egípcios. Em Ekron, por exemplo, descoberta na década de 80 pela arqueóloga israelense Trude Dothan, enquanto as residências mais antigas ainda guardavam o hábito de construir grandes círculos no meio dos salões, uma espécie de lareira central cultivada em palácios micênicos, nas construções mais novas eles foram descartados.

Mas não foi só o mito da bárbarie dos filisteus que sucumbiu ao trabalho dos arqueólogos. Apesar da rivalidade enfatizada pela Bíblia, não são poucos os que acreditam que durante muito tempo filisteus e hebreus compartilharam uma intimidade desconcertante. Segundo o arqueólogo israelense Yigael Yadin, Sansão, o truculento juiz da tribo de dã — uma das doze que constituíram Israel —, era descendente dos Povos do Mar: os Filhos de Israel da Tribo de Dã, na verdade, seriam danunas, os mesmos dos relevos de Medinet Habu. Para Yadin, só isso explica certas atitudes da gente de Sansão: seu pai, por exemplo, permitiu que ele se casasse com uma filistéia, hábito impensável para outras tribos, e o próprio Sansão costumava assediar sem cerimônia as mulheres inimigas. Não só freqüentou uma prostituta de Gaza, como sucumbiu aos encantos de Dalila, agente filistéia. Nenhum outro hebreu jamais se atreveu a tanta confraternização. Assim como nenhum outro herói bíblico é reverenciado por sua virilidade ou dotes físicos como Sansão, que lembra mais um deus grego do que um pastor judeu. Como os danunas desapareceram sem deixar vestígios, Yadin acha que eles entraram em choque com os filisteus e migraram para o norte, fundan-do a cidade de Dan e aliando-se definitivamente a Israel.

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O próprio Davi, que com sua vitória conquistou a mão da filha do rei Saul e se tornou rei de Israel, parece ter convivido intimamente com eles. Embora a lenda o descreva como um jovem na época da luta, muitos historiadores acreditam que ele já fosse um guerreiro conceituado: para eles, Davi teria sido adestrado nas artes marciais pelos próprios filisteus, servindo como mercenário na cidade de Gath — terra natal de Golias, até agora não encontrada.

Íntimo ou não, quando subiu ao poder, em 1006 a.C., Davi não demonstrou condescendência com seus inimigos. A união de Judá e Israel fez do novo Estado israelita a grande potência regional, aniqui-lando o poderio filisteu: cidades como Qasile e Ekron foram transfor-madas em cinzas e as rotas comerciais do interior ficaram com os hebreus. Os filisteus, no entanto, sobreviveram e, séculos mais tarde, com a chegada dos assírios, conheceriam um novo período de apogeu: Ekron, depois de conquistada pelo rei Sargão II, em 712 a.C., foi promo-vida a capital da província assíria de Canaã e voltou a brilhar. Até que, 100 anos depois, o novo período de gló-ria encontraria um fim trágico e defi-nitivo. Ironicamente, compartilhado com os hebreus. Após a conquista de Israel e a destruição do templo de Jerusalém, em 586 a.C., Nabucodonosor dedicou-se a aniquilar a civili-zação filistéia. E é até provável que os eternos rivais, deportados para Babi-lônia, tenham se encontrado no cati-veiro. De lá, os judeus um dia retornariam para a história. Dos filisteus, porém, nunca mais se ouviu falar.

Para saber mais:

A guerra sem fim

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(SUPER número 1, ano 1)

O vilão reabilitado

(SUPER número 10, ano 7)

Etruscos, a cultura que Roma destruiu

(SUPER número 12, ano 7)

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