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A vez em que Thor foi derrotado

Muito antes de chegar nos cinemas, ou nos quadrinhos, Thor era herói nas histórias nórdicas. Imbatível, não perdia nunca, quer dizer, quase nunca

Por Reinaldo José Lopes
30 out 2017, 18h36

Em mais uma de suas jornadas para o Leste, Thor decide levar Loki consigo na célebre carruagem puxada por bodes. Quando a noite cai, os dois deuses param na casa de um fazendeiro e convidam os moradores da propriedade para comer com eles. Por estranho que pareça, o Deus do Trovão decide começar o preparo da ceia matando seus valentes bodes. Esfola os bichos, coloca-os na panela e faz um belo ensopado para todos os presentes. Durante a refeição, além de comer a carne dos bodes, o filho do fazendeiro, um rapaz chamado Thjalfi, usa sua faca para quebrar o fêmur de um dos bichos e obter assim o tutano do osso, uma iguaria especialmente nutritiva.

Quando todos terminam de comer, Thor pede que coloquem os ossos dos bodes em cima das peles deles. No dia seguinte, logo cedo, o deus pega o Mjölnir e abençoa os couros. Num passe de mágica, os velozes Tanngrisnir e Tanngnójst voltam à vida, e Thor está prestes a atrelar os animais a seu veículo para poder seguir viagem quando percebe que um deles está mancando, com a pata de trás machucada. Alguém danificou os ossos dos bodes! 

Furioso, Thor aperta o cabo de seu martelo com tanta força que os nós de seus dedos ficam inchados. Seus olhos soltam faíscas de raiva que mais parecem relâmpagos. O casal de lavradores pede que ele se acalme, pelo amor de todos os deuses, e o deus acaba concordando em deixá-los em paz desde que os filhos dos fazendeiros, Thjalfi e Roskva, tornem-se seus servos. 

Depois disso, a trupe, agora com dois deuses e dois mortais (e sem bodes), continua a pé sua jornada rumo à Terra dos Gigantes. Logo, acabam dentro de uma floresta fechada e muito escura. Procurando um lugar para passar a noite, topam com uma cabana esquisita, com uma entrada muito larga e meio circular. Lá dentro, há uma sala lateral igualmente estranha, com mais ou menos a metade do comprimento da casa. Decidem dormir lá dentro, mas no meio da noite um terremoto fortíssimo chacoalha a cabana. Thor se posta à porta com o Mjölnir na mão e logo depois ouve um barulho ensurdecedor. 

O deus pode ser poderoso, mas não está interessado em correr riscos desnecessários, de modo que espera o nascer do Sol para tentar investigar o que está acontecendo naquela floresta infernal. Vê então, não muito longe dali, um homem imenso, maior do que qualquer gigante que ele já derrotou, dormindo entre as folhas secas da mata e roncando muito. Preparando-se para o pior, Thor afivela o Megingjard, seu cinto de poder, mas o grandalhão acorda antes que o deus possa desferir uma martelada preventiva. Espantado com o tamanho da criatura, o asgardiano pergunta como ele se chama.

“Meu nome é Skrymir [termo que pode significar algo como “grandalhão” ou “fanfarrão”]. Já eu não preciso perguntar teu nome. Sei que és Thor dos Æsir. Foste tu que levaste para longe minha luva?”, diz o monstro. A “luva”, que Skrymir, naquele momento, está pegando do chão, é a cabana na qual o deus e seus companheiros passaram a noite. (A sala lateral é só o buraco do polegar – é uma luva inteiriça, apropriada para o clima frio da Terra dos Gigantes. Por aí você já consegue ter uma ideia do tamanho do cidadão). Apesar de suas dimensões descomunais, Skrymir se comporta com a máxima gentileza. Pergunta se o grupo de viajantes gostaria de seguir caminho junto com ele e se oferece para carregar a bagagem de todos junto com a sua. Talvez para ficar de olho no gigante, Thor aceita. 

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A noite está caindo quando eles chegam perto de um grande carvalho, debaixo do qual decidem acampar. Skrymir avisa que já está indo para a cama, mas incentiva os demais a abrir o alforje de comida e preparar um jantar. Logo, está roncando daquele jeito capaz de assustar até os mortos em Hel. Enquanto isso, Thor tenta desatar a corda que fecha o saco de mantimentos – e nada. Sua força não lhe está valendo. Cada vez mais irritado, resolve acordar o gigante com uma martelada. Dá o golpe, mas o máximo que consegue é fazer Skrymir abrir de leve os olhos. “Ora, será que me caiu uma folha na cabeça? Já estás pronto para dormir, Thor?”, diz o monstro. Depois disso, volta a roncar alto. 

A cena se repete mais duas vezes ao longo daquela madrugada, e a reação do gigante é sempre a mesma: “Caiu algum fruto do carvalho na minha testa? Ou foram alguns raminhos?”. Enfim, Skrymir acorda de vez e diz a Thor que vai partir para o Norte, enquanto o deus e seus companheiros continuam rumo ao Leste. Antes de se despedir, ele ainda dá alguns conselhos ao filho de Odin.

“Não vos falta muito para chegar à fortaleza dos gigantes, que se chama Utgard. Encontrareis homens ainda maiores do que eu. Não deveis agir com arrogância por lá, pois o rei Utgarda-Loki e seus nobres jamais tolerarão que gente pequena como vós fique se vangloriando. Na minha opinião, o melhor que tendes a fazer é voltar.” Dizendo isso, Skrymir parte.

Thor e seus companheiros, por sua vez, caminham para o Leste até o meio-dia, até que avistam uma fortaleza imensa, cujas torres se espalham pela planície. Chegam enfim aos portões, que estão trancados, e nem toda a força do filho da Terra é suficiente para abri-los. Os quatro, então, acabam entrando ao passar por entre as grades dos portões. Veem um grande salão de festas, com bancos nos quais muitos convivas estão sentados. “A maioria dessas pessoas era bastante grande”, descreve Snorri em seu livro, em um de seus eufemismos engraçadinhos.

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“As notícias viajam devagar quando vêm de países distantes, mas será que me engano em pensar que este rapazinho é Thor, o Condutor da Carruagem?”, diz sorrindo o rei Utgarda-Loki, quando finalmente percebe a presença de seus minúsculos visitantes. “Decerto as aparências enganam. Dizei-me, meus caros, quais de vossos talentos podem ser testados numa competição? Ninguém pode ficar aqui conosco se não tiver alguma habilidade ou conhecimento que supere o de outros homens.”

Ao ouvir isso, Loki se adianta: “Ninguém neste salão será capaz de comer com mais rapidez do que eu”, diz ele. Ótimo, declara Utgarda-Loki, chamando um dos convidados do festim, um sujeito chamado Logi, para competir com o Deus das Trapaças. Uma enorme bandeja de madeira, quase do tamanho da cocheira de um cavalo, é trazida para a mesa, contendo o maior pernil de porco (com osso e tudo) que você é capaz de imaginar. Loki se senta de um lado da bandejona, Logi se posta do outro, até que o rei-gigante dá o sinal e ambos começam a comer. Os dois se encontram no meio da bandeja, cada um terminando sua porção ao mesmo tempo que o outro – mas, enquanto o asgardiano devorou apenas a carne, o representante de Utgard comeu tanto a carne quanto os ossos, e mastigou até a madeira da bandeja. Um a zero para os gigantes, declara Utgarda-Loki, satisfeito.

Do lado dos deuses, o próximo a se apresentar para a competição é o jovem Thjalfi, que tem fama de ser um corredor velocíssimo. O rei dos gigantes convoca um rapaz chamado Hugi para enfrentar o servo de Thor. Hugi e Thjalfi se enfrentam num esquema “melhor de três corridas”, e em todas as ocasiões Thjalfi apanha feio – o representante de Utgard nem precisa suar para chegar sempre muito à frente dele, à distância máxima do disparo de uma flecha (uns 50 metros, portanto). 

Três desafios aceitos pelo próprio Thor encerram a disputa. O primeiro: tentar esvaziar de uma só tragada um chifre de touro selvagem usado como taça de cerveja por Utgarda-Loki e seus nobres. “Aqui entre nós, quem não é um beberrão muito experiente precisa de duas tragadas para esvaziar o chifre, mas não há ninguém tão fraquinho que precise de três tentativas para beber tudo”, tripudia o rei. Thor dá sua primeira tragada, engolindo o máximo do líquido que consegue, e olha para dentro do chifre: o nível da cerveja baixou só um pouquinho. Segunda tentativa: o deus quase fica sem fôlego, e o resultado é ainda pior do que da primeira vez. Já prestes a espumar de raiva, Thor bebe pela terceira vez, dando tudo de si – mas a maior parte do chifre ainda está cheia de bebida, embora o nível tenha caído bastante nessa tentativa, pelo menos. 

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“Está claro que tua força não é tão grande quanto pensávamos, Thor”, comenta Utgarda-Loki. “Ainda queres testar teus poderes em outros desafios? Uma coisa que os meninos pequenos entre nós fazem é levantar meu gato do chão. Desejas tentar?” 

A ideia tem toda a cara de ser bolada como um insulto deliberado ao poderio do Deus do Trovão, mas lá se vai Thor em direção ao tal gato, um bichano cinzento que mais parece um leopardo-das-neves obeso. O campeão dos Æsir coloca uma de suas mãos por baixo da barriga do bicho, faz força – e nada. Arqueando seu lombo, o gato faz de tudo para continuar esparramado no chão. Quase urrando de raiva, Thor aplica ainda mais força na barriga do animal, mas o máximo que consegue é fazer com que uma das patas do felino saia do assoalho. Enfim, humilhado, desiste.

“Eu já esperava esse resultado. O gato é bastante grande, enquanto tu, Thor, és pequeno se comparado com os homens daqui”, faz questão de dizer o rei. “Podes me chamar de pequeno, mas desafio qualquer um de vós a uma luta sem armas comigo”, retruca Thor. “Agora conseguiste me enfurecer!” Sem se abalar com o acesso de raiva do deus, Utgarda-Loki sugere que o oponente justo para enfrentar Thor seria sua velha ama, uma senhora chamada Elli. Ao ser chamada, a mulher chega claudicando. Mas, assim que se atraca com Thor, parece ter se transformado em granito: por mais que se esforce, o deus não consegue obrigá-la a ceder nem um milímetro de espaço que seja – até que Elli, sem nem chegar a suar, força Thor a se apoiar em um de seus joelhos para não desabar no chão. Utgarda-Loki decide encerrar o combate, pois já é tarde da noite. Thor e seus companheiros vão remoer suas derrotas na cama.  

No dia seguinte, logo cedo, após um desjejum generoso fornecido pelo monarca dos gigantes, os deuses e seus companheiros humanos se preparam para deixar Jötunheim com o rabo entre as pernas. Utgarda-Loki faz questão de acompanhá-los até o portão de sua fortaleza e, ao se despedir, pergunta a Thor o que achou da viagem. “Não posso negar que sofri uma desonra imensa ao ser derrotado por vós”, responde o deus.

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“Agora que estais prestes a partir, posso dizer a verdade. Asseguro-te que jamais permitiria que entrásseis em nossa morada se eu conhecesse de perto a dimensão de vossos poderes”, confessa Utgarda-Loki. Diante do olhar cada vez mais raivoso de Thor, o gigante se põe a revelar todos os estratagemas mágicos que usou para intimidar os companheiros.

Acontece que o imenso Skrymir não passa de um disfarce do próprio Utgarda-Loki. Em circunstâncias normais, qualquer martelada de Thor teria sido o fim do rei, mas ele usou sua magia para colocar montanhas na frente dos golpes do Mjölnir – tanto que, depois disso, surgem três imensos vales de formato quadrado na cordilheira utilizada pelo rei-gigante para se defender. 

Coisas parecidas se deram durante os confrontos entre os companheiros e os supostos convivas do rei no festim. O tal Logi, que enfrentou Loki na competição de comilança, só venceu porque era o Fogo Encarnado, e nada devora as coisas mais rápido do que o fogo (é esse o significado de logi em islandês antigo). Também era óbvio que Hugi venceria fácil o jovem Thjalfi, pois a velocidade de hugi (“pensamento”) é insuperável. 

“Quando bebeste do chifre, pensaste que estavas engolindo com lentidão, mas na verdade o que conseguiste foi quase um milagre. A outra ponta do chifre, que não eras capaz de ver, estava enfiada no oceano”, conta Utgarda-Loki. Thor conseguiu ingerir tanta água do mar que sua façanha criou as marés (que até então não existiam). 

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“Do mesmo modo, o gato não era o que parecia. Na verdade, ele era a Serpente de Midgard, cujo corpo circunda todas as terras do mundo, e ainda assim conseguiste erguê-la tão alto que ela quase alcançou o céu.” E a velhinha Elli? Bem, elli é a Velhice – e ninguém, nem mesmo o campeão dos Æsir, seria capaz de vencer o envelhecimento, que sempre sobrepuja homens, gigantes e deuses.

Thor não está disposto a deixar que todos esses enganos saiam barato para Utgarda-Loki. Assim que o rei acaba de falar, ergue o Mjölnir para golpeá-lo – mas o feiticeiro gigante desaparece naquela mesma hora, assim como a sua fortaleza. No lugar dela, há apenas uma planície vazia. “Daquele momento em diante, Thor decidiu encontrar uma maneira de confrontar a Serpente de Midgard”, diz Snorri.

 

Este conteúdo foi originalmente publicado no livro Mitologia Nórdica escrito pelo jornalista Reinaldo José Lopes

Mitologia Nórdica
(Diego Sanches/Superinteressante)
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