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A aventura global dos vikings

Não era só pancada. Combinando diplomacia e comércio, os navegadores escandinavos ajudaram a criar a Rússia, a Inglaterra e a França. De quebra, conectaram o Ocidente com o mundo islâmico.

Por Reinaldo José Lopes
18 mar 2022, 09h33

Texto Reinaldo José Lopes Ilustração Vini Capiotti 

Design Juliana Krauss Edição Alexandre Versignassi

Por volta do ano 1000 d.C., um monumento funerário foi erguido em Stora Rytterne, no interior da Suécia. As runas gravadas na laje do memorial dizem o seguinte: “Gudleif dispôs o cajado e estas pedras em memória de Slagvi, seu filho, que encontrou seu fim no leste, em Karusm”.

Na primeira olhada, a frase não parece dizer muita coisa, certo? Acontece que a última palavra do epitáfio muda tudo. Para a maioria dos especialistas, “Karusm” provavelmente é uma variação de “Khwarazm”. Esse era o nome de um poderoso reino muçulmano que existia num oásis do atual Uzbequistão, bem no miolo da Ásia. Ou seja: Slagvi, filho de Gudleif, morreu muito longe de casa.

E não foi um caso isolado, como mostram outras inscrições e artefatos espalhados por boa parte da Escandinávia. Durante a chamada Era Viking, entre os séculos 8º e 11º d.C., rapazes do interior da Suécia, bem como da Dinamarca e da Noruega, viraram protagonistas de uma versão medieval do mundo globalizado, espalhando-se por tudo quanto é canto da Eurásia: da Irlanda a Bagdá.

Esses sujeitos agiam como piratas sem o menor escrúpulo em muitas ocasiões, mas também estavam de olho em oportunidades comerciais, viravam-se bem como diplomatas e, de vez em quando, resolviam sossegar e se transformavam em prósperos colonos. Nada disso foi fruto de um grande plano – os viajantes da Escandinávia quase sempre atuavam sem comando central, hierarquia militar, ou aparentes objetivos de longo prazo. Mas suas aventuras acabaram estimulando o surgimento de algumas das nações mais poderosas do planeta nos últimos séculos, como a Inglaterra, a França e a Rússia. Sem os vikings, a trajetória histórica desses lugares poderia ter sido bem diferente.

“Vikingando” por aí

Antes de entender como essa saga (aliás, “saga” é uma palavra escandinava) começou, vale a pena pensar um pouco nos termos que costumamos usar. Acontece que, ao menos na Idade Média, “viking” não era uma palavra empregada como designação étnica ou de “nacionalidade”. “Viking” era simplesmente o sujeito que saía por aí “vikingando”, ou seja, fazendo incursões por mar, que podiam ter objetivos guerreiros ou pacíficos. Se você preferir, pode traduzir mentalmente a palavra para “pirata”, como fizemos no parágrafo anterior.

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É importante ter isso em mente porque a Escandinávia do começo da Era Viking não passava de uma grande colcha de retalhos. Eram comunidades pequenas e pouco centralizadas politicamente, lideradas por nobres mixurucas que raramente conseguiam impor sua vontade aos lavradores livres que formavam o grosso da população. Alguns desses nobres e seus vizinhos de status “plebeu” às vezes decidiam sair por aí a “vikingar”, numa espécie de empreendedorismo militar-comercial, quando enxergavam oportunidades interessantes nas terras d’além-mar.

A questão, porém, é desvendar o porquê de tantos grupos, espalhados pelas diferentes comunidades escandinavas, terem descoberto que “vikingar” era bom negócio num momento específico, a partir da segunda metade do século 8º d.C. A convenção adotada pelos historiadores é considerar que a Era Viking começou no ano de 793, quando marujos escandinavos roubaram e massacraram os monges que viviam na ilha de Lindisfarne, no nordeste da Inglaterra, mas é claro que esse primeiro ataque não surgiu do nada. Quais foram os ingredientes que criaram os vikings?

Ainda há um debate considerável sobre o tema, e o fenômeno muito provavelmente teve diversas causas. Mas uma das mais importantes é algo que todo mundo entende com facilidade hoje: mais grana circulando pelo mundo.

Acontece que a Era Viking parece tomar fôlego numa época em que a economia do norte da Europa começa a ter uma fase de crescimento considerável de novo, após alguns séculos de baixa causada pelo fim do Império Romano do Ocidente (em 476 d.C.).

A Escandinávia nunca tinha feito parte dos domínios de Roma, que só iam até o oeste da atual Alemanha, mas as evidências da interação com os romanos são muitas no registro arqueológico da região, e isso certamente envolvia comércio e circulação de pessoas. Guerreiros nórdicos chegaram a virar mercenários a serviço dos exércitos dos Césares e também parecem ter feito parte dos grupos “bárbaros” que invadiram e retalharam o Império. Parte das riquezas saqueadas nesse processo foram parar em solo escandinavo.

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Só que essa fonte secou rápido, e a Europa em frangalhos que emergiu da queda de Roma era não só bem mais pobre como muito menos conectada. A simplificação radical da economia e da sociedade só começou a ser revertida lentamente a partir do começo do século 8º, com a construção ou a ampliação de portos mercantes da França à Alemanha, englobando também a costa leste da Inglaterra. Em parte, esse processo foi estimulado pelo fortalecimento do reino cristão dos francos (englobando justamente a região dos novos portos), que alcançaria seu auge com a ascensão do imperador Carlos Magno (747-814).

Lojinha aberta

E dá pra enxergar um processo similar acontecendo no registro arqueológico da própria Escandinávia. Foi no começo do século 8º que ocorreu a fundação de uma vila mercantil dinamarquesa chamada Ribe (que existe até hoje). Usando métodos refinados de datação, cientistas europeus determinaram recentemente como Ribe foi aumentando sua esfera de trocas comerciais com o passar do tempo, seja com outras partes da Escandinávia, seja com as regiões mais ao sul, na esfera de influência dos francos.

“Vemos essa intensificação do comércio marítimo aparecer bem antes dos ataques vikings à Europa Ocidental”, conta Bente Philippsen, pesquisadora da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, autora de um estudo recente sobre o tema. Logo que o pessoal de Ribe abriu suas lojinhas, entre os principais artefatos que circulavam pela região estavam objetos de cerâmica vindos da bacia do rio Reno, que banha a França, a Alemanha e a Holanda de hoje.

Também faziam sucesso contas coloridas feitas a partir de cálices de vidro quebrados ou pedaços de mosaicos – mosaicos romanos da Europa continental. Um pouco mais tarde, em torno do ano de 740, Ribe passa a receber artigos como pedras de amolar e chifres de rena importados da Noruega (o segundo produto não era usado para enfeitar paredes, mas como matéria-prima para a produção de pentes).

Ou seja, longe de estarem isoladas, as regiões que um dia passariam a “exportar” vikings sabiam muito bem quais eram as rotas comerciais que podiam ser exploradas com o resto da Europa, e é bem provável que já visitassem pacificamente com alguma frequência as regiões que um dia acabariam atacando.

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Ilustração de comunidade viking comerciando.
Mercado global: no início do século 8º, o mercado da cidade dinamarquesa de Ribe tinha objetos vindos de várias partes da Europa. No final, já havia produtos do Oriente Médio. (Vinicius Capiotti/Superinteressante)

Esse é um dos pedaços do quebra–cabeças. Outra peça-chave, diz o arqueólogo britânico Neil Price, autor do livro Vikings: A História Definitiva dos Povos do Norte, é o fato de que a fragmentação política escandinava nesse período promoveu a ascensão de um tipo de personagem conhecido como saekonungr, ou “rei-do-mar”.

Chamar esses sujeitos de rei era licença poética. “Naquele tempo havia muitos reis-do-mar que comandavam grandes tropas e não tinham terras”, diz a Saga dos Ynglingas, narrativa escrita pelo erudito islandês Snorri Sturluson no século 13º. E veja só o naipe das alcunhas dos fulanos: Geitir (“o Bode”), Jalkr (“Urrador”), Maevill (“o Gaivota”), Mysingr (“o Camundongo”). São, obviamente, nomes de piratas. Eles conseguiam reunir recursos e homens para controlar e pilhar áreas de litoral, sem se dar ao trabalho de administrar fazendas e servos em terra firme.

É lógico que os reis–do-mar parecem suspeitos ideais na hora de imaginar quem poderia se dar ao trabalho de subir num navio e ir botar fogo em algum monastério aleatório no litoral da Inglaterra. Mas o papel deles pode ter sido igualmente importante em outro sentido. Alguns escandinavos podem ter escolhido aderir à carreira de viking para escapar da influência de algum saekonungr em casa.

Por fim, não se pode esquecer que, quando a Era Viking começa, os escandinavos estavam entre os últimos “pagãos” (isto é, não cristãos) da Europa Ocidental e começavam a se sentir encurralados. O império cristão de Carlos Magno já estava se estendendo rumo à Dinamarca, inclusive convertendo à força os habitantes da Saxônia (parte da atual Alemanha). Atacar os centros comerciais cristãos, além de lucrativo, era também uma “defesa proativa”, diz Price.

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Tudo isso ajuda a explicar por que os mesmos escandinavos que tinham se tornando figurinhas carimbadas nos mercados marítimos europeus começaram a atacar mosteiros e vilarejos indefesos no fim do século 8º. Como qualquer bandido que se preze, eles costumavam ter excelente faro para detectar vítimas vulneráveis. Isso é meio óbvio no caso dos monges, gente que não costumava carregar armas e viviam cercados pelos metais e pedras preciosas que adornavam suas igrejas. Mas o mesmo raciocínio valia para escalas maiores: reinos inteiros.

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Conquistando os divididos

De fato, as primeiras décadas de atividade viking mostram grande habilidade de se aproveitar de locais com pouca unidade política e militar e, portanto, com uma capacidade menor de resistir a ataques de surpresa. É o que mostram os êxitos iniciais na Irlanda, na época uma colcha de retalhos liderada por nobres briguentos, tal e qual a Escandinávia. A própria Inglaterra, embora fosse um pouco mais centralizada politicamente, também estava dividida em vários pequenos reinos, entre os quais se destacavam Mércia (na região central do país), Nortúmbria (no norte) e Wessex (no oeste).

Os francos de Carlos Magno seriam, em tese, um osso mais duro de roer. Os primeiros ataques vikings na Frância (veja bem, ainda não era a França que conhecemos) se concentraram em regiões de fronteira, onde seria mais difícil o exército imperial mandar socorro. Os filhos e netos do imperador, porém, mostraram-se soberanos mais fracos e desunidos, dividindo o território entre si e criando ainda mais barreiras para uma resposta unificada aos atacantes.

Ilustração de vikings enfrentando cristãos e saqueando.
Como qualquer bandido que se preze, eles tinham faro para detectar vítimas vulneráveis. No começo eram monges; depois reinos inteiros com baixa capacidade de defesa. (Vinicius Capiotti/Superinteressante)
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Essas fragilidades permitiram que frotas vikings cada vez mais numerosas – primeiro com dezenas e depois com centenas de navios – fizessem essas regiões de gato e sapato do ano 830 em diante. A devastação parecia impossível de parar porque não havia um “rei dos vikings” com quem os reinos pudessem negociar. Muitos ataques eram temporariamente parados com subornos, mas logo aparecia outra frota querendo a mesma quantia ou ainda mais dinheiro.

Nas décadas seguintes, todos os principais rios da atual França viraram avenidas para os saques escandinavos, e quase todos os reinos ingleses foram subjugados por aventureiros vikings. A exceção foi o reino de Wessex, cujo governante, Alfred, escapou por pouco do chefe nórdico Guthrum em 877.

Esse foi o auge do poder viking na Inglaterra. Alfred acabaria derrotando Guthrum, forçando-o a se converter ao cristianismo. Pouco a pouco, os descendentes do rei de Wessex foram reconquistando pedaços das áreas sob controle escandinavo, e o resultado desse processo foi o surgimento da primeira monarquia unificada em solo inglês.

Do outro lado do canal da Mancha, o triunfo dos invasores foi mais duradouro. Um pirata chamado Hrólfr (ou Rollo, como ficaria conhecido pelos franceses) forçou os governantes francos a lhe cederem um território que ele continuou a aumentar por meio de novos ataques, que atraíram ainda mais imigrantes da Escandinávia para seu séquito. Seus descendentes fundaram o ducado da Normandia (“terra dos homens do Norte”), praticamente um território independente que eles governariam até o século 13º.

Um desses descendentes “fechou o círculo” viking na Inglaterra, por assim dizer. Guilherme, o Bastardo, duque da Normandia, conquistou todo o território inglês em 1066 (é por isso que você provavelmente o conhece como “o Conquistador”). Todos os reis e rainhas da Inglaterra desde então descendem dele. Mas o impacto dos normandos vai muito além do Reino Unido. Nobres da Normandia, descendentes dos vikings, ainda fundaram reinos no Oriente Médio durante as Cruzadas e conquistaram a Sicília.

No Oriente

Mas não vamos esquecer de Slagvi e sua morte em “Karusm”. No mercado de Ribe, contas vindas do Oriente Médio começam a aparecer no fim do século 8º, e a Escandinávia é um dos lugares do mundo onde há maior presença arqueológica de moedas do Califado Abássida, o grande império muçulmano da época.

A razão por trás desses fatos é que rapazes suecos como Slagvi começaram a explorar mais os rios da Europa Oriental que podiam conduzi-los até o mar Negro e o Mediterrâneo – colocando-os em contato com o Império Bizantino, cristão, e com os abássidas.

No Oriente, eles ficaram conhecidos como “Rus”, termo que provavelmente vem do verbo “remar” em nórdico antigo. Sim, é daí que vem o nome “Rússia” – mercadores e soldados Rus aliaram–se a grupos locais de origem eslava, fundaram as mais antigas cidades da Rússia, da Ucrânia e de Belarus e se converteram ao cristianismo ortodoxo.

Na capital bizantina, Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), outros escandinavos se puseram a serviço dos imperadores e formaram a lendária Guarda Varangiana, famosa pela lealdade e ferocidade (não que isso tenha impedido os sujeitos de grafitar seus nomes com runas no mármore da basílica de Santa Sofia).

Dados arqueológicos mostram que escandinavos chegaram ao Canadá, por volta do ano 1000. Tudo indica que os assentamentos vikings por lá foram de vida curta, então a verdadeira “descoberta” do continente teria mesmo de vir com Cristóvão Colombo. Mas os poucos vestígios deixam claro: a aventura escandinava foi uma das maiores sagas da história da humanidade.

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