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Ciência

Kurt Gödel: o filósofo paranoico que provou a incompletude da matemática

Ele foi o melhor amigo de Einstein, esboçou uma prova de que Deus existe e projetou uma máquina do tempo. Mas seu grande feito foi outro: mostrar que nem a matemática é perfeita. Uma conclusão que fez o século 20 tremer.

Texto: Bruno Vaiano | Ilustração: João Montanaro | Design: Carlos Eduardo Hara

Tantos gênios europeus se exilaram em universidades dos EUA na 2a Guerra que o crítico de arte Walter Cook comentou: “Hitler é meu melhor amigo: ele balança a árvore e eu colho as maçãs”. Desses refugiados, o mais famoso foi Albert Einstein. E o mais misterioso, o melhor amigo de Einstein: o matemático Kurt Gödel.

Gödel nasceu em 1906 na cidade de Brno – que hoje fica em território tcheco, mas na época era parte do Império Austro-Húngaro. Com 5 anos, sua mãe o apelidou de Herr Warum (em português, “Sr. Por quê”). Com 30, já era tido como o maior crânio do raciocínio lógico desde Aristóteles.

Sua família era alemã. Alemã o suficiente para que fosse apto a se juntar ao Exército nazista – e para que fosse tratado como traidor por andar com intelectuais judeus em Viena na juventude. Por isso, ele fugiu: atravessou a Sibéria de trem, pulou para o Japão e chegou aos EUA em 1939.

Tudo que Gödel tinha de gênio ele tinha de inapto social – era uma versão real do Sheldon Cooper de Big Bang Theory. Uma biógrafa o descreveu como “seriamente estranho e um desafio formidável ao esforço de estabelecer uma conversa”.

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Em Princeton, deu sua primeira palestra de costas para o público. Depois, esboçou uma prova lógica da existência de Deus, mas não a publicou com medo de ser mal-interpretado.

Quando Einstein fez 70 anos, Gödel o presenteou com uma solução das equações da Relatividade Geral que permitia, hipoteticamente, construir uma máquina do tempo (para construí-la na prática, seria necessário obter um cilindro de extensão infinita, algo impossível). A solução deixou Albert em crise existencial.

A maior obra de Gödel, porém, foram os chamados Teoremas da Incompletude, que ele publicou com 25 anos em 1931, ainda na Áustria. O trabalho acordou com um cutucão os matemáticos da velha guarda – que dormiam embalados por um sonho ambicioso, mas ingênuo: o de que nosso conhecimento sobre os números se alicerçava em bases lógicas impecáveis, imunes a contradições.

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O século 19 foi uma era de certezas. Os cientistas pensavam estar prestes a zerar nossa incompreensão da natureza.No século 20, ficou claro que a natureza é dura na queda. Einstein descobriu que a passagem do tempo não é absoluta: depende do movimento de quem vê o relógio, daí o “relativo” da Relatividade. Enquanto isso, na física quântica, Werner Heisenberg enunciou o Princípio da Incerteza, que impõe uma barreira intransponível à nossa capacidade de colher dados sobre o mundo microscópico: as partículas sempre vão esconder alguma informação de nós.

O que Gödel fez pelo estudo dos números teve impacto parecido. Ele demonstrou que a aritmética sempre vai padecer de uma das seguintes limitações: ou será incompleta (haverá teoremas que são verdade, mas não podem ser provados) ou será inconsistente (haverá contradições, como um teorema que é verdadeiro e falso ao mesmo tempo). Trata-se de uma das maiores realizações intelectuais puramente abstratas do século 20. Para entender por quê, precisamos antes mergulhar no funcionamento da disciplina de Pitágoras e Euclides. Começando pelo começo.

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Axiomas e teoremas

H

á um fantasma na matemática chamado Conjectura de Goldbach. Foi batizada em referência a seu autor, Christian Goldbach, um matemático alemão do século 18. Goldbach propôs que todo número par maior que 2 é a soma de dois números primos. Por exemplo: 8 é a soma de 5 e 3, que são primos. Isso é uma conjectura. Quase um chute, ainda que seja deselegante chamá-lo assim.

Agora, é preciso ver se esse chute é verdade. Embora a Conjectura de Goldbach já tenha sido verificada no braço em todos os números pares até 4 sextilhões – 4 seguido de 18 zeros –, ainda não há uma prova elegante de que ela valha para todos eles. Quando uma hipótese assim ganha uma prova, ela se torna um teorema. Uma coisa que sempre é verdade.

Alguns teoremas, como o de Fermat, levaram 350 anos para serem provados. Outros, como o de Pitágoras, têm umas 350 provas alternativas. Até o século 19, pensava-se que toda conjectura verdadeira teria no mínimo uma prova e poderia ser promovida a teorema em algum momento.

A matemática não é como a física ou a biologia, em que os cientistas comprovam suas conjecturas fazendo experimentos no laboratório ou observando a natureza. Ela é uma disciplina dedutiva, em que um teorema só é provado se pudermos demonstrar que ele é um desdobramento de uma afirmação mais simples – que, por sua vez, vem de outra, ainda mais simples.

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O objetivo é chegar a afirmações tão óbvias que as aceitamos como verdade intuitivamente, mesmo sem provas. Essas afirmações se chamam axiomas. Os axiomas mais famosos são os cinco do grego Euclides, que sustentam a geometria até hoje. A título de exemplo, o primeiro deles é: “Entre dois pontos, sempre é possível traçar uma reta.” Fica difícil discordar.

Os axiomas são como as regras de um jogo de futebol. Uma delas é a do impedimento. Não importa o quanto o gol seja bonito: se você estiver impedido, ele não vale. Um teorema muito bonito é como um gol. Quando um matemático propõe um, os outros matemáticos são o VAR, que vão revisar a jogada para ver se o teorema não desobedeceu a nenhum axioma. A revisão da jogada pelo VAR é o que os matemáticos consideram como a prova do teorema.

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A aposta

P

or dois milênios, os únicos axiomas disponíveis foram os de Euclides, com suas regras para a geometria. Mas com uma explosão de novas áreas da matemática no século 19, surgiu o plano de axiomatizar outras áreas. Dar regras para domínios além da geometria.

Em 1889, um matemático italiano chamado Giuseppe Peano publicou um conjunto de axiomas no qual se pudesse basear toda a aritmética – o ramo mais básico da matemática, que envolve operações básicas como soma, subtração e multiplicação. Como muitas áreas dependem da aritmética, esses axiomas seriam alicerces para provar muitos e muitos teoremas. Os sete axiomas de Peano tinham aquela beleza óbvia euclidiana. Eram afirmações como “qualquer número multiplicado por zero é igual a zero”. Ou então, que “qualquer número somado a zero é igual ao próprio número”. 

Um conjunto de axiomas, idealmente, não deve ser incompleto. Ou seja, não podem existir teoremas que não possam ser provados. Também não deve ser inconsistente – o que significa que não pode dar origem a contradições, como um teorema que é verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Seria possível provar que a aritmética de Peano tem essas virtudes?

Em 1900, David Hilbert, um matemático inglês, fez a lista de supermercado mais importante de todos os tempos: 23 problemas que os matemáticos deveriam resolver no século 20. O item número 2 era “provar a consistência dos axiomas da aritmética de Peano”. Só faltou combinar com a matemática. 

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Foi em resposta a esse desafio que Gödel deu seu veredicto: qualquer conjunto de axiomas suficientemente completo para representar a aritmética como a conhecemos – não só o de Peano – não pode ser, ao mesmo tempo, consistente e completo. Mais especificamente, Gödel mostrou que qualquer conjunto de axiomas consistente (que não dá origem a contradições) sofre de uma falha fatal: ele dá origem a teoremas que não podem ser provados. Esse é o primeiro teorema de Gödel. O segundo teorema é um desdobramento: afirma que é impossível provar a consistência da aritmética a partir dos axiomas da própria aritmética. 

Note que os teoremas de Gödel são teoremas. Ou seja: estão provados. O que dá um ar aterrorizante à coisa toda: como ele pôde provar que existem coisas que não podem ser provadas? Nós demos um esboço bem rudimentar da prova no infográfico – e vamos explicar a ideia geral a seguir.

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A prova

A matemática é um quebra-cabeça em que cada axioma é uma peça. Gödel concluiu que esse quebra-cabeça sempre terá uma falha: ou será incompleto, ou dará origem a contradições.
A matemática é um quebra-cabeça em que cada axioma é uma peça. Gödel concluiu que esse quebra-cabeça sempre terá uma falha: ou será incompleto, ou dará origem a contradições. (João Montanaro/Superinteressante)

P

ense na seguinte frase: “Esta afirmação é falsa”. Se ela for mesmo falsa, isso significa que ela é uma afirmação verdadeira. Mas se ela é verdadeira, como pode ser falsa? Esse é um paradoxo linguístico. Uma brincadeira com as palavras que dá um nó cego no raciocínio. 

A prova dos teoremas de Gödel se baseia em um equivalente matemático de uma frase assim. A grande sacada foi criar uma sequência de símbolos, que, traduzida para a linguagem falada, significa “esta afirmação não pode ser provada.” O mais natural é pensar que “esta afirmação não pode ser provada” é uma afirmação falsa. Afinal, tudo pode ser provado. Essa era a crença de Hilbert nos axiomas. Então, vamos partir da premissa de que a afirmação seja falsa.

Aqui reside a armadilha de Gödel. Se a afirmação fosse mesmo falsa, isso significaria que pode ser provada. Mas nós sabemos que ela não pode. Afinal, a afirmação diz “esta afirmação não pode ser provada”. Se ela não pode ser provada, então não pode ser falsa. Portanto, só pode ser verdadeira. 

Esse é o primeiro teorema de Gödel: qualquer sistema de axiomas suficientemente rico para sustentar a aritmética conterá uma afirmação verdadeira que não pode ser provada no próprio sistema. Isso torna a aritmética incompleta. Nós só sabemos que a afirmação é verdadeira porque Gödel dá a volta “por fora” do sistema. 

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Pense nos axiomas como chaves de vários tipos: chave de fenda, chave phillips, chave allen etc. Essas chaves permitem apertar vários parafusos diferentes. Os parafusos são os teoremas. Se você tem uma chave que aperta o parafuso tal, isso equivale a dizer que você pode provar um teorema a partir desse axioma. O que Gödel fez equivale a forjar um parafuso em que nenhuma chave se encaixa. Veja bem: o parafuso existe. Você pode pegá-lo na mão. Mas é impossível apertá-lo com qualquer chave conhecida. 

Você pode pensar: mas eu não posso simplesmente mandar fazer uma chave nova, adequada ao parafuso? Ou seja: eu não posso transformar essa afirmação que não pode ser provada em um axioma? Afinal, os axiomas são justamente os tijolinhos básicos da matemática, que não exigem prova. Gödel previu essa objeção. Por isso, armou a prova de um jeito que torna esses ciclos autorreferenciais inescapáveis: sempre dá para preparar um novo parafuso, não importa quantas chaves se adicione.

A prova de Gödel

A seguir, uma simplificação da prova do 1º teorema, com fins didáticos.

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1. Todo brasileiro tem um número de RG e de CPF. Do mesmo jeito, seu computador representa cada foto, vídeo ou texto em código binário. Atribuir números a coisas é algo bastante comum. A primeira sacada de Gödel foi que ele podia atribuir números a afirmações matemáticas. Usar números para falar dos próprios números.

2. Para realizar a tarefa, Gödel usou uma tabela parecida com a que mostramos abaixo. Com a tabela, ele era capaz de transformar qualquer afirmação na linguagem matemática em uma sequência de números. Vamos usar um exemplo bobo para ilustrar: a afirmação “zero é igual a zero” se torna o código 656.

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3. Gödel faz certas operações em cima desse código inicial, 656. Não precisamos descrevê-las. O intuito de Gödel é permitir que afirmações com certas relações entre si (como um teorema e os axiomas que o provam) se tornem códigos que preservam essas relações. É uma criptografia, essencialmente. 

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4. Usando os elementos da tabela à esquerda, Gödel cria uma afirmação matemática que significa algo como “essa afirmação não pode ser provada”. Essa afirmação, como qualquer afirmação, tem um código de Gödel só dela. Esse código é imenso, então não vamos escrevê-lo aqui. Vamos chamá-lo simplesmente de G. 

5. Gödel pega essa afirmação G e a insere nela mesma. Ficamos com:

“A afirmação G não pode ser provada.” 

6. Suponha que ela seja falsa. Se for falsa, vale o oposto do que ela diz. Ou seja: que ela pode ser provada. Então, vamos olhar a afirmação G para ver se é mesmo possível prová-la. Ops! A afirmação G é justamente…

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 “A afirmação G não pode ser provada.”

Você fica preso num loop. É um beco sem saída. A afirmação não pode ser falsa. Se fosse, seria possível prová-la. Isso significa que ela só pode ser verdadeira.

7. Portanto, qualquer sistema de axiomas suficientemente rico para sustentar toda a aritmética conterá uma afirmação verdadeira que não pode ser provada. Eis o 1º teorema de Gödel. A aritmética é o ramo mais básico da matemática, que trata de somas, subtrações, multiplicações. E mesmo ela está sujeita a esse tipo de paradoxo.

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O significado

É tentador pensar em Gödel como um mensageiro do caos, que encontrou um buraco na aritmética para incomodar Hilbert e outros dinossauros de uma geração mais certa de si. 

Mas a verdade é que Gödel está mais para um terapeuta: a aritmética já carregava consigo essa limitação. Hilbert é que não soube percebê-la. “A demonstração de Gödel é algo que a aritmética diz sobre ela mesma”, explica a matemática Rosemeire Batistela, da UEFS – que dedicou seu doutorado a criar estratégias para ensinar Gödel a professores de matemática em formação. “A mensagem é de vigor, de que as coisas não estão terminadas. Ela acabou com uma ilusão.”

Os teoremas de Gödel levantam a possibilidade de que algumas conjecturas e hipóteses que os matemáticos estão tentando provar neste exato momento –  como a famosa hipótese de Riemann, cuja prova será recompensada com US$ 1 milhão – possam não ter prova. 

Gödel, naturalmente, não é capaz de nos dizer quais são essas conjecturas. É impossível saber se estamos ou não nos dedicando em vão a alguma delas.  Em um vídeo do canal Numberphile, no YouTube, o matemático Marcus du Sautoy, de Oxford, explica que um jeito bizarro de provar a hipótese de Riemann seria ao estilo Gödel: provar que ela não pode ser provada. Essa não chega a ser uma perspectiva paralisante, que impede os matemáticos de trabalhar. Está mais para um lembrete de humildade. 

Um jeito bizarro de provar a hipótese de Riemann seria ao estilo Gödel: provar que ela não pode ser provada.

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O fim

Não podemos talhar a peça que falta? Um novo axioma? Gödel prova que não: para cada peça que se cria, surge um novo buraco. A matemática é uma obra fadada a possuir uma lacuna.
Não podemos talhar a peça que falta? Um novo axioma? Gödel prova que não: para cada peça que se cria, surge um novo buraco. A matemática é uma obra fadada a possuir uma lacuna. (João Montanaro/Superinteressante)

Gödel costumava ir e voltar do escritório a pé, conversando com Einstein, todos os dias – e essa era basicamente sua única interação social nos EUA. Einstein, já velhinho, andava decepcionado com seu próprio trabalho – e comentou que sua única motivação para ir ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton, no fim de sua carreira, eram os papos diários com Gödel no caminho. Em 1955, quando Einstein morreu, Gödel se isolou completamente, consumido pela depressão e paranoia.

Seu único amor foi Adele Porker – uma vienense divorciada sem educação formal, recepcionista durante o dia e dançarina de cabaré durante a noite. Adele era seis anos mais velha e muito mais pobre que Kurt, e o único ato de rebeldia do rapaz foi pedi-la em casamento, sob protesto de sua família conservadora. Eles passaram 45 anos juntos. Em 1977, Adele adoeceu e passou seis meses internada. Kurt, idoso e com a saúde mental definhando, só comia alimentos preparados por ela – tinha adquirido um medo irracional de ser envenenado. Ele morreu de desnutrição em 14 de janeiro de 1978, com 71 anos, pesando 29 kg.

Fontes:livros Incompletude, de Rebecca Goldstein, e A Prova de Gödel, de Ernest Nagel e James Newman; vídeo “Gödel’s Incompleteness Theorem”, no canal Numberphile, com o matemático Marcus du Sautoy, de Oxford;texto “How Gödel’s Proof Works” na Quanta; Rosemeire de Fátima Batistela, educadora matemática, UEFS.

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