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História

Os líderes da Revolução Russa

O comandante das forças revolucionárias que foi transformado em inimigo da causa bolchevique.

por Leonardo Pujol, Andreas Müller e Ricardo Lacerda Atualizado em 17 ago 2020, 19h01 - Publicado em 24 abr 2018 16h39

Trotsky: o profeta controverso

1879-1940. Para uns, ele foi o herói da odisseia Bolchevique. Para outros, um revolucionário violento e cruel

Nos arredores da Cidade do México fica Coyoacán, um lugarejo cheio de casinhas coloridas e praças arborizadas. Um dos 16 distritos da capital mexicana, essa foi a região onde Leon Trotsky viveu até o fim dos seus dias. À época, sua rotina parecia tão entediante quanto a dos coyoaquenses. Bem cedo, levantava para cuidar dos cactos, dos coelhos e das galinhas. Terminadas as tarefas, Trotsky se trancava no escritório para ler, escrever ou receber militantes ávidos por discussões políticas. Sustentava a família — a segunda esposa, Natalia Sedova, e o neto, Esteban Volkov — com os rendimentos dos livros e dos artigos que escrevia para jornais.

Por trás da aparente tranquilidade, porém, Trotsky era um homem receoso. Antes de se mudar para o México, o ex-revolucionário havia sido duramente perseguido por Josef Stalin. Seus parentes também — a maioria foi morta a mando do ex-colega. Desconfiado e, ao mesmo tempo, abalado emocionalmente, Trotsky preferia viver recluso. “O fim evidentemente está próximo”, pressentiu, numa espécie de testamento redigido em fevereiro de 1940. Ele morreria seis meses depois, aos 60 anos.

Trotsky: o profeta controverso

O camponês rebelde

Leon Trotsky nasceu Lev Davidovich Bronstein, em 7 de outubro de 1879, na cidade de Ianovka, Ucrânia. Seus pais eram agricultores e, embora descendentes de judeus, pouco afeiçoados à religião. Evitavam o iídiche, o idioma das comunidades judaicas da Europa Oriental, preferindo uma mistura de russo com ucraniano. A família criava porcos e galinhas, mas vivia principalmente da produção de trigo — plantio desenvolvido com o auxílio de alguns poucos empregados. Fora isso, a infância de Liova (diminutivo de Lev) foi a de um modesto camponês. Pelo menos até os 9 anos, quando, para estudar, foi viver com os tios em Odessa, região mais povoada que Ianovka.

“Pouco a pouco, ensinaram-me que era preciso dizer bom-dia pela manhã, lavar as mãos, limpar as unhas, não levar a comida à boca com a faca, não se atrasar, agradecer”, Trotsky relembra em Minha Vida, um de seus livros. Aliás, foi justamente em Odessa que ele conheceu a literatura, bem como a música e o teatro — as particularidades da vida urbana.

O LEGADO: Ainda hoje, muitos partidos políticos se inspiram na obra de Trotsky. Há organizações trotskistas espalhadas em países como Argentina, Espanha e até mesmo no Brasil, como o PSTU.
O LEGADO: Ainda hoje, muitos partidos políticos se inspiram na obra de Trotsky. Há organizações trotskistas espalhadas em países como Argentina, Espanha e até mesmo no Brasil, como o PSTU. (Лев Давидович Троцкий/Domínio Público)
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Aos 17 anos, o rapaz de cabelo desgrenhado, olhos azuis e óculos redondos foi transferido para outra escola, na cidade de Nikolaiev. Lá, interessou-se pelo marxismo — ao frequentar grupos críticos ao czar. Aos 18, tornou-se líder de uma das agremiações — o Sindicato dos Trabalhadores do Sul da Rússia, que reunia serralheiros, marceneiros, eletricistas, costureiras e estudantes. Como era de se esperar, a organização incomodou as autoridades. Em 1898, prestes a fazer 20 anos, Trotsky e outros membros do sindicato foram aprisionados. Nos meses seguintes, ele passou por presídios em Kerson e Odessa até chegar a Moscou, onde se casou com Alexandra Sokolovskaia – uma marxista dos tempos de Nikolaiev. Condenado ao exílio na Sibéria, ele e a mulher viveram em Ust Kut, uma aldeia apinhada de cabanas sujas e infestadas por mosquitos. No exílio, além de se tornar pai de duas meninas, Trotsky aprofundou o conhecimento nas obras de Friedrich Engels e Karl Marx. Em 1902, abandonou Alexandra e as filhas e fugiu com uma identidade falsa. Foi aí que ele adotou o nome pelo qual seria conhecido para sempre e que, segundo ele próprio, pertencia a um carcereiro da prisão de Odessa.

Em 1903, refugiado em Londres (trabalhando para o Iskra, jornal dirigido por Vladimir Lenin e cujo nome significa “fagulha”), casou-se com Natalia Sedova — com quem teve outros dois filhos. Dois anos depois, retornou à Rússia. Popular entre os militantes do Partido Operário Social-Democrata Russo (por ter sido um dos líderes no passado), ele rapidamente assumiu o Soviete de Petrogrado. Seu discurso era de que uma “revolução permanente” estava prestes a acontecer — profecia que viria a se concretizar 12 anos depois.

Em dezembro de 1905, a polícia invadiu a sede do Soviete e prendeu todos os líderes do partido, incluindo Trotsky. No fim do ano seguinte, novamente banido para a Sibéria, ele fingiu-se doente durante a viagem e escapou. Abrigou-se primeiro em Viena; depois, cruzou o Atlântico rumo a Nova York. Lá, retomou a vida de jornalista e se uniu aos mencheviques, “minoritários” que faziam uma leitura moderada do marxismo — batendo de frente contra os bolcheviques, “maioria” sob a liderança de Lenin que acreditava que o governo deveria ser diretamente controlado pelos trabalhadores. No entanto, com o passar dos anos, Trotsky divergiu e se afastou dos mencheviques. Em 1917, aos 37 anos, ele desertou e se aliou oficialmente aos bolcheviques.

Um líder astuto

Ao tomar conhecimento da revolução contra o czar, em março de 1917, Leon Trotsky retornou (de novo) para a Rússia. Quando chegou a Petrogrado, não demorou para ser alçado à presidência do Soviete. Valendo-se do prestígio e da influência que tinha nas massas, passou a conspirar contra o comando provisório. Em outubro, quando o governo foi à bancarrota, Trotsky assumiu o Comitê Militar Revolucionário.

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Sua primeira ordem foi o recrutamento de camponeses e veteranos (ex-czaristas) para o chamado Exército Vermelho, a fim de deter forças contrárias à revolução. Pelos três anos seguintes, era o próprio Trotsky quem comandava os soldados contra as forças estrangeiras e o Exército Branco (mencheviques, em sua maioria). Suas viagens eram feitas a bordo de um célebre trem blindado vermelho — um verdadeiro quartel-general sobre trilhos com secretaria, estação telegráfica, centro de rádio, biblioteca e até garagem para automóveis. Entre 1918 e 1921, estima-se que a locomotiva tenha percorrido cerca de 105 mil quilômetros, o suficiente para dar quase três voltas ao redor da Terra, transportando tropas, armas e provisões.

TURISMO REVOLUCIONÁRIO: A última casa em que Trotsky viveu, em Coyoacán, virou museu — o Museo Casa de Leon Trotsky, mantido pelo único parente próximo ainda vivo: o neto Esteban, de 91 anos.
TURISMO REVOLUCIONÁRIO: A última casa em que Trotsky viveu, em Coyoacán, virou museu — o Museo Casa de Leon Trotsky, mantido pelo único parente próximo ainda vivo: o neto Esteban, de 91 anos. (Tonatiuh101/Creative Commons)

Durante esses três anos de “comunismo de guerra”, Trotsky foi um líder aclamado entre as massas. Muitos, inclusive, o consideravam o verdadeiro herói da Revolução Bolchevique. Já outros, até mesmo do próprio partido, o consideravam autoritário e impiedoso. Certa vez, em meados de 1919, um professor reclamou que os habitantes de Moscou estavam morrendo de fome. Ao que Trotsky respondeu: “Isso não é fome. Quando Tito tomou Jerusalém, as mães judias comeram seus filhos. Quando eu fizer as mães comerem os filhos, aí você pode me dizer: ‘Estamos morrendo de fome.'” Já em seu livro Terrorismo e Comunismo — o anti Kautsky, Trotsky justifica o uso de terror para colocar o Partido Comunista à frente de tudo e de todos. “Quem deseja o fim não pode condenar os meios.”

Em paralelo ao Comitê Militar, Trotsky assumiu o Politburo, o órgão executivo encarregado de decisões imediatas. Posteriormente, tornou-se comissário das Relações Exteriores. Sua obsessão era espalhar o movimento comunista por todo o mundo, plano não endossado pelos homens fortes do partido. Os embates ficaram mais contundentes, sobretudo após o advento da União Soviética, em 1922.

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Com a morte de Lenin, em 1924, as coisas pioraram. Visto como fonte de desagregação e “eterno menchevique”, ele perdeu a liderança para Stalin. Em seguida, foi destituído do comissariado e proibido de falar em público. Julgado por traição, em 1927, Trotsky foi expulso do Partido Comunista e expatriado pela terceira — e última — vez.

Golpe fatal

Destruído pela máquina que ele próprio construíra, Trotsky foi perseguido por Stalin, o algoz que vitimou quase toda a sua família – restando apenas a esposa, Natalia, e o neto Esteban. Obrigados a se refugiar, os três passaram por países como Turquia, França e Noruega. Sensibilizados, os pintores comunistas Diego Rivera e Frida Kahlo apresentaram ao governo mexicano um pedido de asilo para Trotsky e sua família. O clamor foi atendido em 1937. Foi aí que eles se estabeleceram em Coyoacán: primeiro, na casa dos artistas; depois, em um casarão a poucas quadras dali — Trotsky havia traído Natalia (e a confiança de Rivera) com Frida.

Em maio de 1940, atiradores stalinistas invadiram sua casa. Por sorte, ele sobreviveu. Três meses depois, em 20 de agosto, outro agente se infiltrou no convívio com Trotsky — apresentando-se como simpatizante. Escondendo uma pequena picareta por debaixo do casaco, o assassino surpreendeu Trotsky na biblioteca, desferindo um golpe no crânio. Gravemente ferido, o líder bolchevique chegou consciente ao hospital. Horas depois, sem sinal de melhora, resignou-se: “Dessa vez, eles conseguiram”. Trotsky faleceu no dia seguinte.

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Quem matou Trotsky?

“O grito que ele deu eu jamais esquecerei.” As palavras são de Ramón Mercader, assassino confesso de Trotsky, em depoimento à polícia. Sua identidade foi mantida em segredo pelos 20 anos em que cumpriu pena (máxima) no México. Ele jamais admitiu ligação com a URSS. Mesmo assim, após ser solto, Mercader foi recebido pela Rússia e secretamente condecorado como herói da União Soviética. Morreu em 1978, aos 65 anos, em Cuba.

PARA SABER MAIS
Trilogia Trotsky: O profeta armado, 1879-1921; O profeta desarmado, 1921-1929; e O profeta banido, 1929-1940. De Isaac Deutscher (Ed. Civilização Brasileira).

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Lenin: o intelectual vingador

1870-1924. Entenda quem foi o homem que transformou as ideias abstratas de Karl Marx em um projeto ideológico capaz de alçar o proletariado ao poder na Rússia — e em outras partes do mundo

Entre conhecidos, Vladimir Ilyich Ulyanov era um sujeito simples e pouco dado à vaidade. Usava roupas sóbrias e mantinha hábitos modestos: gostava de andar de bicicleta e de pescar — e tinha uma predileção especial por gatos. O escritor Maximo Gorki, um amigo de longa data, descrevia-o como “um homem russo como outro qualquer, que sequer dava a impressão de ser um líder”. Perante os camaradas, no entanto, Ulyanov se transformava em Lenin: líder enérgico, comandante impiedoso — e um dos personagens mais icônicos do século 20.

Quando Lenin nasceu, em 22 de abril de 1870, a obra de Karl Marx era pouco conhecida fora da Alemanha. Contraditoriamente, ele era filho de tudo que acabaria lutando contra — um inspetor escolar com uma mulher de origem burguesa rural, ambos czaristas e conservadores. Nascido em Simbirsk (que em 1924 seria renomeada para Ulianovsk, em sua homenagem), cresceu em uma família de classe média alta que acreditava na educação como a única forma de ascensão social. Até a vida adulta, manteve-se neutro sob o ponto de vista ideológico. Mas um acontecimento traumático mudaria tudo.

Lenin: o intelectual vingador

Ativista de esquerda, Alexander Ulyanov era o irmão mais velho de Lenin e membro de uma milícia conhecida como Pervomartovtsi. Ele foi enforcado pela elite russa em março de 1887, acusado de tramar o assassinato do czar Alexandre III. Lenin tinha 17 anos no dia da execução — e nunca mais foi o mesmo depois dela. A partir daí, adotou o fim do czarismo como meta de vida. No discurso, dizia sonhar com uma sociedade igualitária, formada por pessoas livres da tirania imperial e da burguesia. No íntimo, desejava vingar a morte do irmão.

Lenin se tornou um ativista radical. Mergulhou em livros revolucionários e chegou a ser expulso da universidade (onde estudou Direito) por protestar contra o regime czarista. Até o final de sua vida, lutaria sem trégua contra os carrascos de seu irmão. E a inspiração para essa luta viria justamente dos livros de Marx, o filósofo alemão que vinha se destacando por denunciar a exploração dos trabalhadores pelas elites. Àquela altura, o marxismo era uma filosofia abstrata, baseada na crítica aos capitalistas e seu impacto na vida dos trabalhadores. Caberia a Lenin transformá-la em um projeto ideológico capaz de alçar o proletariado ao poder na Rússia — e também em outras partes do mundo.

As ideias de Marx vinham de países como a Inglaterra, a Alemanha e outras regiões avançadas da Europa Ocidental, onde estouraram as primeiras ondas da Revolução Industrial. Já a Rússia era um país agrário, com uma economia de ares feudais. Grandes fábricas ainda eram raras em território russo — o grosso da população trabalhava na agropecuária, no comércio e em atividades artesanais.

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Isso colocou Lenin numa sinuca de bico: como fazer a revolução num país onde o proletariado, tal como descrito por Marx, era tão escasso? A solução foi adaptar os textos marxistas à realidade local. Assim surgiu o marxismo-leninismo, uma ideologia pragmática, centralizadora e autoritária, feita sob medida para transformar um país atrasado em uma potência comunista.

Marxismo agrário

Marx dizia que a revolução só seria possível em um país industrializado, com trabalhadores organizados e imbuídos de “consciência de classe”. O comunismo seria a última etapa do próprio capitalismo, quando chegaria o momento em que o proletariado daria um basta à exploração — e pegaria em armas para derrubar seus opressores.

Lenin adicionou um novo elemento a esse raciocínio: para ele, era necessário que alguém guiasse as massas nessa revolução. Os trabalhadores deveriam se unir em um grande partido, que fosse capaz de se impor na luta contra as demais classes políticas. Para ser forte, esse mesmo partido precisaria ter alcance internacional, passando por cima de todas as diferenças que pudessem dividi-lo — étnicas, religiosas e até geográficas. Como proclamava o Manifesto do Partido Comunista, escrito por Marx e o teórico revolucionário Friedrich Engels: “Proletários do mundo: uni-vos!”.

A maior parte das ideias de Lenin surgiu longe da Rússia czarista. Visto como baderneiro, o futuro líder bolchevique foi mandado, em fevereiro de 1897, para a Sibéria, por onde passa o rio Lena (vem daí seu pseudônimo). Lá, ficou três anos e conheceu a esposa. Ao voltar, o revolucionário saiu pelo mundo. Passou duas décadas vivendo na Europa, entre países como Finlândia, Suíça, França e Polônia, com raras idas à pátria-mãe. Foi nesse período que se destacou como um teórico do marxismo.

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Lenin se tornou o principal editor do jornal Iskra, que divulgava o ideário do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Publicou textos, participou de conferências comunistas e conheceu seus futuros camaradas revolucionários. O primeiro encontro com Leon Trotsky ocorreu em Londres, por volta de 1902. E a primeira reunião com Josef Stalin foi na Finlândia, em dezembro de 1905.

Os movimentos socialistas já estavam em ebulição na Rússia — mas o clima entre eles não era lá muito amistoso. Em 1903, a cúpula do POSDR havia se reunido em Londres para definir quais seriam os critérios para admitir novos integrantes no partido. Não houve acordo: o evento terminou com uma rusga entre os moderados e os ortodoxos, que apoiavam a visão radical de Lenin. Aqui nasce a divisão entre bolcheviques e mencheviques. Lenin se tornou cada vez mais intolerante. Não admitia críticas ao partido e tampouco aceitava questionamentos a suas próprias ideias.

Na Rússia, o caldo engrossou em janeiro de 1905, quando cerca de 3 mil pessoas caminharam até o palácio imperial de São Petersburgo para reivindicar melhores condições de trabalho. Em vez de negociar, o czar mandou reprimir os manifestantes. Mesmo a distância, Lenin tratou de capitalizar essa insatisfação popular e elevou o tom. Passou a defender com ainda mais ênfase a insurreição armada, a destruição total da burguesia russa, a expropriação de terras e outras bandeiras que se tornariam dogmáticas na ideologia socialista.

Em 1917, quando a Revolução de Fevereiro finalmente estourou na Rússia, Lenin estava consagrado como o grande líder dos bolcheviques. A própria 1a Guerra Mundial era motivo de otimismo: para Lenin, o conflito abriria espaço para os comunistas tomarem o poder em toda a Europa. Não por acaso, ele fez questão de voltar para São Petersburgo (agora Petrogrado) tão logo soube que o czar havia sido deposto. Era sua deixa para tomar as rédeas da revolução que aconteceria poucos meses depois.

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O homem mais velho do mundo: corpo de Lenin ainda está em exposição na Praça Vermelha.
O homem mais velho do mundo: corpo de Lenin ainda está em exposição na Praça Vermelha. (Bruce Turner/Creative Commons)

O sonho vira pesadelo

Lenin governou a Rússia, transformada em União Soviética, de 8 de novembro de 1917 até 21 de janeiro de 1924. E não hesitou em cumprir o que havia prometido nos discursos e manifestos. As terras da Igreja e da nobreza foram expropriadas e redistribuídas entre os camponeses. A jornada de trabalho foi limitada a oito horas diárias. Um grande plano de educação e alfabetização foi lançado e novas leis foram criadas para garantir direitos iguais às mulheres. Não bastasse isso, conseguiu domar a inflação com sua Nova Política Econômica (NEP, na sigla em russo).

Com a “Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia”, Lenin também permitiu que cada etnia fundasse seu próprio Estado independente — desde que se mantivesse ligado à União Soviética. O sistema jurídico foi abolido e novos tribunais populares foram criados. As hierarquias do Exército foram suspensas e até os soldados passaram a ter o direito de eleger seus comandantes. Mas para muitos o sonho de Lenin foi um pesadelo.

Incapaz de tolerar a divergência, mandou dissolver os demais partidos e fechou órgãos de imprensa. Para fiscalizar os insurgentes, criou a Cheka, sigla que designava a “Comissão Extraordinária para Combater a Contra-Revolução”. Era uma espécie de polícia política com autonomia para agir à margem da lei — e de qualquer noção de direitos humanos. Em 1918, a Cheka deflagrou o “Terror Vermelho”, uma campanha de execuções que atingiu não só a burguesia, mas todos que ameaçavam se colocar no caminho da revolução — incluindo camponeses e operários, que Lenin antes dizia defender. Até hoje, os historiadores discutem quantos morreram nas mãos da Cheka. As estimativas vão de 10 mil até 140 mil russos.

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E isso foi só o começo. Lenin criou o Gulag, uma verdadeira estatal de extermínio de contrarrevolucionários. No livro The Cheka: Lenin’s Political Police, o historiador George Leggett estima que havia 315 Gulags em outubro de 1923, já na reta final do governo Lenin. Segundo o autor, pelo menos 70 mil pessoas foram aprisionadas e forçadas a trabalhar em regime de escravidão nesses campos. O número de mortos é incerto.

Lenin morreu aos 53 anos, de forma banal. Vítima de três AVCs, ficou mais de um mês sobre uma cadeira de rodas, incapaz de movimentar o lado direito do corpo. Quando faleceu, no dia 21 de janeiro, mais parecia um aristocrata do que um revolucionário. Estava deitado na cama e rodeado pelos amigos e familiares com quem dividia sua mansão, nos arredores de Moscou. Em seus últimos dias, recebeu visitas e fez de tudo para evitar que Stalin — um “bruto” — assumisse seu lugar. Em vão.

Exército de estátuas

Mais do que um líder, Lenin se tornou um ícone da Revolução Russa. Até a queda do Muro de Berlim, em 1989, era possível encontrar estátuas dele em muitos países, desde Cuba até a Coreia do Norte, passando pela Europa, África e leste da Ásia. Só na Ucrânia, estima-se que mais de 5 mil esculturas tenham sido feitas com o busto ou o corpo inteiro do revolucionário russo — uma delas, removida em março de 2016, tinha 20 metros de altura. Hoje, aqueles que sofreram sob a Cortina de Ferro se divertem vandalizando as estátuas do líder soviético. Há até blogs especializados em selecionar as melhores intervenções. Um dos destaques é a estátua de Odessa, no sul da Ucrânia, onde um artista local se deu o trabalho de transformá-la em outro personagem ilustre: Darth Vader. Desde 1924, o corpo de Lenin está em exposição na Praça Vermelha, em Moscou. A cada ano, o governo russo gasta o equivalente a R$ 690 mil para mantê-lo “como se estivesse vivo”. E há quem ache que não vale a pena bancar essa conta. Em uma pesquisa recente, 62% dos entrevistados afirmaram que preferem enterrar Lenin de uma vez por todas.

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Stalin: o monstro de aço

1878-1953. Ele derrotou Hitler, salvou o mundo do nazismo e transformou um país agrário em superpotência. Ao mesmo tempo, construiu campos de trabalho forçado, comandou massacres e condenou milhões de pessoas a morrer de fome

Em 1944, Serguei Eisenstein já era um cineasta renomado quando recebeu de Josef Stalin uma difícil missão: escrever e dirigir um filme sobre Ivan IV, o tirano que inaugurou a era dos czares russos, no século 16. Amante do cinema, o secretário-geral do partido comunista soviético enxergava a si próprio como o sucessor de “Ivan, o Terrível” — algo um tanto quanto contraditório para um leninista.

Mas a vida de Stalin seria marcada por contradições. Por um lado, o líder máximo soviético comandou a resistência que mudou os rumos da 2ª Guerra Mundial ao botar os nazistas para correr da URSS. Por outro, fez escolhas políticas que levaram à morte de pelo menos 20 milhões de pessoas — número que pode chegar, dependendo da fonte, a 40 milhões.

A personalidade inconstante já havia sido identificada por Lenin. Em sua carta-testamento, escrita em dezembro de 1922, o líder bolchevique expunha o receio com o que poderia acontecer caso Stalin fosse seu sucessor: “O camarada Stalin, tendo se tornado secretário-geral, tem autoridade ilimitada concentrada em suas mãos, e não tenho certeza de que sempre irá utilizá-la com prudência”.

Depois da morte de Lenin, em 1924, Stalin escondeu a carta, que só reapareceu na década de 1950, em meio à desestalinização capitaneada por Nikita Kruschev. Para Lenin, o nome de Trotsky — com quem comungava o ideal de revolução permanente — era o mais adequado para sucedê-lo. Mas acabou sendo Stalin, adepto ao socialismo de um só país, quem se tornaria o novo líder máximo da URSS.

Stalin: o monstro de aço

De padre a assaltante

Nascido em Gori, na Geórgia, em 1878, Iosif Vissarionovich Djugashvili só adotaria o famoso pseudônimo em 1913. Stalin, em russo, remete a “feito de aço”. E era assim que o jovem bigodudo se via: como um homem de aço, a despeito de seus mirrados 1,62 de altura. Filho de um sapateiro beberrão e de uma faxineira, o futuro revolucionário teve uma infância sofrida. Vítima de varíola, carregou marcas no pescoço e no rosto pelo resto da vida, além de ter nascido com duas deficiências físicas: o braço esquerdo 5 cm mais curto e dois dedos do pé colados. Foram esses fatores, aliados ao espírito de agitador, que motivaram sua dispensa do Exército quando ele se alistou para combater na 1ª Guerra.

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Adolescente, Stalin frequentou um seminário da Igreja Ortodoxa Russa em Tbilisi, capital da Geórgia. Foi lá que aprendeu o idioma russo e a pensar de maneira sistemática, lendo panfletos marxistas clandestinos e adquirindo consciência política. Tudo por conta do clima repressivo que o lugar impunha. Aos 20 anos, Koba, como era chamado pelos amigos, abandonou os estudos sacerdotais para abraçar a fé comunista — mais tarde, sua mãe confessou que preferia tê-lo visto padre. Seu plano, agora, era se empenhar pela revolução. Hierarquia, disciplina e luta de classes viraram expressões corriqueiras em seu dia a dia. Assim como incitar manifestações, espancar adversários e roubar bancos. Stalin chegou a ser preso e enviado para a Sibéria sete vezes. E foi no isolamento que desenvolveu algumas de suas características mais marcantes: a frieza e a autossuficiência.

O primeiro contato com Lenin aconteceu em 1905, e em pouco tempo cairia nas graças do líder bolchevique. Lenin se referia a ele como “o georgiano que nos consegue dinheiro”. Cabia a Stalin fazer o trabalho sujo em toda e qualquer ação revolucionária. Na posição de capataz de Lenin — e ainda que não fosse um intelectual como Trotsky —, Stalin ganhou respeito dentro do Partido Comunista.

Enterro de herói: funeral de Stalin levou milhões de pessoas às ruas de Moscou.
Enterro de herói: funeral de Stalin levou milhões de pessoas às ruas de Moscou. (Bundesarchiv, Bild 183-18686-0001/Creative Commons)

Terror velado

Após a morte de Lenin, a propaganda oficial e os órgãos de repressão atuaram duramente contra qualquer movimento de contrarrevolução. Agora comandada por Stalin, a URSS queria se consolidar como Estado unificado, combatendo o nacionalismo de todas as formas. Pouco afeito a longos discursos e fraco de oratória, Stalin costumava dizer que qualquer problema poderia ser resolvido com o uso da força. Era o que acontecia, por exemplo, com os camponeses, vistos como capitalistas rurais que freavam a revolução. A solução era expulsá-los de suas terras e enviá-los a fazendas coletivas, cidades industriais ou mesmo a campos de trabalho forçado, os Gulags.

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Ao fim dos anos 1920, a prosperidade ucraniana, a autonomia cultural do país e a resistência de seus agricultores levaram Stalin a condenar pelo menos 5 milhões de pessoas à morte pela fome. Isso porque, entre 1932 e 1933, ele ordenou a proibição da compra, troca ou venda de alimentos, num evento que ficou conhecido como holocausto ucraniano.

Para industrializar a URSS, Stalin deu início, em 1928, a uma série de planos quinquenais. Com projetos grandiosos, como a construção de canais, represas, ferrovias e formação de grandes indústrias, a URSS logo entraria na era moderna. Enquanto o resto do mundo sofria com a recessão histórica da quebra da bolsa de Nova York, em 1929, a economia soviética cresceu 2.425% entre 1928 e 1937. Tamanha expansão só seria obtida pagando um alto preço: o trabalho escravo. Os Gulags abrigavam centenas de milhares de pessoas. Considerados criminosos e “inimigos do Estado”, os trabalhadores desses locais se resumiam a qualquer um que não agradava ao regime — camponeses, presos políticos, intelectuais e pessoas de outras etnias. A brutalidade stalinista também ganharia destaque com os expurgos, iniciados em 1934 com a finalidade de identificar membros do partido que não se mostravam suficientemente militantes ou leais.

Quem, em algum momento, tivesse discordado de Stalin poderia agora ser preso, julgado e fuzilado — mesmo que por uma trivialidade. O próprio ditador costumava deleitar-se assistindo aos chamados “julgamentos de fachada”, usados para convencer o povo de que havia inimigos por toda parte. Em muitos casos, antigos camaradas eram torturados e obrigados a confessar conspirações das quais nunca participaram. “Stalin exigia apoio incondicional e sem discussão, e muitas mudanças em suas posições políticas nunca seriam explicadas”, escreve o historiador Zhores Medvedev, autor de Um Stalin Desconhecido.

Estima-se que Stalin tenha assinado de próprio punho a execução de 41 mil pessoas. Além disso, autorizou o envio de pelo menos 8 milhões aos Gulags. Qualquer indivíduo era um suspeito em potencial: oficiais das forças armadas, membros do comitê central, dirigentes empresariais, cientistas, escritores e até mesmo amigos próximos. Entre suas vítimas estiveram Grigori Zinoviev e Lev Kamenev, com quem Stalin compartilhou a Troika — o triunvirato que sucedeu Lenin. Não raro, o “Vojd” — líder, equivalente russo ao alemão “Führer” — era visto nos enterros daqueles que ele mesmo mandara executar.

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Camarada “de família”

No dia 8 de novembro, em 1932, o Kremlin oferecia um banquete para celebrar os 15 anos da Revolução quando as recorrentes brigas entre Stalin e a esposa, Nadeja Alliluyeva, chegaram ao ápice. A discussão, na frente de todos, culminou com o suicídio da mulher na manhã seguinte. “Ela partiu como um inimigo”, teria dito Stalin. Filha de um revolucionário, Nadeja foi confidente de Lenin e não se conformava com a política conduzida pelo marido. Antes disso, Yakov, filho de Stalin com a primeira esposa, também havia tentado se matar depois de uma briga com o pai. Ao ver o jovem ferido, Stalin teria exclamado: “Não consegue sequer atirar direito!”. Anos depois, na 2ª Guerra, Yakov morreria nas mãos dos nazistas. Stalin deu de ombros.

Depois da morte de Nadeja, com quem teve outros dois filhos — Vasili e Svetlana, a sua predileta —, o tirano viveu recluso, passando a maior parte do tempo na dacha de Kuntsevo. A casa de veraneio, nos arredores de Moscou, tinha 20 aposentos e contava com biblioteca, jardim de inverno e solário. Insone, Stalin costumava ler documentos oficiais até altas horas da madrugada — especialmente durante a 2ª Guerra, quando trabalhava 15 horas por dia. Com o tempo, e ainda mais depois da guerra, a paranoia e a desconfiança em relação até mesmo aos mais íntimos só aumentariam. Como um déspota à moda antiga, exigia que sua comida fosse provada por outra pessoa para se certificar de que não estivesse envenenada.

Stalin envelheceu solitário e desolado, mas sempre temido. Em fevereiro de 1953, aos 73 anos, não resistiu a um derrame. A imagem de herói do povo alçou o ditador a duas indicações ao Nobel da Paz. E assim ele foi visto até 1956, quando Nikita Kruschev apresentou à cúpula do partido os arquivos secretos do stalinismo, expondo ao mundo a face desumana daquele que foi o mais contraditório estadista do século 20.

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Muy amigo

Serguei Kirov era considerado um possível sucessor de Stalin, a quem era extremamente leal. Em 1934, sua popularidade crescia quando recusou um convite feito diretamente pelo chefe para trabalhar em Moscou. Poucos meses depois, Kirov seria assassinado por um desconhecido, que jamais explicou a motivação do crime. Começava, então, o chamado Grande Expurgo, uma política de perseguição radical a quem não estivesse em sintonia com o regime. Dos 139 delegados do Partido Comunista, 98 seriam executados, além de 13 dos 15 generais do Exército Vermelho e milhares de oficiais de alta patente. Detalhe: ao que tudo indica, a morte de Kirov foi arquitetada por Stalin a fim de se manter isolado no poder.

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