Entenda por que, mesmo tendo recursos naturais valiosíssimos, a África continua pobre – e a luta dos países para deixar esse passado para trás.
Texto: Carol CAstro | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images
Em janeiro de 1960, Harold Macmillan, primeiro-ministro da Inglaterra, declarou: não havia mais como evitar a independência dos países africanos. “O vento da mudança está soprando pelo continente e, quer queiramos ou não, esse crescimento da consciência nacional é um fato político”, disse ao declarar a retirada de seu país do continente africano. Ele tinha razão.
Só nos três anos anteriores, oito países haviam se livrado do domínio europeu – a maioria era colônia da França. Após a onda nacionalista do pós-guerra, os africanos viviam a esperança de, enfim, traçarem sozinhos seus caminhos. Um a um, após o anúncio de Macmillan, os países anunciavam sua independência.
A economia e o momento histórico alimentaram o otimismo. Os preços de produtos exportados pelo continente, como café, cacau e minérios, andavam em alta. A maior parte das moedas africanas estava valorizada e poucas nações possuíam dívidas externas altas. E ainda havia tesouros a serem explorados – ouro, cobre, bauxita, gás, petróleo e urânio. Tudo isso em meio à Guerra Fria.
“A posição que cada novo Estado independente adotasse em suas relações com o Ocidente ou com o Oriente era vista como um assunto de importância crucial”, escreve Martin Meredith no livro O Destino da África. “A África foi considerada um prêmio valioso demais para se perder”, diz. Com tanto interesse, levou a melhor a potência (Estados Unidos ou União Soviética) que mais ofereceu subsídios, parcerias e empréstimos.
Tanto dinheiro fez a África prosperar. “O período entre 1960 e 1970, do ponto de vista econômico, não foi um fracasso para a maior parte desses países. Investiram quantias relevantes em educação, saúde e infraestrutura”, explica Muryatan Barbosa, doutor em História da África e professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC. “Vale lembrar que em educação, por exemplo, a África foi o continente que proporcionalmente teve os maiores investimentos do mundo nesse período”, completa. O PIB da maior parte dos países africanos cresceu em média 5% ao ano.
O fim da primavera
Em meio ao entusiasmo, surgiram os problemas. A maior parte dos novos governos havia apostado na industrialização. Só que ainda não havia mão de obra qualificada e faltava infraestrutura básica para escoar a produção (14 países não tinham qualquer ligação com o litoral). Havia novos hospitais, mas ainda faltavam médicos. Para piorar, com a aposta na indústria, a África deixou a agricultura de lado. E logo começou a faltar comida.
Não foi só a escolha econômica que deixou o continente em apuros. Com a criação forçada das fronteiras, uma porção de grupos étnicos se misturou em um mesmo continente. E as guerras civis para assumir o poder marcaram os anos seguintes. Para frear os conflitos e se manter no poder, os novos governos vetaram a criação de partidos e prenderam rebeldes – instalaram ditaduras. E a escolha de quais multinacionais poderiam ser instaladas lá passou a ser controlada por uma pequena e corrupta elite.
Em Gana, por exemplo, todos os ministros embolsavam 10% do valor de cada contrato fechado com empresas estrangeiras. Na Nigéria, fundos públicos paravam nas contas privadas dos políticos. E, no Congo, logo após a independência, o Parlamento aumentou em cinco vezes o salário dos deputados.
Guerras, corrupção e aumento do preço do petróleo minaram a economia de praticamente todo o continente nos anos 1980.
Cabiam a essa pequena elite todos os rumos do país. Eles escolhiam quem receberia os melhores empregos, bolsas de estudos ou a localização das fábricas. Os políticos acumularam milhões com o roubo de verbas públicas. Um estudo feito em 1964 indicou que, em 14 países africanos, a importação de bebidas alcoólicas havia sido seis vezes maior do que a de fertilizantes. Perfumes e cosméticos chegavam mais do que maquinários. E o número de carros importados foi cinco vezes maior do que o de equipamentos agrícolas.
Entre guerras e corrupção, quase toda a África entrou em decadência nos anos 1980 – situação ainda pior em países aliados a potências comunistas que, àquela altura, já não investiam em lugar nenhum. O continente também sofreu com o preço do petróleo, que aumentou os custos da produção agrícola. E a comida escassa não dava mais conta de alimentar a população, que não parava de crescer – de 1960 a 1990, o número de africanos passou de 200 milhões para 450 milhões. “Durante os anos 1960 e 1970, a África foi a única região do mundo em que a produção de alimentos per capita diminuiu”, conta Meredith.
Um novo colonialismo
A solução foi pegar dinheiro emprestado com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. No começo dos anos 1990, a dívida havia aumentado 30 vezes em apenas 30 anos. “Nenhum dos problemas da África independente foi mais determinante do que a instauração do neocolonialismo, iniciado com a crise das dívidas externas”, conta Barbosa. “Com o enfraquecimento dos Estados, em muitos países o caos social foi se impondo, levando o continente a extensas guerras civis, aumento da miséria, difusão da aids, genocídios étnicos etc.”, diz. Nesse período, os conflitos étnicos e religiosos mataram milhares de pessoas nas ex-colônias da Inglaterra.
Na década de 1990, a África parecia querer mais democracia. Uma série de países, como o Congo, permitiram a criação de novos partidos, por pressão popular. No fim das contas, os governantes se mantiveram no poder – não só por fraude nas urnas, mas também por terem enriquecido ao longo dos anos e possuírem dinheiro suficiente para comprar votos e investir em suas campanhas. “A gente precisa considerar também que a cultura africana é diferente. A vinculação e identificação com os líderes é muito importante. Por isso, os governos também se mantêm por anos”, diz Analúcia Danilevicz, coordenadora do Centro Brasileiro de Estudos Africanos.
A vida econômica do continente voltou a crescer nos anos 2000, quando a China entrou no jogo. Interessada no petróleo, cobre, alumínio, minério de ferro, cobalto, diamantes, madeira e urânio, o país trocou o acesso à matéria-prima africana por investimentos em infraestrutura. A África teve um boom de estradas, refinarias e ferrovias. De 2000 a 2010, o comércio entre os países do continente e a China cresceu e chegou a US$ 115 bilhões.
Nem todos os países sofrem com as mesmas tensões. Botsuana e Senegal, por exemplo, são democracias estáveis há 50 anos.
Mais uma vez, as elites se aproveitaram do momento para enriquecer ainda mais. Com um agravante: guerras se intensificaram na tentativa de controlar as matérias-primas cobiçadas pela China. “Os conflitos na Nigéria aumentaram ainda mais quando o PIB do país ultrapassou o da África do Sul. O (grupo radical) Boko Haram defende o discurso de islamização, mas seu interesse é nos recursos”, explica Danilevicz. “Embora tente se organizar, assim como acontece na Etiópia, Marrocos e Quênia, não parece haver a coesão nacional na Nigéria que existe nos países do Sul”, completa Barbosa.
Nem todo país africano, no entanto, sofre com as mesmas tensões. Botsuana e Senegal são democracias estáveis há 50 anos. A qualidade de vida dos habitantes da África Austral, no sul do continente, que se beneficiou do comércio com a China, também tem melhorado. “Existe um poder nacional mais coeso em vários desses países, por conta da relevância dos antigos partidos que lideraram os processos de descolonização, como no Zimbábue, Angola, Moçambique, Zâmbia, Tanzânia e África do Sul”, diz Barbosa. “Isso não quer dizer que todos os problemas africanos estão sendo resolvidos. Mas pelo menos existem ali elites dirigentes que podem fazê-lo se assim o quiserem”, conclui.
Galeria de ditadores
Quem foram os maiores carrascos do continente.
Mobutu Sese Seko
Zaire, 1965-1997
Em 1960, a República Democrática do Congo conquistou a independência da Bélgica. Eram tempos de Guerra Fria, e o primeiro-ministro Patrice Lumumba, simpatizante do comunismo, chamou a União Soviética para dar jeito nos conflitos étnicos do país. Aos 29 anos, o coronel Mobutu era contrário ao comunismo e ganhou a confiança dos EUA para derrubar Lumumba. Tornou-se presidente em 1965 e, com a proposta de criar um “novo Congo”, implantou um sistema político de um só partido e rebatizou as regiões do país com nomes étnicos.
O Congo virou Zaire. Por um tempo, deu certo. Só que ele decidiu tomar posse das riquezas do país. Numa jogada nacionalista, apreendeu quase 2 mil empresas estrangeiras e distribuiu entre amigos e familiares. Corrupto, Mobutu retirava dos cofres a quantia que bem entendesse. Enquanto isso, faltava comida, hospitais e escolas. Decreto atrás de decreto, manteve-se no poder até 1997, quando Laurent Kabila o tirou do poder. Morreu meses depois, de câncer, no exílio em Marrocos.
Omar Bongo
Gabão, 1966-2009
Ex-militar e ex-funcionário do Ministério das Relações Exteriores, assumiu o poder no Gabão após a morte de Leon M’ba, vítima de câncer e presidente do país até 1967. O país havia se tornado independente sete anos antes. Ainda assim, Bongo decidiu manter relações próximas com a França. Apostou no petróleo e na participação de vários grupos étnicos na política. E na corrupção e violência: dava um fim nos inimigos e oferecia vantagens às multinacionais em troca de agrados pessoais.
Aproximou-se dos países árabes e, em 1973, converteu-se ao islamismo e mudou o nome para El Hadj Omar Bongo Ondimba. Nos anos 1990, sob pressão, instaurou o multipartidarismo. Mas as urnas sempre foram contestadas – Bongo convocava eleições em cima da hora e mudava as regras do jogo. Morreu de câncer em 2009. Ali Bongo, filho de Omar, ocupa a presidência desde a morte do pai.
Robert Mugabe
Zimbábue, 1987-2017
Lutou pela independência de Zimbábue, uma das mais tardias da África, em 1980. Foi nomeado presidente em 1987. Fraude após fraude eleitoral, conseguiu se manter no poder. Um de seus maiores legados foi uma reforma agrária frustrada. Passou a tirar terras de brancos para entregar aos negros. Mas acabou distribuindo-as a familiares e membros do seu partido.
O Zimbábue deixou de ser um grande exportador de cereais, e a fome aumentou. Renunciou em 2017, quando demitiu o vice-presidente Emmerson Mnangagwa, em uma tentativa de entregar o cargo à esposa que, a seguir, assumiria a presidência. Os militares prenderam Mugabe em prisão domiciliar. Em 37 anos de poder, Mugabe deixou seus cidadãos 15% mais pobres.
José Eduardo dos Santos
Angola, 1979-2017
Aos 16 anos, entrou para o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que lutava pela independência de Portugal. Entre 1961 e 1970 ficou exilado em países vizinhos. Após o retorno, viu o país ganhar independência em 1975 e virou ministro das Relações Exteriores. Só chegou ao poder por acaso: com a morte do líder Agostinho Neto.
Ao longo de 27 anos, o país viveu em meio a uma guerra civil entre o MPLA e outros dois grupos, que só terminaria em 2002. Nos anos 1990, abriu o país para a democracia e economia de livre mercado. Foi eleito e transformou a Angola no segundo maior exportador de petróleo do continente, mas a população vive na miséria. Santos é acusado de ter uma fortuna bilionária oculta. Aposentou-se em 2017.
Teodoro Mbasogo
Guiné Equatorial, desde 1979
O país vivia em guerra sob o regime de Francisco Nguema, tio de Teodoro. Suspeita-se que Nguema fosse um psicopata: quase um terço da população foi morta na sua gestão. Teodoro decidiu dar um golpe de estado sangrento e jogou o tio num tribunal – foi condenado à morte. Teodoro fez uma reforma política e libertou opositores.
Mas, segundo a ONG Human Rights Watch, corrupção e repressão são a base do governo. Mbasogo acumulou uma fortuna – a Guiné é o terceiro maior exportador de petróleo da África. Segundo a revista Forbes, tem um patrimônio de cerca de US$ 600 milhões. Mas manteve a população na pobreza – 20% das crianças morrem antes dos 5 anos.
Paul Biya
Camarões, desde 1982
O camaronês começou a carreira política ainda nos anos 1960. Passou de cargo em cargo até chegar, em 1975, à nomeação de primeiro-ministro, que, anos depois, seria considerado o sucessor do presidente. Em 1982, Ahmadou Ahidjo abandonou a presidência, deixando o cargo para Biya. Ele permitiu o pluripartidarismo e convocou eleições, suspeitas.
Conhecido por hábitos luxuosos, Biya passa meses em um hotel cinco estrelas da Suíça com a esposa – um ultraje em um país onde um terço da população vive com menos de R$ 10 por dia. Apesar das críticas, Biya mudou as regras eleitorais, acabando com o limite de reeleições, e conquistou o sétimo mandato em outubro de 2018.
Gnassingbé Eyadéma
Togo, 1967-2005
Aos 25 anos, veterano de guerra pelo exército francês, liderou uma gangue de recrutas que matou a tiros o presidente Nicolas Grunitzky. E instaurou uma ditadura nacionalista. Acabou com a oposição, prendeu e torturou dissidentes. Obrigou todos os cidadãos a retomarem seus nomes africanos. Foi só na onda democrática dos anos 1990 que Eyadéma permitiu eleições.
Libertou do exílio e das prisões seus inimigos e apoiou a criação de novos partidos. Venceu a primeira eleição, sob suspeita, e outras duas – essas com menos suspeitas. Morreu em casa, de infarto, em 2005. Como herança, deixou ao país os prejuízos de empresas estatais mal geridas e quebradas pela corrupção.
Muammar Kadafi
Líbia, 1969-2011
Com apenas 27 anos, o capitão Kadafi liderou o movimento para depor, pacificamente, o rei Idris. E, assim, declarou-se presidente da Líbia. O país havia acabado de descobrir reservas de petróleo – e a expectativa era que se tornasse um dos mais ricos da África. Kadafi queria transformar a Líbia em uma potência. De 1970 a 1985, investiu pesado em seu Exército: US$ 29 bilhões, com mais de 700 aviões, submarinos e helicópteros. Envolveu-se em conflitos na Eritreia, Marrocos e Mali. E, por recusar interferências internacionais, sofreu sanções.
Nunca acreditou no poder das urnas, negando espaço a qualquer manifestação popular. Em 2011, com a Primavera Árabe, reprimiu de forma violenta as manifestações contrárias. Acabou capturado e morto por forças rebeldes, com o consentimento da Otan, aliança militar liderada pelos EUA.