1. "Rambo: Programado para Matar"
Honra ao mérito: o transtorno de um soldado na vida civil cria um ícone do cinema.
Talvez não dê para levar a sério as sequências que este filme teve – muito mais centradas nas lutas, tiros e explosões do que em contar uma boa história. Mas o primeiro “Rambo” tem tanto drama quanto ação. E não é pouco drama. Logo nas primeiras cenas vemos o herói de guerra John Rambo (Sylvester Stallone) descobrir que um antigo companheiro da época do Vietnã morreu de câncer, por exposição ao agente laranja durante a guerra. (Esse mix de herbicidas foi usado pelos Estados Unidos no conflito como “desfolhante”, a pretexto de destruir as selvas onde os vietcongues se escondiam. Mas acabou matando ou deixando doentes tanto vietnamitas quanto os próprios americanos.) Devastado com a notícia, Rambo sai caminhando sem rumo, deprimido. Mas bastam alguns minutos para ficar claro que o distúrbio mental do personagem vai além da depressão.
David Morrell, autor do livro no qual o filme foi baseado, afirmou que Rambo é a personificação de uma série de sintomas de estresse pós-traumático – um transtorno que ocorre quando a pessoa é vítima ou testemunha de atos violentos. E de fato veremos no ex-soldado distanciamento emocional, sensação de vazio e sentimento de impotência – ele verbaliza para o coronel Trautman, seu antigo comandante, que não consegue se adaptar à vida civil (“Antes eu podia pilotar um helicóptero, dirigir um tanque, era responsável por equipamentos de milhões de dólares, e aqui eu não consigo nem emprego de manobrista!”). Mas o sintoma que mais chama atenção no filme são as reexperiências traumáticas: quando o indivíduo tem flashbacks que o fazem reviver o episódio sofrido. Como se estivesse acontecendo de novo.
Pois são justamente esses flashbacks que vão acionar o lado máquina mortífera do veterano. Preso injustamente por um xerife de uma cidadezinha que implica com ele (Brian Dennehy), acusado de vadiagem, Rambo é provocado e agredido por um grupo de policiais na delegacia. E a violência o faz reviver as torturas que sofreu no Vietnã. Para azar da polícia. Sentindo-se acuado, Rambo tem um surto, dá uma surra nos guardas e foge para a floresta. E aí começa a perseguição que vai eternizar o perfil desse herói na cultura pop, com sua faca estilizada (feita especialmente para o filme), a bandana na testa, habilidades de escoteiro e um incrível instinto de sobrevivência.
Ficamos sabendo, então, que Rambo era um Boina Verde: membro de uma força de elite do Exército americano especializada em “guerra não convencional”, de combate a ações de guerrilha – como atuava o inimigo na selva vietnamita. Ou seja, a floresta é seu território – o que deixa a polícia em desvantagem. Quando Trautman tenta dissuadir o xerife de continuar a perseguição, ele coloca caça e caçador em seus devidos lugares: “Eu acho que você não entendeu. Eu não vim para salvar o Rambo de vocês. Eu vim para salvar vocês dele”.
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Há no personagem uma semelhança com o monstro de Frankenstein. “Criado” pelo coronel Trautman, que o recrutou e treinou para ser um instrumento letal de guerra, Rambo agora está à solta na sociedade. Busca aceitação, quer se integrar, mas os civis não sabem lidar com ele. E o comportamento civil também não constava do seu treinamento. “Os civis não são amigáveis”, ele conclui – numa das poucas vezes em que abre a boca.
Sim, Rambo é um filme de ação. E as cenas que entraram para a iconografia do cinema mostram um super-herói que costura uma ferida grande no próprio braço, joga-se da altura de um penhasco – sem quebrar nenhum membro do corpo – e tira um helicóptero de ação com uma pedrada. Mas o paradoxo do personagem, um Hércules destruído por dentro, dá à estreia de John Rambo nas telas uma complexidade que fez falta às suas sequências. E que ajudou a tornar este filme um clássico moderno.