No coração da África, mora uma espécie diferente de gorila: ela é maior e mais forte, vive em grandes altitudes – e se esconde dentro de uma mata quase impenetrável. Nossa repórter foi até lá conhecê-la.
Texto Fernanda Ezabella, de Ruanda | Edição Bruno Garattoni
Texto originalmente publicado pela Super em outubro de 2019
“Som precedeu visão”, escreveu a pesquisadora Dian Fossey sobre seu primeiro encontro com os gorilas-das-montanhas, em 1963. “E odor precedeu som na forma de uma fragrância forte de almíscar, algo humana.” “O ar foi de repente tomado por uma sequência de gritos estridentes, seguidos por batidas no peito rítmicas de um grande dorso- prateado, escondido atrás de uma parede impenetrável de vegetação.”
Essa descrição está no livro Gorillas in the Mist (“Gorilas na Névoa”), em que Fossey narra a vida de quatro famílias de gorilas nas montanhas vulcânicas Virunga, espalhadas pelas fronteiras de Ruanda, Uganda e Congo. Publicado em 1983, o livro se tornou best-seller e inspirou até um filme: Nas Montanhas dos Gorilas (1988), com Sigourney Weaver, indicado a cinco Oscars.
Em meus encontros com os gorilas-das-montanhas, numa floresta de Uganda com o sugestivo nome de Parque Nacional Impenetrável de Bwindi, em que a altitude varia de 1.200 a 2.600 metros, não vi nenhum deles bater no peito, não ouvi nenhum grito e não senti cheiro de almíscar. Várias vezes, os gorilas ficaram de costas para mim. Mas o primeiro contato foi um choque. Uma mancha escura e peluda se mexia no verde intenso das folhagens. E, aí, aconteceu.
Aparentemente cansado de comer as folhas ao seu redor, um enorme gorila-das-montanhas se pôs de quatro e desceu do morro em direção ao meu grupo, gerando pânico. Nosso guia começou a sussurrar nervoso “saiam, saiam, saiam!”. Ele girava seu facão no ar e pedia para sairmos da frente do animal.
Eu mal tinha onde pisar, tamanha a densidade da floresta. Fiquei atrapalhada no mesmo lugar, tentando empurrar os outros turistas para trás. Alguns segundos depois, o gorila veio com tudo: passou raspando na minha perna, com a cabeça na altura do meu quadril. Encolhi os braços, olhei para outra direção. Gelei. Mas ele não me deu a mínima. Continuou morro abaixo por mais alguns metros e se sentou justamente atrás de uma “parede impenetrável de vegetação”, como a descrita por Fossey.
“Um primata não-humano gentil, porém difamado”, escreveu ela, que considerava uma injustiça a maneira como as pessoas veem os gorilas – considerados animais extremamente violentos, à la “King Kong”. Na visão de Fossey, nada poderia estar mais distante da realidade. Os gorilas-das-montanhas nunca atacam sem motivo; só para se defender. A pesquisadora constatou isso na prática: sobreviveu a investidas assustadoras, em que os gorilas vinham para cima dela gritando, mas não atacavam de fato. Os animais sabiam que não estavam sob ameaça real; só não gostavam de ser surpreendidos. “Sempre achei os gorilas intrinsecamente gentis, e para mim seus ataques eram basicamente blefes”, escreveu Fossey.
Os estranhamentos aconteciam quando ela ou seus assistentes chegavam perto dos bichos sem avisar, coisa que logo aprenderam a não fazer: Fossey criou uma técnica de vocalização, imitando os grunhidos dos gorilas, que usava quando queria se aproximar. Já em situações de perigo real, a coisa é diferente. Os gorilas-das-montanhas são capazes de agir brutalmente contra animais rivais, caçadores e turistas sem noção. Um desses tentou pegar um gorila bebê para abraçar e foi atacado pelos pais. O turista, cuja história Fossey conta em seu livro, sobreviveu; mas ficou com “marcas profundas nas pernas e nos braços”.
No meu caso, depois do choque que senti ao quase ser atropelada por um gorila, veio o alívio – e a alegria. Isso porque as expedições para ver gorilas-das-montanhas são caras e extenuantes, com horas de caminhada em mata fechada e lamacenta, e sempre existe a possibilidade de não encontrar nenhum animal. Para fazer o passeio, é necessário obter uma licença específica, o que é feito por meio de uma agência de turismo, e escolher um dos três países africanos – Ruanda, Uganda ou Congo – onde se encontram os únicos gorilas-das-montanhas. Hoje, eles são cerca de mil, contra 273 nos anos 1970.
Os gorilas-das-montanhas têm pelos mais longos e grossos, para aguentar o frio. Os machos pesam em média 195 kg, contra 157 kg dos gorilas que vemos nos zoológicos.
Os gorilas são animais herbívoros naturais da África e estão divididos em subespécies. Os gorilas-das-montanhas (Gorilla beringei beringei) vivem em terras altas e são diferentes do gorila-do-ocidente (G. gorilla), que vive em baixas altitudes e é o mais comum no mundo – e nos zoológicos. Têm pelos mais longos e grossos, para aguentar o frio, braços mais curtos e peito mais estufado. São maiores e mais fortes: os machos medem 1,68 m e pesam em média 195 kg (contra 1,55 m e 157 kg dos gorilas comuns). As fêmeas também são fortes: medem 1,40 m e pesam 100 kg, contra 1,35 m e 80 kg das G. gorilla.
Humanos, chimpanzés e gorilas compartilham o mesmo ancestral: um primata que vivia no leste africano entre 22 e 32 milhões de anos atrás. Os animais que evoluiram e deram origem aos gorilas teriam se separado desse grupo há 9 milhões de anos. Mas pouco se sabe da separação entre os de terras baixas e grandes altitudes, já que os registros fósseis são raros.
Na pequena Ruanda, a licença para o trekking de gorilas-das-montanhas é a mais cara: US$ 1.500 por pessoa, sem contar acomodação e transporte. A atividade vem ajudando o país a se reinventar como destino turístico de luxo, aliviando a fama macabra do genocídio de 1994 (em que 500 mil a 1 milhão de pessoas, em sua maioria da etnia tutsi, foram assassinadas). Em Uganda, país vizinho ao Norte, custa US$ 600. No Congo, o valor é US$ 400, mas há um problema: o país tem a maior instabilidade política na região.
Na pequena Ruanda, a licença para o trekking de gorilas-das-montanhas custa US$ 1.500, sem contar acomodação e transporte. Em Uganda, país vizinho, sai por US$ 600.
Após fugir do Congo por conta da guerra civil, em 1967, Fossey recomeçou suas pesquisas num acampamento montado nas encostas dos vulcões de Virunga, do lado de Ruanda. É ali que ela está enterrada: foi assassinada, em 1985, na cabana em que vivia. O crime, que nunca foi resolvido, provavelmente está ligado aos esforços radicais da pesquisadora para preservar a população de gorilas-da-montanha. Ela expulsava os nativos que traziam animais para pastar nos territórios dos gorilas e botava fogo nas cabanas de caçadores, alguns dos quais chegou a sequestrar e espancar.
A visita ao túmulo de Fossey é organizada pelo Parque Nacional dos Vulcões, a 115 km da capital de Ruanda, Kigali. A licença custa US$ 75, e a caminhada é intensa: são duas horas, com muita subida íngreme e lama. Porém, há chances de avistar gorilas pelo caminho e, raramente, até elefantes. Fossey descansa ao lado de seu primata favorito, Digit, e outros 25 mortos em circunstâncias diversas e frequentemente horripilantes (Digit, por exemplo, teve as mãos cortadas após ser morto, pois os caçadores queriam transformá- las num souvenir).
Do acampamento, que foi apelidado de Centro de Pesquisa de Karisoke e chegou a ter 12 cabanas, só sobraram ruínas e vestígios de algumas chaminés, tudo tomado pela vegetação. Discípulos de Fossey até continuaram as pesquisas após a morte dela, mas o local foi destruído e reconstruído algumas vezes na esteira das turbulências políticas dos anos 1990. Em 2018, estrelas de Hollywood se alinharam à causa e levantaram dinheiro para construir um novo centro, bem maior e mais perto das montanhas. Deve ficar pronto em 2021.
Dian Fossey chegou à África em 1963 sem nenhuma experiência com animais selvagens: ela tinha estudado um pouco de veterinária na Universidade da Califórnia, e trabalhado como terapeuta ocupacional em hospitais. Mas seu entusiasmo ganhou a confiança do antropólogo Louis Leakey, que a ajudou a conseguir financiamento para os estudos. Ele fez o mesmo com Jane Goodall e Birutė Galdikas, pesquisadoras que ficariam famosas por seus trabalhos com chimpanzés e orangotangos.
Minha expedição para ver os gorilas-das-montanhas parte de Bwindi, em Uganda. O motorista que me leva de Kigali (capital de Ruanda) até lá, uma viagem de quase cinco horas de carro, desfia histórias de gorilas, ou talvez “de pescador”. Fala de um turista “abençoado” por um gorila: o animal supostamente veio na direção do grupo, parou na frente do sujeito e pegou na sua mão. Também conta o causo do bebê gorila que teria brincado entre as pernas de uma sueca de quase dois metros.
A estrada em Ruanda é bem arrumada, limpa e sem buracos, mas há ultrapassagens perigosas e caminhões poluidores. A população anda a pé no acostamento, indo e vindo das lavouras de batata e mandioca que apinham as montanhas. Nos domingos, colocam suas melhores roupas para visitar igrejas e familiares. Um detalhe curioso, para brasileiros, são os bares de beira de estrada – cujas fachadas são cobertas por anúncios da cerveja Skol.
Ao atravessar a fronteira para Uganda, as propagandas passam a ser de marcas locais. Na imigração, é preciso lavar as solas do tênis e fazer um check-up superficial, numa tenda, para não transportar doenças ao país. O trecho final para o parque Bwindi é de terra e muita lama.
Meu hotel fica na encosta de uma montanha e sou recebida com suco de maracujá. O quarto tem uma varanda espaçosa de onde vejo pássaros coloridos. E a cama tem um mosquiteiro, que um funcionário prepara enquanto vou jantar no salão do hotel. Durmo cedo; amanhã é dia de ir até os gorilas.