Texto: Sarah Kern | Design: Juliana Alencar | Ilustrações: Amanda Miranda | Edição: Bruno Vaiano
Atualização: em 10 de novembro, Azerbaijão, Armênia e Rússia assinaram um acordo de paz que encerrou o conflito iniciado em setembro – sob a condição de que os armênios se retirem do enclave. Esta edição da SUPER foi fechada antes do cessar-fogo.
Dois países, uma nação. É assim que o Azerbaijão, um pequeno país de maioria islâmica localizado às margens do Mar Cáspio, define sua intimidade diplomática com a Turquia. Eles são muito próximos religiosa e culturalmente – os idiomas turco e azerbaijano, inclusive, compartilham uma raiz comum.
A pedra no caminho dessa amizade é a Armênia, lar da mais antiga doutrina cristã ainda na ativa: a Igreja Ortodoxa armênia foi fundada no ano 301, décadas antes da conversão oficial do Império Romano. Trata-se de um estado-nação do tamanho de Alagoas que bloqueia completamente a ligação por terra entre a Turquia e o Azerbaijão – e tem um longo histórico de inimizade com ambos.
Os armênios são um povo resiliente em sua identidade cultural, mas passaram pouco tempo no comando de seu próprio território. A Transcaucásia – região montanhosa que compreende a Geórgia, a Armênia e o Azerbaijão – já foi invadida e controlada por quase todos os grandes impérios da história: persas, romanos, mongóis, otomanos, russos. A última dessas feridas, aberta pela União Soviética, ainda não cicatrizou.
Em julho de 1921, a cúpula soviética se reuniu em Moscou para deliberar sobre o destino da Transcaucásia. A região saiu das mãos do Império Russo no final da 1ª Guerra e, após um breve surto de declarações de independência e guerras étnicas ferozes, foi incorporada à URSS.
Uma das preocupações dos soviéticos era um território chamado Nagorno-Karabakh. Trata-se de uma área de 4.400 km2 – três vezes o município de São Paulo – habitada majoritariamente por armênios, mas ilhada dentro do território do Azerbaijão. De início, a intenção era anexar o território à Armênia para aplacar conflitos. Mas o enclave acabou permanecendo com o Azerbaijão.
A URSS se enfraqueceu no final da década de 1980. Em 1988, pouco antes do colapso do regime soviético, a insatisfação acumulada pelos armênios por décadas ressurgiu intacta no Cáucaso. Eclodiu uma guerra entre os armênios de Nagorno-Karabakh e os azerbaijanos – que terminou em 1994 com um cessar-fogo mediado por Moscou.
O resultado foi a derrota do Azerbaijão e a independência do enclave, ainda que a comunidade internacional não reconheça sua autonomia. Nagorno permanece até hoje como um pedaço do Azerbaijão no mapa, mas está sob controle dos separatistas – que denominam a região como “República de Artsakh” e recebem apoio e armamento da Armênia. Os civis apoiam a separação: etnicamente, Nagorno-Karabakh permanece 95% armênia, e sua população já votou em dois referendos pela independência, em 1991 e em 2017 – ambos tratados como ilegais pelo Azerbaijão.
É possível observar no mapa abaixo que a República de Artsakh controla não só o território de Nagorno em si como a faixa de terra que separa Nagorno da Armênia. A conexão mantém o abastecimento do enclave armênio e o impede de ser completamente cercado pelas forças inimigas.
Após 26 anos de tensão, com pequenos conflitos pipocando de vez em quando, uma reedição da guerra eclodiu em setembro de 2020, já deixou 5 mil mortos e não tem previsão para terminar. O presidente armênio, empossado em 2018, inflamou os ânimos com uma retórica populista – mas os analistas de geopolítica concordam que o Azerbaijão atirou primeiro (a Armênia não tem interesse em mudar o status de semi-independência de Nagorno, que é vantajoso para ela).
O pedaço de terra é pequeno, mas a briga é de cachorro grande: Rússia, ao Norte, Turquia, a Oeste, e Irã, ao Sul, todos têm interesses na disputa – um cabo de guerra que se reflete na etimologia: “Nagorno”, em russo, significa “montanhoso”, e “Karabakh”, com raízes turcas e persas, quer dizer “jardim negro”.
Até agora, o Azerbaijão se concentrou em retomar Nagorno-Karabakh e não atacou o território armênio em si. Eles temem a amizade do país cristão com os russos – que estão se esforçando para negociar a paz, mas têm um acordo que os forçaria a entrar na disputa do lado armênio caso a situação saia de controle. A Armênia faz parte da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), aliança de ex-repúblicas soviéticas que permanecem protegidas por Moscou.
Putin não quer essa dor de cabeça. Embora já tenha verbalizado sua intenção de fazer valer o tratado com a Armênia caso necessário, o líder russo não tem nada contra o Azerbaijão. E manter o controle do Cáucaso pacificamente é um objetivo particularmente caro à Rússia: se eles perderem protagonismo por lá, a Turquia ficará mais do que satisfeita em pegá-lo para si – e ela, como dissemos, é unha e carne com o Azerbaijão.