Para muitos, meditar é um ato religioso. E faz sentido. Foi por meio de rituais ao redor da fogueira que os humanos começaram a acalmar a mente, aprofundar o pensamento e desenvolver uma capacidade de abstração que não existe em nenhuma outra espécie. Depois dessas sessões, que incluíam até ervas alucinógenas, é normal que alguém se sinta em contato com o sagrado – ou com o Deus da sua preferência.
Texto: Agência Fronteira | Edição de Arte: Juliana Vidigal | Design: Andy Faria | Ilustrações: Índio San
arte rupestre mais antiga do mundo: 40 mil anos atrás. O código de leis mais velho: 4 mil. A mais longínqua sessão de meditação: impossível saber. Como o pensamento não deixa marcas gravadas em pedra, sua arqueologia é uma disciplina difícil. Mas não impossível. O estudioso de religiões americano Willard Johnson tem uma aposta: o fogo tem algo a ver com isso. “O fato de tantas religiões primitivas terem usado o fogo em seus rituais e simbolismos confirma o poderoso domínio que esse elemento exerce sobre a consciência humana”, afirma ele no livro Do Xamanismo à Ciência — Uma História da Meditação. Uma de suas hipóteses é que, além de carne assada, a domesticação das chamas permitiu que os primeiros humanos se protegessem de animais ferozes e, pela primeira vez, tivessem um espaço livre no cérebro por não pensar em ameaças constantes.
Outro pesquisador, Matt Rossano, professor de psicologia da Southeastern Louisiana University, sugere que a meditação nos tornou humanos. Foi justamente por causa do pensamento introspectivo que o homo sapiens, ao contrário do neandertal, enveredou por uma história de linguagem, arte e jogos de xadrez. “Imagine que você viaje 100 mil anos no passado e dê de cara com um grupo de nossos ancestrais reunidos em torno de uma fogueira à noite. Por acaso se surpreenderia de vê-los cantando, batendo palmas, dançando ou talvez apenas hipnotizados pela chama cintilante? Minha tese é que essa atividade banal criou uma pressão seletiva importante na evolução da mente humana moderna”, defende ele no artigo Did meditading make us humans? (“Meditar nos tornou humanos?”, em inglês), publicado no Cambridge Archaeological Journal.
No texto, Rossano fala de duas características essenciais para que o pensamento simbólico (aquele que nos faz entender que $ significa dinheiro ou que todas as letras impressas têm algum significado) pudesse surgir. São elas: memória e atenção. O pesquisador se apoiou em estudos atuais, feitos na última década, que comprovam o poder de metamorfose da meditação sobre a massa cinzenta. Unindo os achados científicos, o argumento sobre a mente pré-histórica é o seguinte: uma vez que o simbolismo só pode surgir em um cérebro turbinado com memória e atenção, algo deve tê-lo turbinado ao longo dos séculos. E, como não havia templos zen na Idade da Pedra, os rituais em volta do fogo são os melhores suspeitos.
As atividades ao redor das brasas eram rotineiras desde a infância e envolviam todos os membros do grupo. Quem sabia aproveitar melhor os instantes contemplativos para relaxar, reduzir o stress do mundo selvagem e aguçar o foco, tinha uma vantagem competitiva sobre os demais. No dia seguinte, os meditadores ancestrais provavelmente estavam mais descansados e concentrados para encontrar comida e conquistar um par – duas atividades cruciais para perpetuar os genes contemplativos. Esse comportamento pode ter contribuído para a seleção de humanos mais concentrados. Como a função em volta da fogueira era também uma ocasião social, de confraternização, a atividade ajudou a moldar laços sociais fortes, e indivíduos que sabiam viver em comunidade tinham mais chances de sobrevivência. “Participar de um ritual que exige autocontrole e integração deve ter sido natural a essas crianças, reforçando sua capacidade de foco ao longo da vida”, diz Rossano.
Barato ancestral
Houve muito tempo para essa seleção natural: o domínio do fogo ocorreu há cerca de 800 mil anos. Foram 750 mil anos de introspecção ao redor das chamas até que os primeiros homo sapiens começaram a desenvolver manifestações religiosas, como cantorias em volta da fogueira, silêncio hipnótico e rituais de curas. Há 50 mil anos, a linguagem também surgiu, um elemento essencial para a consolidação dos credos. Agora, os rituais e histórias sobrenaturais que tentavam dar conta dos mistérios do mundo podiam ser transmitidos adiante.
Nesse contexto, a figura essencial é a do xamã. É esse homem ou mulher, dono de uma “conexão especial” com a natureza, que comandava os cantos coletivos e conduzia os membros da tribo em danças hipnóticas. “Os xamãs são os antepassados imediatos dos professores de meditação”, escreve o professor Johnson. Esses sacerdotes eram sábios que ajudavam a promover o bem-estar do grupo, encontrar caças, prever o clima, mediar os conflitos da tribo e tratar enfermos. Eles também preparavam chás alucinógenos. As primeiras religiões – e a própria civilização – devem muito a essa mistura de fogo, xamãs, rituais e ervas danadas.
Entre 2000 e 900 a.C., a meditação ganhou o primeiro registro escrito nos Vedas, as escrituras sagradas indianas. Os textos estão divididos em quatro livros, sendo o mais importante o Rig Veda, que diz: “Como um cavalo rebelde atrelado a este veículo (nosso corpo), o conhecedor, atento, deve controlar a mente”. Com a metáfora, os hinos védicos falavam, pela primeira vez, da necessidade de domar os pensamentos para poder ter uma vida frutífera. O curioso é que a palavra antiga para designar o controle dos animais é ioga. A partir dos Vedas, ganha um novo significado, agora associado ao controle da mente.
Nessa filosofia, sábios são aqueles que têm a mente amarrada, como um boi tem a cabeça presa ao arado. Afinal, animais soltos não preparam a terra e nem produzem frutos — igual a uma pessoa sem domínio de si. Mas os Vedas não trazem um passo a passo. “Os hinos são concisos e não indicam nenhuma prática”, explica Carlos Eduardo Barbosa, professor e estudioso de cultura da Índia e autor da tradução do sânscrito de Os Sutras de Patanjali, texto base do ioga. O que os livros mencionam são as ideias que servirão de alicerce para práticas meditativas que surgirão depois.
Uma delas é a da “visão interna”, que pode ser obtida por meio de uma revelação capaz de abrir nossos olhos. “Meditar é pensar com a visão de dentro, inspirado pelas forças que elevam os pensamentos”, diz o professor, que se dedica ao ensino da tradição hindu. Esse processo pode ser feito com rezas ou com o uso de ervas, como faziam os xamãs pré-históricos.
A poção da tradição hindu é chamada de soma, uma mistura tão famosa que merece um capítulo inteiro no grande Rig Veda – e cujo ingrediente principal é desconhecido. Dela, diz-se que “transforma quem a bebe em um poeta”. Na mitologia da época, a iluminação também é obra do deus Savita, que tem o dom de trazer para o céu a luz e o calor do Sol e, por isso, está associado também à elevação dos pensamentos. Savita ajudaria a impulsionar a mente para o alto – uma ideia central nos Vedas.
Essas tradições foram a base do hinduísmo, consolidado a partir de 500 a.C. A religião mais antiga do mundo sintetizou crenças e rituais já presentes na tradição oral e nos textos dos Vedas. O ciclo da vida, o carma e a iluminação são alguns dos principais conceitos da doutrina, assim como a busca por uma vida próspera e de autoconhecimento. O criador do Universo segundo o hinduísmo, o Brahma, faz parte de cada pessoa. Por causa dessa crença, o ajuste mental deve ser feito internamente. “Nessa ideia, eu sou o deus, a essência. Por isso essa força ascendente leva a si mesmo”, afirma Barbosa.
Esse encontro com a verdade que mora dentro de cada pessoa — onde também está a essência de todas as coisas — leva à união com o divino e a uma sabedoria superior. Na visão de mundo hindu, a meditação entra como uma habilidade a ser aprendida e utilizada. “Quando compramos um carro, ele não tem uma destinação única, mas precisamos dirigi-lo e operá-lo”, explica Willard Johnson em seu livro. O mesmo acontece com a meditação. “É um meio de alcançar os fins ou metas que escolhemos para ela. Os indianos usavam-na para realçar a ação, a devoção, a autodisciplina física, a autotranscendência ritual, a autorrealização espiritual, e assim por diante.”
Racha indiano
Nesse berço de cultura indiana, cismas ocorreram. Mais ou menos como a reforma protestante cristã defendeu uma relação mais direta com Deus no século 16, colocando-se contra o clero da Idade Média, algumas teorias da Índia antiga renegaram os intermediários. Xamãs e sacerdotes, as figuras eleitas para ajudar os demais com seus pensamentos, tiveram seu poder abalado.
Uma dessas ramificações é o próprio ioga como conhecemos hoje, que surge 500 anos antes de Cristo. “Ele tenta fugir dos padrões ritualísticos apresentando um caminho onde a pessoa encontra sua própria salvação”, diz Barbosa. O livro-base, o Ioga Sutra, expõe princípios como o da não violência e indica a necessidade de limpar o corpo e a mente para manter-se saudável e espiritualizado. A disciplina, da qual as poses físicas se tornaram parte, também inclui autoestudo e superação pessoal. Quem segui-la estará no caminho para a libertação espiritual. Na tradição hindu, isso significa parar de reencarnar, ou seja, romper o ciclo do nascer e morrer imposto a todas as almas. Num conceito parecido ao espiritismo, que explica as vidas passadas pela ótica do aprendizado, o hinduísmo entende que voltar a um corpo é prova de que a alma ainda precisa evoluir.
Enquanto o ioga se consolida, mais ou menos na mesma época o bramanismo abre espaço para outra grande dissidência. Se a tradição hindu prega o preenchimento de si mesmo, a nova corrente aposta no vazio. O trabalho rumo à iluminação passa pela extinção do ser, e o estado mais elevado é chamado de nirvana. A nova escola, que se bifurcaria em centenas de outras seitas ainda hoje espalhadas pelo mundo, surge dos ensinamentos de um único homem que aprendeu tudo sozinho, sentado à sombra de uma grande árvore. O nome dele é Sidarta Gautama, mas pode chamar de Buda.