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Imunidade: podemos ter mais defesas contra o coronavírus do que se imaginava

Veja como novos estudos começam a afastar as preocupações iniciais sobre a resiliência da Covid – e indicam que o sistema imunológico é capaz de construir uma proteção duradoura contra ela.

Reportagem originalmente publicada pela Super em agosto de 2020

Texto: Graham Lawton, da “New Scientist” | Ilustração: Estevan Silveira | Design: Carlos Eduardo Hara | Tradução: Bruno Garattoni

Q

uando foi confirmado que a nova pneumonia circulando na China era causada por um coronavírus, uma situação que já era preocupante ficou pior ainda. É que, via de regra, os coronavírus não geram uma forte “memória imunológica”: a capacidade de resposta que permite ao organismo evitar uma nova infecção (e é produzida, também, pelas vacinas). Depois, quando surgiram relatos de que pessoas aparentemente curadas estavam pegando novamente o vírus, no Japão e na China, os piores medos dos imunologistas pareceram se confirmar.

Mas agora, sete meses depois, há sinais de esperança. Não existe mais nenhuma dúvida de que o corpo humano consegue formar uma memória imunológica contra o Sars-CoV-2 – mesmo que ainda não saibamos o quão eficiente essa memória será. “Essa é a grande questão envolvendo a Covid-19″, diz o médico Nicolas Vabret, da Icahn School of Medicine, em Nova York. “É a pergunta certa a se fazer, porque muitas coisas dependem da resposta para ela”, afirma o infectologista Paul Klenerman, da Universidade de Oxford. Isso inclui a criação de vacinas e tratamentos contra a doença, a obtenção da chamada imunidade de rebanho [estágio em que o vírus não consegue mais se propagar, pois boa parte da população já foi infectada], e também decisões como emitir “passaportes de imunidade” para quem se curou do vírus, ou quando e como reduzir as medidas de isolamento social.

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A memória imunológica pode ser uma força incrivelmente poderosa e duradoura. Os imunologistas gostam de contar a história de uma epidemia de sarampo que aconteceu nas Ilhas Faroe, perto da Dinamarca, em 1846. Quando o médico dinamarquês Peter Panum foi até lá investigar, viu que a doença estava se propagando furiosamente, mas constatou que 98 pessoas mais velhas tinham imunidade a ela. Eram sobreviventes da epidemia anterior, de 1781. Um único contato com o vírus do sarampo havia lhes rendido proteção vitalícia.

Alguns vírus, porém, não geram uma reação imunológica tão forte, o que dificulta a vacinação contra eles. O vírus sincicial respiratório (VSR)(1), por exemplo, até hoje resistiu a todas as tentativas de desenvolver uma vacina. Também há vírus que provocam uma reação moderada do organismo, mas a memória imunológica que vem depois é fraca e curta. É possível desenvolver vacinas contra esses vírus, mas elas geralmente exigem doses regulares de reforço para que a imunidade seja mantida.

Até o aparecimento do Sars-CoV-2, os cientistas classificavam os coronavírus entre os tipos mais “teimosos” de patógeno. Existem quatro coronavírus [229E, OC43, NL63 e HKU1] que causam resfriados em humanos. Eles provocam uma resposta do organismo, mas não geram muita memória imunológica. Um ano depois de pegar algum deles, e se curar do resfriado, você está vulnerável novamente. Já com o primeiro Sars-CoV e com o Mers-CoV, coronavírus que foram descobertos nas últimas duas décadas e causam sintomas graves, a memória imunológica é um pouco mais longa: dura alguns anos. “Será que o Sars-CoV-2 é assim, ou é como os outros?”, diz Vabret.

(1) Infecta as vias respiratórias e os pulmões de bebês até 2 anos de idade, podendo levar à morte.

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Lembranças protetoras

A memória imunológica [seja qual for o vírus envolvido] tem três componentes. O primeiro é a resposta dos anticorpos. Eles são proteínas fabricadas pelas chamadas células B, que pertencem ao sistema imunológico. O corpo possui um repertório enorme de tipos diferentes de célula B: cada uma produz um tipo distinto de anticorpo, que se encaixa em uma molécula específica na superfície dos patógenos [micro-organismos que causam doenças, como vírus ou bactérias]. Essa molécula se chama antígeno. Quando o anticorpo se encaixa no antígeno, o vírus é neutralizado – não consegue mais infectar as células do organismo. Assim que o sistema imunológico se depara com um novo vírus ou bactéria, começa a produzir células B “compatíveis” com o invasor, que por sua vez liberam anticorpos para neutralizar aquela ameaça.

Os anticorpos são apenas uma das camadas de proteção do corpo contra doenças. Existem pelo menos mais duas.
Os anticorpos são apenas uma das camadas de proteção do corpo contra doenças. Existem pelo menos mais duas. (Estevan Silveira/Superinteressante)

Nota do tradutor: O corpo humano é capaz de produzir inúmeros tipos de anticorpo. Eles são relativamente parecidos entre si, exceto por uma das pontas: a chamada “região hipervariável”, que pode ter diversos formatos – para que consiga se encaixar ao antígeno, como uma chave que entra na fechadura.   

Apesar dessa variação quase infinita, os anticorpos (também chamados de imunoglobulinas) são classificados em cinco grupos. Quando uma pessoa é infectada pelo Sars-CoV-2, os primeiros anticorpos produzidos costumam ser as imunoglobulinas (Igs, no jargão médico) dos tipos A e M. A primeira (IgA) está presente nas mucosas, nas vias respiratórias, no sistema digestivo e nas secreções – e serve para tentar evitar que o vírus se instale. Ao mesmo tempo, o organismo também começa a produzir a imunoglobulina M (IgM). Ela é relativamente grande e pesada, com 950 mil daltons (15 vezes o peso da hemoglobina, a molécula que transporta oxigênio pelo corpo). Ela não penetra nos tecidos – só é eficaz contra ameaças que estejam circulando na corrente sanguínea. A IgM também apresenta pouca afinidade com os antígenos, ou seja, não se encaixa muito bem neles, mesmo tendo cinco pontas [veja infográfico abaixo]. É uma chave meio grosseira, de emergência.

Enquanto se vira com IgA e IgM, o organismo prepara outro anticorpo: a imunoglobulina G, ou IgG. Ela demora um pouco mais para ficar pronta, mas é mais leve (150 mil daltons), e por isso consegue penetrar nos tecidos – os anticorpos IgG maternos, por exemplo, atravessam a placenta e são transmitidos para o feto durante a gravidez. Esse tipo de anticorpo dura mais e se conecta melhor a outras moléculas: 75% dos anticorpos presentes no sangue são IgG, os mais eficazes no combate a infecções.

Quando o corpo vira o jogo e começa a vencer a infecção, a IgG que neutraliza o vírus se torna detectável na corrente sanguínea. Depois que a doença vai embora, a IgG continua no sangue por semanas, meses ou até anos, formando um escudo contra a reinfecção [leia mais sobre os testes de anticorpos no quadro abaixo].

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O segundo elemento da memória imunológica são as “células B de memória”. Algumas células B assumem essa forma, e ficam alojadas nos gânglios linfáticos(2) e no baço. Se o vírus reaparece no organismo, e não é imediatamente aniquilado pelos anticorpos (porque eles não são eficazes ou sua quantidade diminuiu muito), as células B de memória voltam a se reproduzir e fabricar anticorpos – e rapidamente dominam a reinfecção, que muitas vezes nem chega a produzir sintomas.

A terceira arma do sistema imunológico são as células T. Existem dois tipos: as “assassinas”, que destroem células infectadas pelo vírus, e as “auxiliares”, que organizam esse ataque. Ambas também podem se transformar em “células T de memória”, que vivem no sistema linfático e estão sempre prontas para voltar ao trabalho caso necessário. Juntas, as células B e T de memória geram a chamada imunidade funcional: elas derrotam rapidamente o vírus caso ele volte a aparecer.

Há indícios de que o Sars-CoV-2 produz todos esses tipos de memória imunológica. “Eu acho muito provável que venhamos a desenvolver uma imunidade real”, diz a bióloga Ashley St John, da Duke-NUS Medical School, em Cingapura.

Se você for reinfectado por um vírus, o corpo aciona uma proteção de emergência: a chamada imunidade funcional.
Se você for reinfectado por um vírus, o corpo aciona uma proteção de emergência: a chamada imunidade funcional. (Estevan Silveira/Superinteressante)
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Quanto aos anticorpos, a ciência já sabe que o IgG tende a aparecer na corrente sanguínea cinco dias depois que a pessoa desenvolve sintomas da infecção pelo novo coronavírus. E ele quase sempre está presente. Num estudo feito pela Icahn School of Medicine(3) com 624 pessoas que tiveram Covid-19 leve ou moderada, nada menos do que 621 delas apresentaram esse tipo de anticorpo no sangue. Outro trabalho, realizado por cinco equipes de cientistas na Inglaterra e na Alemanha, analisou 177 pacientes que desenvolveram a forma grave da doença, mas se recuperaram(4). Constatou que mais de 90% tinham os anticorpos IgG no organismo, e dois meses após a cura os níveis continuavam altos.

Isso provavelmente significa que o organismo também está produzindo células B de memória, o que é outra boa notícia. “Os níveis de anticorpos geralmente estão associados aos de células B”, afirma St John. Uma pesquisa feita pelo infectologista Paul Klenerman, da Universidade de Oxford(5) , com 42 pessoas que se recuperaram da Covid-19 descobriu que todas elas produziram células T de memória, que eram capazes de gerar uma resposta imunológica “ampla e forte”. “Acho que há uma chance razoável de que as pessoas desenvolvam algum grau de imunidade, por meio da ação [combinada] dos anticorpos e das células T”, diz Klenerman.

Mas também há preocupações envolvendo a imunidade ao novo coronavírus. Uma delas é: as pessoas que são infectadas pelo Sars-Cov-2, mas apresentam sintomas leves (ou nenhum sintoma), talvez não gerem uma resposta forte o bastante para que o corpo construa memória imunológica. Ou essa memória pode desaparecer rapidamente.

Segundo Klenerman, a força da memória geralmente depende da resposta inicial do organismo ao vírus. “Quanto maior for esse pico, mais ela dura. Tudo começa a desaparecer depois que o antígeno [o vírus] vai embora”, diz. Um estudo publicado recentemente por 19 cientistas chineses no jornal científico Nature parece confirmar essa questão(6). Ele revelou: as pessoas que foram infectadas pelo novo coronavírus, mas permaneceram assintomáticas, tinham menores níveis de IgG do que os pacientes que desenvolveram sintomas. Além disso, assim que elas se livraram do vírus, a quantidade de anticorpos caiu rapidamente: dois meses após a doença, 40% das pessoas voltaram a ter baixos níveis de IgG no sangue, iguais aos de antes da infecção.

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Mas as células B e T de memória sempre podem produzir novos anticorpos, caso necessário. E o nível de anticorpos no sangue não está necessariamente ligado ao grau de proteção da pessoa. “Você pode ter um monte de anticorpos de baixa qualidade, que não ajudam muito. Mas pode ter poucos anticorpos de alta qualidade, que sejam realmente eficazes, e isso gera uma proteção até maior”, afirma St John. Há boas notícias nesse quesito. Um grupo de cientistas do Scripps Research Institute, na Califórnia, testou os anticorpos do sangue de pessoas recuperadas da Covid-19. Eles encontraram(7) mais de 1.800 anticorpos, três dos quais se mostraram extremamente potentes contra o novo coronavírus. Se as pessoas com Covid-19 leve ou assintomática estiverem produzindo esses anticorpos, mesmo que em pequenas quantidades, podem estar imunizadas.

Outra esperança é que as pessoas com infecções leves possam estar desenvolvendo um novo tipo de memória imunológica. Isso porque, quando a infecção fica restrita às vias aéreas, ela não gera anticorpos que circulam pela corrente sanguínea [e que, portanto, não aparecem nos exames de sangue que avaliam a exposição ao Sars-CoV-2]. Mas pode, mesmo assim, estar levando à formação de células B e T de memória. Recentemente, cientistas descobriram que esses dois tipos de célula podem se alojar nas mucosas do nariz e dos pulmões, onde são capazes de bloquear a reinfecção por vírus. Há alguma evidência disso num estudo que avaliou médicos e enfermeiros suíços expostos ao Sars-CoV-2, mas que não ficaram doentes. Muitos deles não tinham anticorpos contra o vírus circulando no sangue, mas possuíam células de defesa na mucosa nasal(8).

AS (VÁRIAS) ARMAS DO CORPO
Os anticorpos são uma ferramenta essencial contra o Sars-CoV-2, mas não a única. Veja como funcionam as defesas contra o vírus. 

O sistema imune fabrica milhões de anticorpos com “pontas” diferentes – até encontrar um que se encaixe ao vírus, como uma chave na fechadura.
O sistema imune fabrica milhões de anticorpos com “pontas” diferentes – até encontrar um que se encaixe ao vírus, como uma chave na fechadura. (Estevan Silveira/Superinteressante)
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(2) Glândulas distribuídas pelo corpo cuja função é filtrar a linfa (líquido que carrega impurezas produzidas pelas células e também eventuais patógenos, como vírus e bactérias).

(3) Humoral immune response and prolonged PCR positivity in a cohort of 1343 SARS-CoV 2 patients in the New York City region. Anja Wajnberg e outros, 2020.

(4) Dynamics of IgG seroconversion and pathophysiology of COVID-19 infections. H. Staines e outros, 2020.

(5) Broad and strong memory CD4+ and CD8+ T cells induced by SARS-CoV-2 in UK convalescent COVID-19 patients. P. Klenerman e outros, 2020.

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(6) Clinical and immunological assessment of asymptomatic SARS-CoV-2 infections. Quan-Xin Long e outros, 2020.

(7) Isolation of potent SARS-CoV-2 neutralizing antibodies and protection from disease in a small animal model. T. Rogers e outros, 2020.

(8) Systemic and mucosal antibody secretion specific to SARS-CoV-2 during mild versus severe COVID-19. C. Cervia e outros, 2020.

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O pecado original

Até pessoas que nunca foram infectadas pelo Sars-CoV-2 podem ter células de memória capazes de responder a ele. Segundo os cientistas, essas memórias imunológicas devem ter sido formadas pela exposição aos outros coronavírus, aqueles que causam resfriado. Esse fenômeno se chama reação cruzada. “Você já tem uma memória contra algo meio similar ao Sars-CoV-2, e essa memória é acionada quando você entra em contato com ele”, diz Klenerman.

Um equipe de pesquisadores do La Jolla Institute for Immunology, na Califórnia, e da Erasmus University, na Holanda, analisou as células T de pacientes hospitalizados com Covid-19, e também de um grupo de pessoas que não pegou o novo coronavírus(9). Como seria de se esperar, os infectados possuíam células T capazes de reagir ao vírus: das dez pessoas testadas, todas tinham células T auxiliares, e oito também deram positivo no teste de células T assassinas.

A surpresa veio daqueles que não contraíram o vírus: 20% deles também tinham essas células, que provavelmente desenvolveram ao pegar algum dos outros coronas, que causam resfriado comum. “Isso deve, potencialmente, fornecer algum nível de proteção”, afirma Klenerman. “É um pedaço do quebra-cabeça que precisa ser resolvido.”

Mas a reação cruzada também pode ter um aspecto negativo – e, paradoxalmente, agravar a Covid-19. Em outras doenças virais, ela pode causar um tipo de interferência imunológica, que os cientistas costumam chamar de “pecado original antigênico”. Quando esse fenômeno acontece, o organismo recorre à sua memória imunológica e não desenvolve defesas adequadas contra a nova ameaça – mesmo que ela seja um vírus totalmente novo. É por isso, na opinião de Vabret, que a Covid-19 costuma ser mais forte em idosos: eles foram expostos a muitas variações do vírus do resfriado ao longo da vida, e por isso seus organismos seriam mais propensos a usar essas memórias imunológicas menos eficientes. É preciso fazer mais pesquisas para elucidar isso.

Muita gente já pegou algum dos outros coronavírus (que causam resfriado) durante a vida. Isso pode ajudar o corpo a debelar o Sars-CoV-2 – mas também pode atrapalhar.
Muita gente já pegou algum dos outros coronavírus (que causam resfriado) durante a vida. Isso pode ajudar o corpo a debelar o Sars-CoV-2 – mas também pode atrapalhar. (Estevan Silveira/Superinteressante)
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Quanto às pessoas supostamente reinfectadas pelo coronavírus [que citamos no começo deste texto], aparentemente trata-se de falsos positivos, ou seja, testes que deram resultados errados. “Não há nenhum caso confirmado de reinfecção”, diz Vabret. Experiências feitas em animais apontam nessa mesma direção. Em maio, um grupo de cientistas chineses comprovou(10) que os macacos rhesus podem desenvolver a Covid-19, mas estavam imunes a ela um mês depois de se curar da doença. Esse estudo foi replicado nos EUA com mais macacos(11), por um período maior, de cinco semanas, e obteve o mesmo resultado.

Aparentemente, os rhesus foram protegidos pela imunidade funcional, ou seja, pela ação rápida das células B e T de memória. “Eles apresentaram resistência total à doença”, diz o imunologista Danny Altmann, da Imperial College London. “Claro, isso foi após cinco semanas. O que nós queremos saber é a imunidade depois de um ou dois anos.”

Esse ainda é o grande mistério. Os primeiros recuperados da Covid-19 se livraram da doença há apenas oito meses, então saber quanto tempo a imunidade vai durar envolve um certo grau de especulação. “Nós temos imunidade. A questão é: por quanto tempo?”, pergunta St John. “Vamos desenvolver alguma imunidade de longo prazo”, acredita Vabret. “Ela será suficiente para prevenir a reinfecção? Não sabemos.”

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Mas mesmo se nossa memória imunológica contra o coronavírus for breve, ela é uma boa notícia – porque poderá ser fortalecida com vacinas. “As vacinas são desenvolvidas para provocar níveis muito altos de resposta imunológica”, diz Klenerman. “Então, se tudo der certo, poderemos alcançar algo ainda melhor [do que a imunidade natural]“.

(9) Phenotype and kinetics of SARS-CoV-2–specific T cells in COVID-19 patients with acute respiratory distress syndrome. D. Weiskopf e outros, 2020. 

(10) Lack of Reinfection in Rhesus Macaques Infected with SARS-CoV-2. L Bao e outros, 2020. 

(11) SARS-CoV-2 infection protects against rechallenge in rhesus macaques. A. Chandrashekar e outros, 2020.

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A polêmica da imunidade de rebanho

Sem vacina, a pandemia só irá desacelerar quando a maioria da população tiver contraído o vírus, certo? Talvez não: novos estudos dizem que pode acontecer antes. Quem está certo?

Texto Bruno Garattoni

Quanto mais gente pega Covid-19 e se cura, menos alvos sobram para o vírus. Até que, em determinado ponto, ele começa a ter dificuldade em encontrar novas vítimas. É a chamada imunidade de rebanho, que acontece quando pelo menos 60% das pessoas já pegaram o agente infeccioso – e supostamente estão imunes, pelo menos durante algum tempo, a ele. Até que esse patamar seja alcançado, ou uma vacina seja desenvolvida, o vírus tende a continuar se propagando como fogo no palheiro. Mas isso nem sempre tem ocorrido. É o caso, por exemplo, de Manaus.

A cidade foi uma das mais afetadas no Brasil pela Covid-19: seus leitos de UTI ficaram totalmente ocupados e o sistema funerário municipal entrou em colapso, com dificuldades para enterrar os mortos. O coronavírus se espalhou brutalmente por lá. Segundo a pesquisa Epicovid-19, que é realizada pela Universidade Federal de Pelotas e financiada pelo Ministério da Saúde, 14,6% da população da cidade possuía anticorpos contra o Sars-CoV-2 no mês de junho (logo, já havia sido infectada pelo vírus). No começo de julho, Manaus começou a reabrir seu comércio e afrouxar as medidas de isolamento social. Apesar disso, não houve uma nova explosão de casos. Durante as primeiras três semanas de flexibilização, a média de mortes diárias por coronavírus em Manaus ficou entre 30 e 31 – bem abaixo dos 130 a 140 óbitos diários registrados na primeira onda.

Esse fenômeno tem duas explicações possíveis. A primeira é que, mesmo com a reabertura, grande parte da população local esteja usando máscara, desinfetando as mãos e seguindo outras medidas protetivas. A outra é que a cidade estaria se aproximando da imunidade de rebanho – que, como sugerem três estudos publicados nos últimos meses, talvez possa ser alcançada antes dos tais 60%. É que a projeção “clássica” leva em conta uma população homogênea, na qual todas as pessoas são igualmente suscetíveis ao vírus – o que não é, necessariamente, o caso (mais sobre isso daqui a pouco).

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Quanto mais gente pega Covid-19 e se cura, menos alvos sobram para o vírus – até que ele fica cercado por indivíduos imunes.
Quanto mais gente pega Covid-19 e se cura, menos alvos sobram para o vírus – até que ele fica cercado por indivíduos imunes. (Estevan Silveira/Superinteressante)

“Os modelos homogêneos passaram a não descrever mais as epidemias de algumas localidades, principalmente na Europa. Então a comunidade científica passou a olhar isso com outros olhos”, diz o matemático Rodrigo Corder, doutorando do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. No final de maio ele publicou um estudo, com nove pesquisadores da Europa e dos EUA, em que aponta como diferenças entre as pessoas podem interferir na propagação do coronavírus(1), e permitir que a imunidade de rebanho seja alcançada com 10% a 20% da população infectada. Em junho, a revista cientifica Science publicou outro estudo, feito por matemáticos das universidades de Nottingham e Estocolmo(2), que aponta na mesma direção: segundo a pesquisa, com 43% da população infectada seria possível alcançar imunidade de rebanho. Em julho saiu o terceiro trabalho, que é assinado por quatro biólogos da Universidade de Oxford(3) e fala em 25%. Novamente: quem está certo? E por que esses números são menores que os 60% a 70% iniciais?

Os três estudos são projeções matemáticas que levam em conta o chamado “coeficiente de variação” (CV). Quando esse coeficiente é zero, todo mundo é igualmente suscetível a pegar a doença. Pesquisas realizadas sobre a malária, a tuberculose, o Sars-CoV-1 (da Sars) e até o próprio Sars-CoV-2 (da Covid-19) indicam que esse coeficiente costuma ficar entre 2 e 3. Os três estudos adotam coeficientes de variação diferentes, e por isso chegam a estimativas distintas para a imunidade de rebanho. Você deve estar se perguntando: mas se o novo coronavírus é novo, e ninguém tem imunidade a ele, não estamos todos igualmente vulneráveis? Na prática, não. “A transmissão do vírus é influenciada pelo comportamento das pessoas”, diz Natalia Pasternak, doutora em microbiologia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC). Ela dá um exemplo: “Há pessoas que têm contato com muita gente, outras são mais reclusas, ficam em casa”. E isso não é apenas uma questão de hábitos pessoais; é uma realidade social.

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Muitos brasileiros, em especial das classes C e D, não puderam fazer isolamento social nos últimos meses, pois tiveram de continuar indo trabalhar presencialmente (e geralmente usando transporte coletivo, o que aumenta ainda mais a possibilidade de pegar o vírus). Esse é o grupo mais exposto ao Sars-CoV-2 – e há números indicando que boa parte dele já tenha sido infectada. Entre os dias 15 e 24 de junho, um estudo feito por quatro entidades (Instituto Semeia, Grupo Fleury, Ibope Inteligência e Todos pela Saúde) testou a presença de anticorpos em 1.183 habitantes de vários bairros da cidade de São Paulo. Os resultados foram reveladores: nos bairros mais pobres, 16% das pessoas já haviam sido infectadas pelo vírus (contra 6,5% nos bairros mais ricos). Essa taxa já entra no território das estimativas mais otimistas quanto à imunidade de rebanho, que falam em 10% a 20%.

Também é possível que, como os cientistas começam a suspeitar, a exposição prévia a outros coronavírus (que causam resfriados e grande parte das pessoas contrai durante a vida) possa oferecer algum grau de proteção contra o Sars-CoV-2. Em suma: talvez a imunidade de rebanho não esteja tão distante quanto se imaginava inicialmente. Mas ela ainda pode estar bem longe. O segundo dos três estudos que falam numa “nova” imunidade de rebanho, aquele que foi publicado na Science (e, portanto, revisado por cientistas independentes, o que o torna mais confiável), supõe 43% de infectados. Muito mais gente ficaria doente, e vidas seriam perdidas, se optássemos por deixar a pandemia progredir sem controle até esse patamar – significaria quase 2 milhões de mortes só no Brasil.

O outro porém é que, apesar dos estudos encorajadores que mostramos ao longo desta reportagem, ainda não dá para cravar, de forma definitiva, que ter contraído o Sars-CoV-2 garanta mesmo um “passaporte da imunidade”. “A gente não sabe se quem já teve a doença uma vez está imune, ou por quanto tempo”, afirma Pasternak.

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Se ainda não há certeza absoluta sobre a imunidade individual, que dirá a de rebanho – seja com 10%, 20%, 60% ou 70% da população infectada. Até que surja uma vacina, então, a única saída realmente eficaz é a mesma de sempre: máscara, isolamento, álcool gel e uma enorme dose de cautela.

(1) Individual variation in susceptibility or exposure to SARS-CoV-2 lowers the herd immunity threshold. MG Gomes e outros, 2020.

(2) A mathematical model reveals the influence of population heterogeneity on herd immunity to SARS-CoV-2. T Britton e outros, 2020.

(3) The impact of host resistance on cumulative mortality and the threshold of herd immunity for SARS-CoV-2. J. Lourenço e outros, 2020.

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O calcanhar de Aquiles dos testes

Os exames que procuram anticorpos no sangue têm limitações importantes. Entenda.

Existem dois tipos de teste usados para detectar o coronavírus: o RT-PCR, que identifica a presença do vírus, e os exames de sorologia, que procuram anticorpos contra o vírus. O RT-PCR (sigla em inglês para “transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase”) usa uma amostra da mucosa nasal, e serve para ver se você está com a doença.

Já a sorologia indica se você possui anticorpos dos tipos IgM e IgG. Se o teste der positivo para IgM, isso pode significar que você está com coronavírus, e na fase ativa da infecção; já a presença dos IgG indica que a infecção já pode ter terminado, ou estar no fim. Mas eles têm seus problemas. Primeiro, erram bastante: uma análise de 14 marcas de teste de anticorpos realizada nos EUA constatou que apenas três delas eram confiáveis.

Os exames de sorologia podem dar falso positivo ou falso negativo – especialmente nas primeiras duas semanas após a infecção, quando há falso negativo em 30% a 70% dos testes. Isso não significa que eles não tenham seu valor; mas devem ser encarados com cautela, e executados por um laboratório. Os testes rápidos oferecidos em farmácias são desaconselháveis. “Nem faça. É jogar dinheiro fora”, diz Natalia Pasternak, doutora em microbiologia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência. (BG)

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