Revista em casa por apenas R$ 9,90/mês
Ciência

Era uma vez Vênus: um planeta igual à Terra

Ele pode ter sido um mundo habitável. Até que o efeito estufa o tornou um inferno de 462 ºC. O gêmeo do nosso pálido ponto azul tem uma lição a ensinar.

por A. J. Oliveira Atualizado em 30 set 2021, 08h30 - Publicado em
22 out 2019
17h35

1. O começo

Texto A. J. Oliveira | Ilustração Milton Nakata | Design Yasmin Ayumi | Edição Bruno Vaiano

Vênus e Terra são gêmeos. Eles têm praticamente o mesmo diâmetro – a Terra é só um pouquinho maior. Ambos possuem uma estrutura interna parecida, que consiste em um núcleo de ferro derretido, um manto pastoso de rocha aquecida e uma crosta sólida. Os dois têm campo magnético, ainda que o de Vênus seja bem mais fraco. Por fim, a dupla de planetas nasceu junta, há 4,56 bilhões de anos, na mesma região de um largo disco de gás e poeira que circundava o Sol recém-nascido.

A única diferença é que Vênus se formou um tico mais perto da nossa estrela-mãe. Um tico na escala cósmica, é claro: uns 40 milhões de quilômetros mais próximo. Essa ligeira discrepância foi crucial: selou destinos diferentes para cada um dos mundos. “Hoje, a Terra é o único planeta conhecido com água líquida e vida. Vênus, por outro lado, tem nuvens de ácido sulfúrico e uma superfície quente o bastante para derreter chumbo”, diz Giada Arney, especialista em Vênus do Centro Goddard, da Nasa. Mas não é só na temperatura de 462 ºC que Vênus é excepcional.

Por exemplo: lá, um dia dura mais que um ano. Nosso vizinho demora 243 dias terrestres para dar uma volta em torno de si próprio. E 225 para completar um giro em torno do Sol (a translação, que corresponde ao ano). Não bastasse isso, sua rotação é retrógrada, ou seja: ele orbita o Sol no sentido anti-horário, mas dá voltas em torno de si mesmo no sentido horário.

Isso não faz muito sentido: graças a algo chamado pelos físicos de preservação do momento angular, a maior parte dos planetas do Sistema Solar exibe rotação e translação no mesmo sentido. Vênus não nasceu assim – ele provavelmente passou a girar ao contrário depois de colidir com outro objeto cósmico. A consequência é que o Sol nasce no Oeste e se põe no Leste.

Continua após a publicidade

A superfície pode até se mover preguiçosamente, mas a atmosfera – 93 vezes mais densa que a da Terra, com 96,5% de dióxido de carbono – é bem mais agitada. As nuvens ricas em ácido sulfúrico, arrastadas por ventos de até 370 km/h,  completam uma volta ao mundo a cada cinco dias terrestres. Essa dose cavalar de CO2 na atmosfera – somada ao fato de que o planeta recebe o dobro da luminosidade que alcança a Terra – gera um efeito estufa fora de série.

Efeito estufa funciona assim: quando a luz emitida pelo Sol alcança um planeta qualquer, ela é absorvida pelo solo e então devolvida na forma de calor. Esse calor até consegue escapar de volta para o espaço se a atmosfera for composta só de moléculas simples – como O2 ou N2. Mas, se houver gás carbônico, surge um problema: por ser uma molécula ligeiramente maior, ele é capaz de interceptar o calor, absorvê-lo e então emiti-lo na direção de outra molécula de CO2 – que perpetua essa batata quente. O calor pula de molécula em molécula, sem conseguir fugir. E aí o planeta esquenta.

É isso que está acontecendo na Terra neste exato momento. E é isso que aconteceu com Vênus em um passado distante. Pois acredite: quando nosso gêmeo nasceu, ele não alcançava 462 ºC nem esbanjava nuvens de ácido sulfúrico. Ele era, de fato, um irmão.

Continua após a publicidade

Linha do tempo
Acompanhe a história de Vênus

↬ 4,2 bilhões de anos atrás

300 milhões de anos após sua formação, a crosta incandescente de Vênus se solidificou. Por 3 bilhões de anos, o planeta pode ter sido habitável, com oceanos rasos de água líquida e vida. A temperatura mantinha-se entre 20 °C e 50 °C.

Continua após a publicidade

↬ Data desconhecida

Provavelmente por culpa de uma colisão no passado distante, Vênus gira em torno de si no sentido horário, e um dia dura 243 dias terrestres. Os outros planetas são mais rápidos e giram no sentido anti-horário (o mesmo em que dão voltas no Sol).

Publicidade

2. O meio

-
(Milton Nakata/Superinteressante)

2. O meio

Em setembro, numa conferência realizada em Genebra, na Suíça, uma equipe do Instituto Goddard de Estudos Espaciais, da Nasa, apresentou uma série de simulações de computador que dão força a uma hipótese fascinante: a de que Vênus, em seus primeiros 3 bilhões de anos de existência – 65% do tempo decorrido desde sua formação –, teve oceanos de água líquida com até 300 metros de profundidade, e temperaturas entre 20 ºC e 50 ºC graus. Outras quatro simulações indicam que corpos d’água de só 10 metros – ou mesmo a presença de H2O somente no subsolo – já seriam suficientes para gerar um clima gostoso.

Esse paraíso tropical teria começado a ficar tropical demais há 1 bilhão de anos (nessa época, só para fins de referência, a vida multicelular mal havia começado a dar seus primeiros passos aqui na Terra). O Sol atingiu uma fase mais esquentadinha de seu ciclo de vida, e Vênus, que fica perigosamente perto, passou a receber uma dose reforçada de luz.

O problema de aquecer um planeta cheio de água é que, conforme essa água evapora, ela também se torna um gás de efeito estufa – que faz tudo esquentar mais ainda. O gás carbônico só precisa desencadear o processo: depois, a boa e velha H2O assume. “É provavelmente o que ocorreu no passado de Vênus: os oceanos subiram para dar origem à sua densa atmosfera”, diz o astrofísico Rodrigo Boufleur, do Observatório Nacional.

O ressecamento foi só o começo do fim. Há 750 milhões de anos, veio o último prego no caixão: uma enorme quantidade de lava proveniente do interior do planeta cobriu 80% da superfície e então se solidificou, como um grosso lençol de Durepoxi. Não sabemos quase nada sobre o evento de vulcanismo responsável por esse desastre – além do fato de que foi descomunal, é claro: para fins de comparação, mesmo a erupção mais violenta da história da Terra arrasou “só” um terço do território russo atual. Ela rolou na Sibéria e foi a provável culpada pela extinção em massa no final do período Permiano, há 251 milhões de anos.

Continua após a publicidade

Há uma evidência literalmente sólida a favor da hipótese desse apocalipse infernal: a superfície de Vênus é quase lisa. Não possui crateras de impacto que datam da infância do Sistema Solar, como Marte ou a Lua. É porque o planeta, como uma avenida esburacada, foi recapeado por rocha líquida e fresca. Essa cobertura teve um efeito colateral extremamente grave: impediu as rochas no solo de reabsorverem o CO2 que havia sido liberado na atmosfera. O resultado você já sabe: mais efeito estufa.

Nessa altura, a água na atmosfera já tinha ido para o espaço. Mesmo: como o campo magnético de Vênus não é lá essas coisas, não há proteção contra os ventos solares – um turbilhão de partículas carregadas eletricamente que são liberadas pelo Sol. Essa ducha desagradável quebra as moléculas de água em oxigênio e hidrogênio, e então varre esses átomos para longe do planeta. Hoje, além dos 96,5% de gás carbônico no ar, há 3% de nitrogênio e traços de dióxido de enxofre. Água? Saudades. E assim acabou o mundo em Vênus.

Linha do tempo
Acompanhe a história de Vênus

Continua após a publicidade

↬ 1 bilhão de anos atrás

1. Um aumento natural na emissão de luz pelo Sol fez Vênus, que é mais próximo da estrela do que a Terra, esquentar.

2. Um pouco de água evaporou. Como o vapor é um gás de efeito estufa, que prende calor na atmosfera, a temperatura subiu.

Continua após a publicidade

3. Isso fez mais água evaporar, o que aumentou a temperatura ainda mais. É um ciclo, e logo todo o oceano virou gás.

↬ 750 milhões de anos atrás

1. Vulcões liberaram gases de efeito estufa na atmosfera, e a lava cobriu 80% da superfície de Vênus (para comparar: a pior erupção da história da Terra cobriu só ⅓ do território russo).

2. Esse lençol de lava solidificou e impediu a reabsorção do CO2pelas rochas, piorando o efeito estufa. Como todo o relevo antigo sumiu, é difícil estudar o passado geológico de Vênus.

Publicidade

3. O fim

-
(Milton Nakata/Superinteressante)

Linha do tempo
Acompanhe a história de Vênus

↬ 700 milhões de anos atrás

Vênus atinge o estado atual. A temperatura é 462 °C, a pressão atmosférica é 93 vezes a da Terra. 96,5% do ar é gás carbônico, com traços de nitrogênio e dióxido de enxofre. As nuvens são de ácido sulfúrico.
↬ 750 milhões de anos atrás

↬ entre 1961 a 1984
A URSS envia 16 sondas. A Venera 3 foi o primeiro artefato humano a tocar outro planeta; as Veneras 9 e 10 tiraram as únicas fotos da superfície até hoje. Elas coletavam dados por algo entre 50 e 110 minutos.

Continua após a publicidade

↬ entre 1989 e 2010
Nova leva de sondas: entre 1989 e 1994 a Magellan mapeou 98% da superfície com radar. Em 2005, a agência espacial europeia (ESA) lançou a Venus Express, e em 2010, a japonesa (JAXA) despachou a Akatsuki.

↬ 2010
Descobre-se que a rotação de Vênus atrasou 6,5 minutos em 16 anos. Uma hipótese é que a espessa atmosfera atrita contra a superfície e freia o planeta. É um dado importante para calcular o pouso de futuras missões.

Continua após a publicidade

3. O fim

Por ser o objeto mais brilhante no céu noturno da Terra além da Lua, Vênus tem sido estudado desde a Antiguidade. Mesmo assim, o investimento atual em sua exploração não chega aos pés do dedicado a Marte. Desde que o meteorito marciano Alan Hills 84001 foi encontrado na Antártida, em 1984, a busca por água e vida se concentrou no Planeta Vermelho. Uma pesquisa que encontrou fósseis de bactérias nesse pedregulho, embora já tenha sido refutada, mobilizou a opinião pública por décadas.

Não é justo. Não porque Vênus vá se ofender, mas porque ele tem potencial. Para começo de conversa: Marte teve condições climáticas para abrigar água líquida por só um décimo do tempo que a Estrela da Manhã. “Estudos sobre onde a vida pode ter surgido devem focar em lugares como Vênus, onde a água esteve presente por mais tempo que em qualquer outro lugar com exceção da Terra”, diz Darby Dyar. Ela é coordenadora do Vexag, grupo estabelecido pela Nasa em 2005 para traçar um plano para a exploração de Vênus.

Nosso gêmeo infernal ganhou muito carinho dos soviéticos e americanos antes do hype marciano. A primeira sonda da história a sobrevoar um planeta com sucesso – a Mariner 2, da Nasa, de 1962 – sobrevoou Vênus. Os soviéticos enviaram 16 sondas entre 1961 e 1984. A Venera 3 foi o primeiro artefato humano a tocar outro planeta; as Veneras 9 e 10 tiraram as únicas fotos da superfície até hoje.

Continua após a publicidade

Elas coletavam dados por algo entre 50 e 110 minutos, mas eram esmagadas e derretidas pelas condições climáticas (os soviéticos reforçaram suas sondas depois que a americana Mariner 5 estimou a pressão atmosférica em algo entre 75 atm e 100 atm em 1967. Colaboração inusitada).

Após a Guerra Fria, porém, as missões rarearam: entre 1989 e 1994, a Magellan, da Nasa, ficou em órbita e fez o primeiro mapeamento preliminar de 98% da superfície com radar. Em 2005, a agência espacial europeia (ESA) lançou a Venus Express, e em 2010, a japonesa (JAXA) despachou a Akatsuki. Foi bom, mas não o suficiente.

A chefe do Vexag explica que uma missão de respeito para investigar Vênus precisa ter três ou mais sondas integradas: na órbita, na atmosfera e na superfície. A que fica no espaço coleta dados sobre a topografia (isto é, montanhas, vales e acidentes geográficos) e a gravidade. Já imerso na atmosfera, uma espécie de balão pode flutuar em meio às nuvens para avaliar o coquetel de gases e entender a história da evaporação da água e do aquecimento global venusiano. Por fim, esse balão liberaria pequenos robôs, que colheriam amostras de rocha para entender melhor a geologia.

Continua após a publicidade

Saber de tudo isso nos daria um vislumbre do futuro da Terra. Pois o fato é que, daqui 2 bilhões de anos, ela deve sim ficar parecida com Vênus – e não é graças à atividade humana. Em longo prazo, o Sol, seguindo o ciclo de evolução natural das estrelas, só tende a aquecer mais – e a ir transformando mundos em churrasco conforme avança. Vênus foi primeiro, a Terra é a próxima. Esse aquecimento extremo no futuro, é claro, não pode ser confundido com o aquecimento moderado no presente, causado por nós.

“As mudanças climáticas antropogênicas são reais e muito sérias, mas podemos nos reconfortar um pouco: não somos suficientes para transformar a Terra em um mundo como Vênus, infernalmente quente”, diz Giada Arney, da Nasa. Nas condições atuais de nosso planeta, abundantes oceanos dão conta de estocar boa parte do CO2 existente.

O problema é que um aumento de 4 ºC na temperatura da Terra já seria catastrófico: não precisamos de 400 ºC. Uma investigação mais aprofundada de Vênus nos daria modelos climáticos mais precisos para entender tanto o apocalipse, daqui 2 bilhões de anos, quanto os desafios que baterão na porta já nas próximas décadas. Vênus pode não ser literalmente a Terra – mas é uma metáfora poderosa.

O Vexag acaba de concluir um documento em que apresenta três propostas de missão para a Nasa. Se elas derem certo, permitirão algo mais que descobertas científicas. “Para mim, comparar a Terra com Vênus lembra como nosso planeta é precioso. A Terra é o único planeta que podemos habitar. O único mundo com água e vida”, diz Arney. Talvez, ter um vislumbre do futuro nos faça cuidar melhor do nosso planeta azul. 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Oferta dia dos Pais

Receba a Revista impressa em casa todo mês pelo mesmo valor da assinatura digital. E ainda tenha acesso digital completo aos sites e apps de todas as marcas Abril.

OFERTA
DIA DOS PAIS

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.