John DeLorean queria inventar o carro mais icônico do mundo. Conseguiu. Mas virou alvo do governo inglês, caiu numa armadilha do FBI, destruiu a própria vida – e se envolveu no estranho desaparecimento do maior gênio da Fórmula 1. Agora, sua criação pode estar prestes a renascer.
por Michelle Navarro e Bruno GarattoniAtualizado em 9 ago 2022, 14h49 - Publicado em
10 jul 2020
16h51
John DeLorean queria inventar o carro mais icônico do mundo. Conseguiu. Mas virou alvo do governo inglês, caiu numa armadilha do FBI, destruiu a própria vida – e se envolveu no estranho desaparecimento do maior gênio da Fórmula 1. Agora, sua criação pode estar prestes a renascer.
Texto Michelle Navarro e Bruno Garattoni Ilustração Estevan SilveiraDesign Estúdio Nono
James e John estão sentados num quarto do hotel L’Enfant Plaza, em Washington DC, no dia 4 de setembro de 1982. James começa a conversa.
“Então, nós podemos pegar 34 quilos. Vamos precisar de uns US$ 2 milhões [de investimento]. E você vai receber US$ 40 milhões.”
John hesita, em silêncio. O autor da ideia insiste. “Ninguém quer que você faça algo com o que não se sente confortável.”
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“Eu estou confiando naquilo que você me disse. Que será impossível ligar isso a mim.”
“Bom, você não vai transportar o produto”, responde James, de forma ambígua. John ainda está desconfiado, mas aceita continuar a conversa.
Nas semanas seguintes, ele é chamado para mais quatro encontros – três em hotéis e o outro no Eureka Federal Savings & Loans, um banco na Califórnia. O gerente se dispõe a atuar como intermediário, e diz que John pode ficar tranquilo.
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Em 19 de outubro, John e James se encontram em Los Angeles com o traficante. John não tem US$ 2 milhões para investir, mas aceita dar ações da sua empresa, que serão transferidas pelo banco Eureka. Eles fecham negócio, bebem champanhe, o traficante abre uma mala cheia de cocaína. “Isso vale mais do que ouro”, diz John.
Mas era tudo uma armadilha. James, o gerente do banco e o traficante eram agentes do FBI disfarçados. Policiais entram na sala e prendem John em flagrante, por narcotráfico.
O John dessa história era John DeLorean: um ex-executivo da General Motors que tinha saído para montar sua própria fábrica, criou um carro incrivelmente avançado, ficou famoso. E acabou perdendo tudo. Mas não sem antes desencadear uma história ainda mais estranha, que envolve Ronald Reagan, Margaret Thatcher e até o pai da Fórmula 1 moderna.
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A Ferrari do povo
DDurante a Segunda Guerra Mundial, a General Motors fabricou caminhões, tanques e até aviões para o Exército americano – e recebeu US$ 170 bilhões, em valores atualizados, por isso.
Depois da guerra, a empresa continuou com tudo, dominando 50% do mercado automobilístico nos EUA. Mas uma de suas divisões, a Pontiac, ia mal: o público desprezava seus carros, considerados “coisa de velho”. A solução foi trazer alguém de fora. Em 1956, a GM contratou o talentoso e rebelde engenheiro John Zachary DeLorean, de Detroit, filho de pai romeno e mãe húngara.
John havia trabalhado na Chrysler e na Packard Motor Company, onde aperfeiçoou a tecnologia do câmbio automático, mas foi na General Motors que mostrou seu talento: criou o Pontiac Tempest GTO, o monstro de 325 cavalos que inaugurou a era dos muscle cars (“carros musculosos”, em inglês) em 1964. São modelos relativamente baratos, mas com muita potência e design esportivo – Ferraris para a classe média.
O GTO foi um megassucesso, logo imitado por todas as outras montadoras. John se tornou diretor da Pontiac e, em 1969, da Chevrolet – a maior marca da GM na época. Ele se divorciou da mulher, emagreceu 10 quilos, pintou o cabelo, fez plásticas no nariz e no queixo e virou uma semicelebridade – namorou atrizes e modelos, entre elas a filha de Frank Sinatra, Tina. Aos 44 anos, causou polêmica ao se casar com a atriz Kelly Harmon, que tinha apenas 20. Três anos depois, se separou dela – e adotou Zachary, um bebê de apenas 14 meses.
John não parava de subir, e virou vice-presidente da General Motors em 1972. Nesse mesmo ano, começou a namorar a modelo Cristina Ferrare, famosa na época. Ele estava com tudo. Era questão de tempo até que se tornasse o CEO da GM. Mas não aguentou esperar. Em 1973, pediu demissão.
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O estopim da saída foi um nada diplomático discurso, que ele escreveu para um evento da empresa, em que criticava duramente “a baixa qualidade dos carros” da GM. John acabou mudando o discurso e apresentando uma versão mais branda, mas a original vazou para os jornais.
Aí o mal-estar ficou difícil de contornar. DeLorean disse que tudo bem, pois não aguentava mais a rotina na GM, que se resumia a participar de reuniões. “Mesmo ganhando US$ 650 mil dólares por ano [o equivalente a US$4 milhões hoje], se o trabalho não for satisfatório, você vai fazer outra coisa”, disse.
E ele fez: nos meses seguintes, começou a planejar sua nova empresa, na qual apostaria tudo. Até o que não tinha.
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O carro eterno
EEm 1975, John fundou a DeLorean Motor Company, ou DMC. Trouxe consigo Bill Collins, parceiro de longa data e engenheiro por trás do Tempest GTO. Em 1977, eles terminaram o protótipo de seu primeiro modelo, o DMC-12.
Não tinham como imaginar que, muito tempo depois, aquele carro viria a estrelar De Volta para o Futuro, de 1985. (“Na minha opinião, se vamos fazer uma máquina do tempo com um carro, por que não fazer com estilo?”, explica o cientista Emmett “Doc” Brown ao apresentar o DMC-12 a Marty McFly).
E que estilo. O DeLorean era diferente de qualquer outro carro. Suas portas do tipo asa-de-gaivota, que abrem para cima, eram uma releitura do Mercedes 300SL, lançado na década de 1950 – mas com linhas retas e ângulos duros. O DMC-12 prometia ter sistema antifurto, airbags e até um computador de bordo, coisas de outro planeta para os carros de 1977.
Mas o que mais impressionava era a carroceria, totalmente feita de aço inoxidável. Isso dava ao DeLorean uma aparência única e futurista, e também o tornava imune à ferrugem. A ideia, segundo John, era que o carro durasse para sempre. Você compraria um DMC-12, e o dirigiria pelo resto da vida.
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Mas, antes, ele precisava ser fabricado em massa. John pegou empréstimos, vendeu ações de sua empresa e recorreu até a celebridades, como o apresentador de TV Johnny Carson e o cantor Roy Clark, em busca de investimentos. Em 1978 a coisa decolou, quando o governo do Reino Unido deu o equivalente a US$ 400 milhões em valores atuais para que a DMC fizesse uma fábrica na Irlanda do Norte, a 10 km da capital Belfast.
O país vivia uma guerra civil, em que grupos católicos e o IRA (Exército Republicano Irlandês) queriam a independência – e organizações protestantes, apoiadas por Londres, defendiam a permanência da nação no Reino Unido.
O conflito, que durou até 1998, causou milhares de mortes e rendeu músicas como Sunday Bloody Sunday, do U2 (ela se refere ao “Bloody Sunday”: 30 de janeiro de 1972, domingo em que soldados ingleses abriram fogo contra civis irlandeses desarmados, matando 14 e ferindo 26).
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O governo britânico enxergou na DeLorean uma ferramenta para tentar pacificar a Irlanda do Norte por vias econômicas, gerando empregos. Para John DeLorean, o negócio também era bom. Finalmente havia dinheiro para começar a linha de montagem do DMC-12. Só havia um problema: ele não sabia como fazer isso.
Não tinha experiência nem contatos na Europa, cujas leis e costumes trabalhistas eram diferentes dos EUA. Entra em cena, então, o engenheiro Colin Chapman: fundador da Lotus, fabricante inglesa de carros esportivos e uma das equipes mais importantes da história da Fórmula 1.
Chapman é considerado o pai da F-1 moderna, pois foi o primeiro a dominar a tecnologia de aerofólios e introduziu o efeito solo (um truque aerodinâmico que “gruda” o carro no chão, permitindo que ele faça curvas mais rápido). Chapman chegou com a missão de redesenhar o chassi e a suspensão do DMC-12, que tinham problemas.
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Mas a parceria entre Lotus e DeLorean começou mal. Os americanos sentiam, com razão, que os ingleses queriam comandar todo o trabalho. Desprestigiado, Bill Collins acabou pedindo demissão, e John nem ligou: deixou que o parceiro fosse embora. “Não achei que meu pai pudesse fazer isso, especialmente com alguém que sempre o ajudou e que estava tão emocionalmente envolvido com o carro”, disse à SUPER Zachary DeLorean, filho de John. “Quando o pessoal da Lotus apareceu e quis mandar em tudo, meu pai deveria ter deixado claro que as coisas não funcionavam assim. Mas ninguém sabe qual era realmente o acordo dele com o Chapman”, afirma.
De fato. Ninguém sabe ao certo, até hoje. Mas a continuação da história, ao longo da década de 1980, acabaria revelando um plano secreto de Chapman e DeLorean – e ele não era nada bom.
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A dama e a morte
QQuando finalmente foi lançado, em 1981, o DeLorean decepcionou. Era lento (tinha 130 cavalos, pouco para um esportivo, e demorava mais de 10 segundos para ir de 0 a 100 km/h).
Mais caro do que um Porsche (custava US$ 72 mil em valores de hoje), consumia muito combustível e tinha vários defeitos: a tinta dos tapetes desbotava e manchava os sapatos, as portas e janelas às vezes emperravam. Airbags e computador de bordo? Ficaram só na promessa. A fábrica tinha custos altíssimos, o carro não vendia bem, e o dinheiro foi acabando.
John DeLorean pediu socorro ao governo inglês, mas havia um problema: a primeira-ministra Margaret Thatcher, eleita em 1979. Conhecida como “Dama de Ferro” por sua implacável disposição em cortar gastos públicos, ela recusou ajuda à DMC (que havia sido financiada pelo governo anterior).
Numa carta enviada à montadora em outubro de 1982, Thatcher escreveu: “Entendo a posição em que os credores da empresa foram colocados. Mas não acredito que o governo deva subsidiar suas perdas”. John DeLorean declarou, numa entrevista, que Thatcher foi hostil porque achava que os operários da empresa eram ligados ao IRA.
Com as contas no vermelho e sem perspectiva de melhora, John tentou um movimento arriscado para salvar sua empresa – que no final lhe custou muito mais do que dinheiro. Em outubro de 1982, foi preso em Los Angeles, acusado de tentar contrabandear mais de 100 kg de cocaína para os EUA. É a sequência de encontros narrada no começo deste texto, em que o FBI armou situações para pegar DeLorean.
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A empresa foi à falência em 1982, após fabricar apenas 9 mil carros. E John se preparou para encarar a Justiça. O julgamento durou sete meses, em 1984. A mídia americana cobriu o caso intensamente. Isso inspirou os produtores de De Volta para o Futuro, que ainda estavam decidindo qual carro abrigaria o capacitor de fluxo. “John DeLorean estava sendo julgado. E aquele acabamento em aço era lindo”, disse Bob Gale, corroteirista do filme, numa entrevista à Cnet.
O julgamento terminou com uma surpresa: DeLorean foi absolvido, pois o júri entendeu que o governo tinha montado uma armação para condená-lo. Ele estava livre. Mas a tranquilidade durou pouco.
Logo em seguida, Cristina pediu o divórcio, e em 1985 John foi acusado de fraude, evasão fiscal e desvio de dinheiro de investidores. O caso envolvia a DeLorean Research Partnership (subsidiária da DMC), e uma empresa fantasma chamada GPD Services – que era só uma caixa postal em Genebra, na Suíça.
A polícia descobriu um acordo, feito ainda nos anos 1970, pelo qual John depositaria US$ 66 milhões (em valores atuais) de investidores e da ajuda do governo britânico na conta da GPD, de onde Colin Chapman teria sacado o dinheiro e transferido para contas espalhadas pela Europa, para depois repassar 50% para uma conta de John nos EUA.
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Em suma: os dois pegaram dinheiro da DMC, incluindo verba pública, desviaram e embolsaram. John apresentou uma carta da GPD dizendo que aquilo era apenas um empréstimo. Não colou. Sua ex-mulher, Cristina, disse que DeLorean forjava documentos em casa. A única pessoa que poderia elucidar o caso era Colin Chapman. Só havia um problema: ele estava morto.
Na noite de 16 de dezembro de 1982, após ver um concerto de jazz, Chapman voltou para casa e sofreu um infarto fulminante. Tinha 54 anos e saúde perfeita. Foi enterrado no dia seguinte, após um velório estranhamente rápido.
Por isso, há quem acredite que ele tenha forjado a própria morte para escapar das dívidas – e da cadeia. O juiz do caso declarou que Chapman, se estivesse vivo, pegaria pelo menos dez anos de detenção. DeLorean se livrou da prisão (sua pena poderia chegar a 87 anos), mas foi obrigado a pagar advogados e credores: quase US$ 100 milhões foram recuperados e devolvidos.
Não sobrou muito do patrimônio de John – que em 2000 vendeu seu último bem, uma fazenda em Nova Jersey, para o então corretor de imóveis Donald Trump. DeLorean morreu em 2005, aos 80 anos. Morava num apartamento pequeno ao lado da quarta esposa, Sally Baldwin. “Até meus 11 anos, nós éramos uma família normal. De repente, tudo mudou completamente”, diz Zachary. O filho de John hoje faz bicos de garçom e bartender em Cincinatti, Ohio, onde mora com seu cachorro em um apartamento com a pintura descascada e a cozinha encardida.
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Zachary tem uma vida simples e semianalógica – assistiu a Framing John DeLorean, documentário sobre a vida do pai lançado em 2019, em DVD. Usou o Skype pela primeira vez para dar entrevista à SUPER. Está juntando dinheiro para viver numa cabana e criar ovelhas, talvez no Alasca ou em Montana.
Kathryn DeLorean, a outra filha de John, tem 42 anos, é casada e tem três filhos. Na infância e na adolescência, sofreu por carregar o sobrenome do pai (era alvo de piadas na escola, por conta das aventuras de John com o tráfico). Mas hoje tenta proteger o legado DeLorean, participando de encontros de proprietários do DMC-12.
A DeLorean Motor Company ainda existe, pelo menos em nome. A marca foi comprada pelo mecânico Stephen Wynne em 1997. É uma paixão de longa data: Wynne era um dos poucos especialistas, nos EUA, em consertar DMC-12.
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“Trabalho com o carro há quase 40 anos, sei muito bem onde estão os defeitos. Nós ainda temos documentos originais da época, e eles mostram que foram feitas mais de 3 mil mudanças no processo de produção”, diz Stephen.
Ele acredita que, se a empresa tivesse um pouco mais de tempo, poderia ter superado os problemas técnicos e sobrevivido. Mas admite que a gestão de John DeLorean colocou tudo a perder. “Sou um grande fã do carro, mas não do homem que o inventou”, diz.
A DeLorean Motor Company se mantém vendendo peças e acessórios para o DMC-12, mas pretende voltar a fabricar o carro. O grande obstáculo para isso sempre foi a legislação americana, com normas rígidas de segurança e emissão de poluentes – que carros antigos, como o DeLorean, não conseguem atender. “Isso tornava as coisas impossíveis para nós, porque todas as montadoras tinham que cumprir os mesmos requisitos, independentemente de produzirem 20 carros ou 10 milhões.”
Em 2015, o Congresso dos EUA aprovou uma lei para flexibilizar isso: a Low Volume Motor Vehicle Manufacturers Act, que dispensa montadoras pequenas, com produção de até 325 carros por ano, de obedecer certas normas. A lei ficou na gaveta por cinco anos até finalmente ser promulgada em janeiro de 2020, abrindo as portas para o renascimento do DeLorean.
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Wynne pretende começar a fabricar o carro em 2021 e lançá-lo por US$ 100 mil (hoje ele tem sete DMC-12 usados à venda, entre US$ 21 mil e US$ 48 mil). O carro será visualmente idêntico ao original, mas terá um motor moderno, mais potente, e outras melhorias internas. Wynne diz que já conseguiu investidores – mas isso foi antes da pandemia, que pode mudar tudo.
Se o DeLorean for mesmo relançado, poderá concretizar uma previsão do Doutor Emmett Brown, em De Volta para o Futuro: “Quando esta belezinha alcançar 88 milhas por hora (140 km/h), uma coisa incrível vai acontecer”. No filme, o carro chega a essa velocidade num piscar de olhos (o que o DeLorean de verdade não conseguia) – e, ao alcançá-la, viaja no tempo. Algo que, se o DMC-12 realmente voltar, também acontecerá, de certa forma, na vida real.
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