Eles estão fazendo o uso de nicotina aumentar entre adolescentes pela 1ª vez em 20 anos, e novos estudos mostram que os cigarros eletrônicos trazem mais riscos do que se imaginava.
Texto: Alexandre Versignassi | Foto: Dulla | Design: Juliana Krauss
Experimentei meu primeiro cigarro em abril de 1992, aos 15 anos. Dois meses depois, parei de filar dos outros e parti para o profissionalismo: comprei um maço na padaria, e segui fazendo isso todo dia, com o rigor de um monge beneditino, pelos 27 anos seguintes. Foram 9.863 maços. 197 mil cigarros, and counting.
Se você é jovem e imbecil o bastante para seguir meu exemplo, vai chegar à casa dos 40 anos tendo gastado R$ 98 mil a preços correntes. Fora a conta nos pulmões, no coração, na cara – já que o danado acelera o envelhecimento não só na parte de dentro do corpo, mas na de fora também.
Transferi tudo isso para as contas dos fabricantes de cigarros porque a nicotina mudou a estrutura do meu cérebro. Me converteu em dependente químico. Se eu parar de fumar hoje, meu cérebro volta ao normal em alguns meses, dizem os médicos. O problema é parar, doutor: sem uma dose a cada 40 minutos, fico ansioso, desconcentrado, insone.
O que a nicotina faz é excitar a atividade dos neurônios por alguns instantes. E uma das consequências dessa excitação é um boost na produção de dopamina, o neurotransmissor do prazer.
Mas não existe dopamina grátis. Conforme você acostuma seu cérebro a essas doses pequenas e contínuas de alívio, os neurônios ficam mimados. Passam a berrar por nicotina o dia todo. A única forma de acalmá-los é acendendo um cigarro. Em pouco tempo você não fuma mais por prazer. Você fuma para atenuar a vontade
de fumar. Ponto.
Usar nicotina, enfim, é uma decisão estúpida. E não só pela nicotina. Quando o fogo do isqueiro entra em contato com o tabaco, ele desencadeia uma reação química descontrolada.
Átomos vão se desgarrando e se reunindo na forma de novas substâncias. Sete mil substâncias, para ser mais exato. Entre elas, 250 são tóxicas e 69 causam câncer: cádmio (um metal usado em bateria de carro), arsênico (veneno de rato), Polônio-210 (um elemento radioativo), benzeno (o componente principal da gasolina), acroleína (um herbicida), formol.
Em suma: o cigarro é uma arma química, que mata 8 milhões de pessoas por ano no mundo. Esse tipo de informação não é novo, claro. Tanto que a consciência sobre os malefícios do cigarro baixou drasticamente o número de fumantes.
No Brasil, a queda foi cavalar: de 35% em 1989 para apenas 9% hoje – em grande parte graças ao Instituto Nacional de Câncer, que promove tratamento e medicação gratuitos pelo SUS para quem quer
parar de fumar.
Isso faz do Brasil um dos países com menor prevalência de fumantes no mundo – nos EUA e no Reino Unido, por exemplo, são 14%. Nos mais tabacófilos, como a Rússia, 40% (se contar só os homens, 70%, o que torna o país de Putin uma versão real, e atual, de Mad Men, a série que se passa nos fumegantes anos 1960).
Mesmo assim, os números globais são otimistas. De acordo com a Organização Mundial de Saúde: a manufatura de tabaco pelo mundo parou de crescer desde 2017, e a tendência agora é de queda livre. Tanto que a British American Tobacco (segunda maior fabricante de cigarros no mundo, atrás da Philip Morris, e dona da Souza Cruz no Brasil) estima uma baixa de 3,5% nas vendas globais da indústria para este ano. É muita coisa.
As gigantes do tabaco, então, têm apostado suas fichas em outro produto: os cigarros eletrônicos. É que, enquanto a venda de cigarros normais cai, a das versões eletrônicas sobe. O número de usuários desses aparelhos cresceu 500% nos últimos sete anos – de 7 milhões em 2011 para 41 milhões em 2018. Não é nada perto dos mais ou menos 1 bilhão de fumantes que restam na Terra (20% da população adulta). Mas é aquela história: quando a Kodak deixou de desprezar as câmeras digitais, já era tarde. A indústria do cigarro, obviamente, não quer repetir a mesma história.
Mas falta combinar. Não exatamente com os russos, já que a venda de alguns desses dispositivos é permitida lá. Mas com os brasileiros, os australianos, os argentinos, os indianos… A venda de cigarros eletrônicos é proibida aqui e em dezenas de outros países. Isso acontece por dois motivos.
Primeiro, porque para boa parte dos órgãos nacionais de saúde não parece uma ideia razoável colocar mais um dispositivo de entrega de nicotina no mercado. Segundo, porque não há estudos o bastante para assegurar qual é o tamanho do risco que eles acarretam à saúde pública – a onda recente de mortes de usuários desses dispositivos nos EUA, que veremos mais adiante, indica que ainda há muito mesmo o que estudar.
Por essas, não há uniformidade alguma entre as legislações. A União Europeia libera os cigarros eletrônicos. No Japão e na Rússia, pode um tipo, mas não pode outro. Nos EUA, a venda só é livre por conta de uma brecha na lei. Os eletrônicos estão classificados como se fossem remédio para parar de fumar (tipo patches de nicotina). Mas é só para inglês ver: toda loja de conveniência vende – ao lado dos cigarros normais. No Brasil, convenhamos, é quase a mesma coisa: basta ir a alguma banca de jornal para comprar um cigarro eletrônico à margem da lei.
A Food and Drug Administration (FDA, a Anvisa dos EUA) tem até 2022 para criar uma lei de verdade para os eletrônicos, ou proibi-los de uma vez. A Anvisa não tem um deadline específico, mas começou a estudar o assunto profundamente a partir de agosto, e nos próximos meses vai tomar sua decisão.
Qual é a melhor escolha? Ter ou não ter eletrônicos no mercado? Talvez você já tenha uma opinião formada. Mas, como tudo o que envolve políticas públicas, a questão é mais complexa do que parece. Então vamos começar pelo começo.