Camuflagem: quando a arte imita a vida (e vice-versa)
Navios fantasiados de zebra e canhões pintados como quadros de Picasso: no século 20, os exércitos se inspiraram na natureza e na arte moderna para se esconder de seus rivais. O resultado foi a ciência nada exata da camuflagem. Conheça sua história.
por Bruno Vaiano
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Atualizado em 15 jan 2021, 15h27 - Publicado em
12 ago 2020
10h41
Havia algo estranho com as plantas do parque Van Cortlandt, no norte de Nova York, em 28 de abril de 1918. “Eu tropecei em um montinho de grama, que gemeu quando pisei nele, e então se ergueu diante de mim”, relatou a repórter Elene Foster no jornal New York Tribune. O arbusto falante era uma estudante de artes plásticas de 20 e poucos anos, vestindo um macacão coberto de folhas. Era voluntária de uma nova divisão das Forças Armadas americanas: o Corpo de Camuflagem da Reserva Feminina.
Ela não estava sozinha na paisagem: havia no mínimo dez mulheres escondidas no parque. Algumas vestiam fantasias de pedra. Outras, de tronco. “Em forma e corte, os trajes lembram sacos de dormir, mas com pernas. Se a mulher se vê ameaçada e está em meio às árvores, basta ficar parada para ser confundida com uma delas”, escreveu outro jornal, o New York Herald, em 8 de maio de 1918. Elas estavam enganando transeuntes para testar a eficácia dos trajes, que depois seriam enviados para proteger soldados no front oeste da 1ª Guerra Mundial.
As roupas camufladas viraram notícia porque eram algo revolucionário. Até essa época, disfarce não era o forte dos militares. Nos séculos 18 e 19, os exércitos europeus adotavam fardas berrantes – as tropas napoleônicas vestiam jaquetas azuis, os britânicos preferiam vermelho. Com a visibilidade limitada pelas espessas nuvens de pólvora dos canhões, as roupas coloridas tinham a mesma função de uniformes de futebol: permitir o reconhecimento de aliados e adversários rapidamente.
Esse problema deixou de existir na 1ª Guerra, quando os exércitos se isolaram atrás de trincheiras. A situação ficou mais parecida com um jogo de vôlei: cada time de um lado da rede – no caso, rede de arame farpado. Para piorar, os aviões de reconhecimento fotográfico podiam espiar atrás das linhas inimigas. Uniformes coloridos se tornaram alvos fáceis. O jeito era se esconder. Soldados, armas e veículos precisavam ser maquiados para simular objetos inofensivos. Outra opção era pintá-los de modo a deformar sua aparência ou a fazê-los desaparecer contra o fundo. Para realizar essas façanhas, os exércitos precisaram se aliar a pessoas que entendiam muito de pincel, mas quase nada de guerra: artistas plásticos.
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Jogo da imitação: o mimetismo
Tudo começou na França. O pintor Lucien-Victor Guirand de Scévola, formado na Escola de Belas Artes de Paris, foi convocado em 1915 para encabeçar a primeira unidade de camuflagem da história. Foi ele, inclusive, que cunhou a palavra camouflage – a partir do verbo camoufleur, que significa “disfarçar” em francês. De início, Scévola tinha 30 artistas sob seu comando; no final da guerra, milhares.
Uma das primeiras invenções desse grupo foram torres de observação blindadas que, por fora, eram esculpidas e pintadas para parecer um tronco de árvore. Essas árvores fake permitiam observar as linhas inimigas sem chamar atenção (espiar por cima de uma trincheira era quase suicídio: qualquer par de olhos que emergisse na linha de tiro era um alvo fácil). O truque, naturalmente, foi inspirado no bicho–pau – nome genérico que se dá às 2,8 mil espécies de insetos da ordem Phasmatodea que, por fora, têm a aparência de gravetos.
Os alemães logo roubaram a ideia, e cada exército passou a manter uma contagem minuciosa das árvores no perímetro inimigo. Assim, eles saberiam imediatamente se uma árvore falsa brotasse no horizonte da noite para o dia. Para contornar o problema, os camoufleurs – termo usado para se referir aos artistas militares – passaram a ficar na retaguarda esculpindo troncos idênticos aos que já existiam. Durante a noite, era só cortar a árvore verdadeira e instalar a torre de observação, preservando a contagem.
Achou trabalhoso? Na 2ª Guerra, o engodo alcançou níveis literalmente cinematográficos. Fred Pusey, cenografista que seria indicado ao Emmy em 1976, construiu um porto inteiro de mentira no litoral do Egito em 1942 para enganar o estrategista alemão Erwin Rommel. Depois, na Operação Bertram – que garantiu a vitória dos britânicos no deserto do Saara, e o domínio do norte da África – os ingleses disfarçaram seus tanques de caminhões inócuos (e os caminhões, de tanques).
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Na 2ª Guerra, os britânicos criaram suas próprias miragens no deserto do Saara: disfarçaram tanques de caminhões e caminhões de tanques para enganar o comandante nazista Erwin Rommel.
Esse truque também já era familiar aos biólogos desde o século 19. A seleção natural não se limita aos animais que fingem ser galhos e folhas: também faz gato passar por lebre e lebre passar por gato. O exemplo mais clássico é o de borboletas inofensivas que se protegem de predadores adquirindo uma aparência similar à de borboletas tóxicas – o chamado mimetismo batesiano. Mimesis significa “imitação” em grego. Já batesiano vem do naturalista inglês Henry Bates, que descobriu essa tática nos 11 anos que passou na Amazônia caçando borboletas e besouros para o Museu de História Natural em Londres. (Das peripécias desse gringo de costeletas em Belém do Pará, a mais célebre foi explodir com pólvora uma fileira de formigas saúvas que roubou sua comida.)
Outra contribuição nacional à biologia do disfarce foi o mimetismo mülleriano, descoberto por Fritz Müller na mesma época. Esse alemão, amigo de Darwin, se mudou para a zona rural de Blumenau (SC) para viver como um proto-hippie apaixonado. Por muito tempo ele trabalhou como pesquisador viajante do Museu Nacional; sua coleção foi destruída pelo incêndio de 2018. O mimetismo mülleriano ocorre quando duas espécies igualmente perigosas evoluem para ficar parecidas entre si – desse jeito, um predador acostumado a evitar uma, evita a outra também, no embalo.
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A imitação é um truque corrente na natureza. Além de 2,8 mil espécies de bicho-pau, há dezenas de louva-a-deuses que imitam flores; e a borboleta Kallima inachus tem asas idênticas a folhas secas.
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Guerra ao cubo: a camuflagem disruptiva
De volta às trincheiras. Na 1ª Guerra, outra das atribuições do grupo de Scévola era esconder canhões atrás de telas enormes. A solução mais óbvia seria seguir a mesma lógica dos troncos falsos: pintar folhas e galhos ultrarrealistas no tecido. Mas o camoufleur André Mare – que na época já era famoso como um dos fundadores do estilo art deco – teve outra ideia: distorcer a imagem do canhão em vez de fazê-lo parecer um vegetal. Ele propôs decorar as posições de artilharia com faixas geométricas de cores discretas, similares às do fundo, para que ficasse mais difícil distinguir os contornos das armas à distância.
A ideia vinha do cubismo, um movimento artístico encabeçado por Pablo Picasso e Georges Braque. Em seus quadros, os dois achatavam os objetos para mostrá-los de todas as perspectivas ao mesmo tempo. Como se você desmontasse uma caixa para observar os seis lados de uma vez. A inspiração ficou tão óbvia que, quando viu os canhões cubistas de Mare pela primeira vez desfilando nas ruas de Paris, Picasso exclamou: “Fomos nós que inventamos isso”.
A camuflagem estilo Picasso foi elevada a um nível superior pelo britânico Norman Wilkinson, que de vanguardista não tinha nada: até o início da guerra, era um artista antiquado, que pintava paisagens náuticas (uma versão século 19 dos nerds de avião que tiram fotos no aeroporto por hobby). Wilkinson sabia que o maior problema dos navios de suprimentos dos Aliados na 1ª Guerra eram torpedos disparados pelos submarinos alemães. Mas disparar um torpedo exige alguns cálculos, já que esse projéteis são relativamente lerdos: o submarino precisa saber o lugar em que o navio vai estar no momento em que o torpedo alcançá-lo. Ou seja: deve mirar no futuro.
Para fazer essa conta, é preciso determinar a velocidade e direção do alvo. Wilkinson imaginou que se pintasse os navios como zebras, com listras contrastantes que mudam de ângulo bruscamente, ele quebraria os contornos familiares do casco e das chaminés. Isso dificultaria o trabalho de auferir a velocidade e a direção do navio, complicando bem a vida do torpedeiro.
O look abstrato e futurista foi adotado enfaticamente (veja as fotos à esquerda) e tornou os navios peças de propaganda poderosas. Em fotos de 1917, na Union Square, em Manhattan, uma multidão de homens de paletó e chapéu em hora de almoço acompanhava diariamente a pintura de um navio listrado pelas mulheres do Corpo de Camuflagem. A embarcação havia sido rebocada até a praça para despertar o interesse dos civis no esforço de guerra.
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Esse tipo de camuflagem, conhecida em inglês como dazzle – palavra que nesse contexto se traduz como “confusão” ou “incômodo” –, não é mais usado. Na 2ª Guerra, surgiram camuflagens disruptivas mais próximas do que vem à cabeça de uma pessoa leiga quando ouve a palavra “camuflagem”: manchas arredondadas em tons de verde, marrom, bege e preto.
Navios com pintura zebrada eram uma tentativa de confundir a mira dos submarinos torpedeiros na 1ª Guerra. No centro, o esboço de um canhão camuflagem “cubista”, que foi para o front.
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Padrões desse tipo também têm o objetivo de borrar os contornos de um soldado ou de um veículo. Mas não para gerar desconforto visual, e sim para fazer a figura se confundir com o fundo – como na proposta original de André Mare para os canhões. Volta e meia, surge até um revival da 1ª Guerra: a camuflagem M90 usada atualmente pelos militares suecos substituiu as manchas arredondadas por formas geométricas (Picasso está de olho). E uniformes com manchas pixeladas feito uma tela de Minecraft se tornaram comuns desde os anos 2000. Mesmo assim, o objetivo segue sendo o mesmo: transformar o soldado em paisagem.
À prova de distraído
Alguns exemplos de camuflagem disruptiva em ação no mundo animal.
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1. No inverno, os pássaros Lagopus leucura se tornam brancos para sumir na neve. No verão, adquirem a aparência da foto acima (acredite: há cinco filhotes ali).
2. Nas savanas africanas, a pelagem chamativa do leopardo brinca com os pontos de sombra que se formam no mato amarelado – e se torna muito discreta.
3. As aranhas saltadoras Menemerus têm padrões disruptivos em seus pelos. Outras aranhas imitam a textura de líquens, cocô de pássaro e até de joaninhas venenosas.
4. O cocho, um molusco, tem bolsas microscópicas de pigmento na pele – que mudam de cor como pixels em uma tela para que o animal suma contra fundos variados.
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A ilusão da barriga branca: countershading
Se você vai desenhar um tubarão, o ideal é colorir as costas do peixão – que estão iluminadas pela luz do Sol – em um tom mais claro que a barriga, que está na sombra. Esse recurso fornece a ilusão de tridimensionalidade. Acontece que a coloração natural do tubarão é o oposto disso: as costas são de um tom de cinza mais escuro que a barriga. Ao clarear as costas para simular a luz do Sol, você vai acabar empregando um tom muito parecido com o da barriga. Aí o peixe fica monocromático. Visto de lado, perde o efeito 3D.
Em 1892, um pintor americano excêntrico chamado Abbott Thayer percebeu que esse “achatamento” acontecia com muitos dos animais que retratava, e teve uma luz. Levantou a hipótese de que o contraste entre barriga e costas era uma forma de camuflagem batizada de countershading (“contrassombreamento”) – que você pode ver em ação, tanto na natureza quanto na guerra, no box abaixo:
Jogo de claro e escuro
Entenda o countershading, uma técnica de camuflagem que manipula sombras em vez de cores.
A origem da ideia
Em 1892, o pintor Abbott Thayer propôs que muitos animais têm a barriga mais clara que as costas para se camuflar. Entenda:
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1. A luz do Sol deixa as costas dos animais mais claras e faz uma sombra escurecer a barriga. A sombra torna os contornos do animal bem visíveis.
2. Para compensar esse efeito 3D, bichos como os tubarões tem a barriga mais clara que as costas. É o countershading (“contrassombreamento”).
3. Com a parte iluminada mais escura e a parte sombreada mais clara, as cores se equilibram e o animal ganha uma aparência achatada, mais discreta.
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Veja a foto de um teste: há dois passarinhos na imagem. Mas só o da esquerda é visível – o da direita sumiu graças ao countershading.
1. Só que ao contrário
Thayer sugeriu que as lagartinhas Actias luna têm a barriga mais escura, em vez das costas, porque ficam penduradas de ponta-cabeça.
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2. Feito uma rocha
Uma demonstração clássica de countershading: em locais áridos, os dois tons de bege do Ibix (nome de várias espécies do gênero das cabras) se confundem com as pedras.
3. Prova prática
Em agosto de 1940, o biólogo Hugh Cott pintou dois canhões, um com countershading, outro sem, para demonstrar a tática ao exército britânico. Funcionou: o canhão de trás ficou quase invisível.
Era uma ideia boa. Mas nem Abbott, nem seu seguidor, Hugh Cott, conseguiram convencer os militares a adotar a tática amplamente. Entre os biólogos, por sua vez, não há consenso sobre a real eficácia do countershading. Embora ele sem dúvida seja útil em algumas situações, talvez não aumente as chances de sobrevivência o suficiente para ter desencadeado o processo de seleção natural em tantas espécies diferentes. Essa pintura pode ter evoluído por outros motivos.
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Por exemplo: em espécies voadoras e aquáticas, há a possibilidade de que a barriga seja mais clara para que o animal se disfarce contra a luz do Sol da perspectiva de quem olha de baixo para cima. E que a parte de cima seja escura e manchada para o caso de o animal ser visto de cima para baixo – contra o chão. Esse truque foi usado na pintura de muitos aviões a partir da 2ª Guerra: azul ou cinza na superfície inferior das asas, para confundir com o céu, camuflagem em tons terrosos na parte de cima. Também existe, porém, uma grande chance de que essas variações de cor não tenham nada a ver com disfarces – e que as costas de tantos animais sejam mais escuras por outro motivo, como protegê-los do Sol.
Os caças Spitfire britânicos, como certos peixes, eram manchados em cima (para serem vistos contra o solo) e mais claros embaixo (para serem vistos contra o céu); mas os emblemas estragavam o disfarce.
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A incerteza em torno do countershading ilustra bem as contradições da camuflagem militar. Em um século de existência, ela foi uma empreitada tão artística quanto científica – que, nos primórdios, foi mais bem-sucedida em aumentar o moral da tropa que em protegê-la. Por exemplo: experimentos recentes revelaram que a ilusão de ótica pretendida por Wilkinson com os navios zebrados só funcionaria se eles se deslocassem muito mais rápido do que se deslocavam de verdade. O efeito placebo, porém, não era de se ignorar: os marujos se sentiam bem mais confiantes – e os tripulantes de submarinos torpedeiros, bem menos.
Até na guerra contemporânea, em que a camuflagem atingiu níveis de precisão científica sem precedentes com os aviões invisíveis a radar, pinturas disruptivas ainda são aplicadas com finalidade decorativa: em setembro de 2015, na comemoração de 70 anos do fim da 2ª Guerra, tanques chineses desfilaram em Beijing pintados de um azul chamativo. Uma tentativa de se esconder? Dificilmente. Está mais para uma versão contemporânea de um hábito que existe há milhares de anos: pintar o rosto para a batalha. Ainda que essa maquiagem provavelmente vá ficar restrita apenas às paradas militares. Afinal, na guerra é como na natureza: no ataque ou na defesa, quem se esconde melhor já larga na frente.
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