Esposa de Jesus. Santa. Prostituta. Maria Madalena é a figura mais misteriosa do Novo Testamento - e quase tudo que é dito sobre ela é puro mito.
por Ana Carolina Leonardi
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Atualizado em 10 mar 2022, 10h56 - Publicado em
23 out 2017
17h33
“Seu corpo resplandece em maravilhosa beleza. Uma beleza brilhante, porém, raramente se une à castidade.”
É assim que Maria Madalena aparece descrita num texto do século 12, escrito por monges do norte da Europa. E é assim que boa parte dos cristãos a conhece hoje: uma figura bela e promíscua. Uma mulher que, após uma vida de pecados, se lança aos pés de Jesus em busca de redenção. Essa história de arrependimento e iluminação é motivo de fascínio entre crentes e não crentes há gerações. Só tem um detalhe: nada disso está nos evangelhos.
Uma série de documentos religiosos do início do cristianismo, inclusive, mostram uma Madalena bem diferente: uma líder religiosa, superior aos próprios apóstolos de Cristo – e mais amada por Ele do que qualquer outra pessoa.
Como essa personagem proeminente acabou reduzida à figura silenciosa da “Madalena arrependida”? É o que vamos ver a seguir.
O Novo Testamento menciona 16 mulheres. Seis delas se chamam Maria. Não é coincidência: de todas as mulheres registradas em censos feitos entre 330 a.C. e 200 d.C. na região onde hoje ficam Israel e os territórios palestinos, 24% eram Marias (ou Mariams, no original em aramaico). O nome era popular por ser uma variação de “Miriam” – irmã de Moisés e heroína do Velho Testamento.
Para separar as Marias do Novo Testamento e evitar confusão, todas são identificadas por um parentesco masculino: elas são sempre mães, irmãs ou esposas de alguém. Todas, com exceção de uma. Maria Madalena nunca aparece atrelada a uma figura masculina.
Portanto, precisou de outro tipo de apelido. É quase consenso que “Madalena” identifica sua cidade de origem, Magdala, a 7 quilômetros de Cafarnaum, o vilarejo que servia de quartel-general para Jesus nas margens do Mar da Galileia.
E a Bíblia não diz muito mais sobre quem foi Madalena. Em três dos evangelhos, ela é mencionada na crucificação e no sepultamento de Jesus. Nos quatro livros (Mateus, Marcos, Lucas e João), ela é testemunha da tumba vazia, símbolo da ressurreição de Cristo. E em dois deles é a primeira a ver Jesus ressuscitado.
O único evangelho a falar dela antes da crucificação é o de Lucas: Madalena, junto a Joana, Susana e outras que acompanhavam Jesus desde a Galileia, usava seus bens para financiar o ministério de Cristo. Aliás, também é só em Lucas que surge algum indício de um passado mais infame: Madalena teria sido libertada de sete demônios. (O trecho de Marcos que a menciona assim é um anexo, adicionado depois da versão original do manuscrito.) E é isso. Nada mais é dito sobre Maria Madalena. Isso não quer dizer, porém, que o Novo Testamento não dê pano para a manga.
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Grande parte da confusão sobre a figura dela veio por conta de uma tentativa de harmonizar todos os evangelhos. Mas a verdade é que isso não é possível. Os quatro livros foram escritos em épocas diferentes, com propósitos diferentes. O mais antigo deles, segundo as evidências históricas, é Marcos. O relato dele teria servido como base para grande parte de Mateus e Lucas. Por último, vem o evangelho que teria sido escrito por João, composto anos depois, entre 90 e 110 d.C. Essas diferenças importam porque, às vezes, as descrições dos evangelhos sobre o mesmo episódio contradizem umas às outras. E isso acontece em dois episódios vitais para a história de Maria Madalena.
Primeiro, vamos ao ápice da carreira dela no Novo Testamento: a ressurreição de Jesus. Em todas as versões da história, ela está presente na morte de Cristo e presencia seu sepultamento. Madalena ainda volta ao sepulcro de Cristo no domingo de manhã. Mas, para sua surpresa, ela encontra a tumba vazia.
A partir daqui, todos os evangelhos diferem. Marcos é o mais curto e grosso: Madalena e outras mulheres encontram anjos, que explicam que o Senhor ressuscitou. Elas são enviadas para contar aos discípulos, mas ficam com medo e não dizem nada. Em Mateus, elas aceitam a missão, amedrontadas, mas felizes – e o próprio Jesus aparece a elas.
João traz a cena mais íntima de todas. Madalena encontra o sepulcro vazio e se desespera. Corre a chamar os discípulos, mas só dois a acompanham. Eles veem a sepultura vazia, não entendem nada e voltam para casa. Madalena fica. Jesus aparece, só para ela, e pergunta: “Por que choras?” Maria não o reconhece. Na realidade, pensa que é o jardineiro. É só quando Jesus a chama pelo nome que ela percebe quem ele é. Ele pede que Madalena vá aos apóstolos contar sobre a ressurreição. E a história dela termina com a frase apoteótica “Eu vi o Senhor!”.
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Em apenas um dos evangelhos não é Madalena quem vê Jesus após a ressurreição. No livro de Lucas, ela e outras mulheres só ficam sabendo que Jesus voltou à vida por um recado de anjos. Quando elas vão levar a mensagem aos discípulos, nenhum deles acredita. “As palavras daquelas mulheres pareciam delírio”, diz o texto.
A primeira aparição de Jesus ressurreto, em Lucas, acontece para Simão Pedro. Pedro, você sabe, é o mais proeminente dos apóstolos. Primeiro líder cristão em Roma, é tradicionalmente considerado o primeiro papa. “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”, diz Jesus, no Evangelho de Mateus. E é essa passagem que a Igreja Católica usa para justificar a autoridade de Pedro acima de qualquer outro líder religioso. Essa substituição em Lucas, portanto, é importante – e um prenúncio da rivalidade entre Pedro e Madalena, que veremos mais à frente.
A partir desse ponto, dá para levantar o cartão amarelo para o relato de Lucas sobre Maria Madalena. Primeiro, ele é o único a descrevê-la como endemoniada. Depois, é o único a remover dela o título de primeira testemunha do Jesus ressuscitado. E não para por aí. No capítulo 7, Lucas descreve uma cena que aparece em todos os evangelhos: uma mulher vem ungir Jesus. Em Marcos e Mateus, quem faz isso é uma figura anônima, que unge a cabeça do mestre, como se fazia com líderes importantes. O ato é interpretado como quase profético, antecipatório da morte de Jesus. Em João, a mesma coisa, só que a unção é menos prestigiosa, feita nos pés de Cristo, e a responsável por ela é Maria, irmã de Lázaro – aquele a quem Jesus ressuscitou.
Em Lucas, de novo, é tudo diferente: quem unge os pés de Jesus é uma “mulher da cidade, uma pecadora” – eufemismo para prostituta. A ação dela é de arrependimento e amor. Imediatamente depois, Lucas apresenta ao leitor as seguidoras de Jesus, a primeira delas “Madalena, da qual saíram sete demônios”. A consequência direta é a mistura das personagens na cabeça do leitor – Madalena, a prostituta anônima e a irmã de Lázaro são fundidas em uma pessoa só.
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O teólogo Robert Price argumenta, ainda, que a tal “possessão demoníaca” de Maria, mais do que dar uma história de origem à personagem, retrata uma polêmica maior sobre o papel de Madalena nos primeiros anos do cristianismo. Uma polêmica que não está no Novo Testamento, mas aparece muito bem documentada nos evangelhos apócrifos. Vamos a eles.
Pseudobiografia
A Lenda Dourada foi um sucesso medieval. Essa coletânea de pseudobiografias de santos, escrita no século 13, traz uma versão colorida e aventureira de Maria Madalena – que acabou ressuscitada em O Código da Vinci. Na Lenda Dourada, ela é irmã de Lázaro e Marta. Todos são ricos, com títulos de nobreza, mas Madalena se entrega à prostituição. O motivo? O casamento de Caná, aquele em que Jesus transforma água em vinho. Madalena seria a noiva, prestes a se casar com ninguém menos que o apóstolo João. O rapaz larga tudo para seguir Jesus. Madalena, rejeitada, se dedica aos “prazeres carnais”, até se converter, tempos depois.
A história continua após 14 anos (e segue absurda): os irmãos são exilados e chegam, por acidente, a Marselha, no sul da França. Madalena se isola em uma caverna por 30 anos de reclusão e penitência. A caverna de Ste. Baume é, até hoje, lugar de peregrinação para os fiéis de Madalena. Ok, mas e o sexo? E a conspiração para esconder os filhos com Jesus? Essa história é bem mais recente.
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A Madalena dos apócrifos
Se você abrir uma Bíblia cristã em qualquer lugar do mundo, vai encontrar sempre os mesmos livros, qualquer que seja a língua ou versão. Mas o que você conhece hoje como o conjunto sólido e imutável do Novo Testamento não reflete em nada o ambiente do início do cristianismo. Do século 1 ao século 4, aliás, não existia nem cristianismo consolidado, nem livros oficiais, mas, sim, uma série de comunidades cristãs, cada uma com suas prioridades doutrinárias – e até com diferentes evangelhos. Quando a Igreja começou a unificar o cristianismo, escolheu dentre os manuscritos mais antigos aqueles que seriam considerados oficiais, inspirados por Deus. São esses os livros que todo mundo conhece, copiados e recopiados fielmente pelo clero e preservados até hoje.
Mas eles não são os únicos textos do cristianismo primitivo que existem. Aos outros livros, que não passaram pelo pente-fino da Igreja, se dá o nome de apócrifos. Eles são, em sua maioria, menos antigos que os evangelhos oficiais (ou canônicos). Por não terem sido tão bem preservados (a maioria deles foi encontrada dentro de vasos, onde foram mantidos por séculos), eles são fragmentados, com sérios prejuízos ao texto causados pelo tempo. Também são, porém, o retrato mais fiel que temos sobre a diversidade que existia nos primórdios do cristianismo.
É nesses textos que encontramos uma Madalena diferente. Ela serve de porta-voz dos discípulos junto a Cristo, uma espécie de “aluna-prodígio”, que entende os ensinamentos melhor que os demais seguidores e, sim, aparece ali como uma mulher bem mais íntima de Jesus do que os evangelhos canônicos dão a entender.
O apócrifo de Filipe, escrito nos anos 200 d.C., é o mais citado por quem defende que Jesus foi casado com Madalena. Ela é citada, pela primeira vez, entre outras duas Marias da vida de Jesus: “Andavam com o Senhor três Marias. Uma, sua mãe, outra sua irmã e a outra sua companheira”.
Pouco depois, o texto chega à sua frase mais polêmica. Como em outros apócrifos, há trechos pouco legíveis. Alguns deles, representados entre colchetes, foram preenchidos por especialistas. Diz Filipe: “A companheira do [Salvador] é […] Maria Madalena […amava] a ela mais do que aos discípulos […e costumava] beijá-la [muito] em sua […]”. A palavra que designa onde o beijo é dado não está nítida – mas, para aliviar o suspense, as únicas alternativas levadas a sério pelos acadêmicos são a testa e a boca.
O interessante aqui é que o termo em grego que Filipe usa para “companheira” é koinonôs. Na Bíblia, ele tem uma série de sentidos – pode, sim, significar esposa, apesar de ser um uso incomum. Também aparece indicando parceiros de evangelização, companheiros de fé, sócios, amigos. O essencial é que o termo transmite a noção de compartilhar algo. Em nenhum dos outros apócrifos Madalena é chamada assim. Por outro lado, nenhum outro personagem é chamado de koinonôs de Jesus.
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A favor dos que defendem Madalena e Jesus como casal, há ainda outro detalhe. Logo depois que o Evangelho de Filipe descreve a relação entre os dois, o texto passa a falar sobre sexo – “tentações carnais”, no caso. Ele diz: “Não temam a carne, nem amem-na. Se a temerem, ela ganhará domínio sobre vocês. Se a amarem, ela irá engoli-los e paralisá-los”. É como se Madalena, como companheira de Jesus, fosse a introdução para a discussão sobre a pureza/impureza do sexo, que Filipe encerra sem se comprometer com nenhum lado.
Em resumo, desse texto só dá para concluir mesmo que Madalena era alguém especial para Cristo – até porque isso volta a aparecer nesse apócrifo, dessa vez na boca dos discípulos, que perguntam, na lata: “Por que você a ama mais que a nós?”.
Jesus responde com uma miniparábola: “Por que eu não amo a vocês como amo a ela? Quando um homem cego e um que enxerga estão juntos no escuro, um não é diferente do outro. Mas, quando chega a luz, aquele que enxerga a vê. O cego, porém, permanece na escuridão”. A interpretação mais óbvia é que há algo que Maria compreende que os discípulos não são capazes de entender. E isso fica ainda mais claro no ponto alto dela nos apócrifos – o próprio evangelho de Maria Madalena.
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A versão original do Evangelho de Maria teria sido escrita entre 125 d.C. e 175 d.C. – e não por ela. Aliás: o nome de um evangelho, seja ele apócrifo ou canônico, nem sempre designa o autor, mas em geral um personagem proeminente na narrativa, como é o caso aqui.
Das 19 páginas que compõem o texto, dez estão perdidas. No que restou do manuscrito, encontramos Jesus dando suas últimas instruções para os discípulos, ordenando que preguem sobre o Reino dos Céus. Depois, os deixa para sempre. O curioso aqui é que a reação dos apóstolos é completamente diferente de qualquer episódio pós-ressurreição visto na Bíblia. Eles se acovardam. Com medo, lamentam: “Como podemos ir até os gentios (não judeus) e pregar? Se eles não O pouparam, como poderão poupar-nos?”
No instante de desânimo, surge Maria Madalena. Ela abraça a todos, e garante que a graça de Jesus vai protegê-los: “Vamos louvar a grandeza dele, pois ele nos preparou”.
Os discípulos se acalmam e voltam a se dedicar à missão que Jesus lhes deixou. Nessa hora, Pedro faz um pedido. “Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que às outras mulheres. Dize-nos as palavras do Salvador que recordas, aquelas que conheces e nós não conhecemos.” Maria, então, se dispõe a contar “aquilo que foi ocultado” deles.
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Aqui temos uma interrupção, por conta das páginas desaparecidas. Quando a narrativa é retomada, Maria está falando de um confronto entre a alma humana e vários poderes espirituais malignos, tipo de história corrente nos apócrifos.
O que vale para nós é que esse trecho todo indica uma sabedoria de Maria que os discípulos não tinham. E o manuscrito deixa claro: eles não gostam nada disso. Quando ela termina de falar, começa uma discussão. André, irmão de Pedro, diz aos demais: “Eu não creio que o Salvador tenha dito essas coisas”. Pedro aproveita a deixa: “Por que deveríamos escutar essa mulher? Será que o Senhor realmente falou com uma mulher em segredo, e não abertamente? Teria preferido ela a nós?”. Nessa hora, o discípulo Levi sai em defesa de Maria, dizendo que Jesus a amava mais do que a todos eles porque a conhecia profundamente. Note que é o mesmo tipo de relação descrita no Evangelho de Filipe.
Preste atenção também na postura de Pedro: ele é quem pede a Maria para ensinar o que eles não sabem, porque ela é amada “mais que as outras mulheres”. Mas então parece mudar de ideia – quem sabe porque ela sabia mais do que ele esperava, ou porque ela era amada acima deles próprios.
Não é a última vez nos apócrifos que Madalena é vista como ameaça por outros discípulos – especialmente por Pedro. Em Pistis Sophia, um apócrifo do século 3, é ela quem interpreta a maior parte dos ensinamentos de Jesus, e seu entendimento é elogiado pelo mestre: “Maria Madalena e João serão superiores a todos os meus discípulos […] eles estarão na minha mão direita e na esquerda, eu sou eles e eles são eu”.
No Livro Maniqueu de Salmos, apócrifo do século 4, Madalena é colocada como parte dos apóstolos: “Maria é a jogadora de redes, caçando os outros 11 que estão perdidos”. A metáfora parece com o famoso “farei de vocês pescadores de homens”, pescando as almas perdidas. Só que, no caso, Madalena estaria salvando os próprios apóstolos, espalhados depois da morte de Jesus.
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Com tanta exaltação à figura de Maria, surge uma rivalidade com Pedro. Em Pistis Sophia, o apóstolo apela a Jesus: “Meu Senhor, não podemos tolerar mais essa mulher. Ela não permite que nenhum de nós diga uma palavra, enquanto ela fala com frequência”. A reclamação tem efeito porque, na segunda parte do texto, Maria está preocupada. “Tenho medo de Pedro, pois ele me ameaça e odeia nossa raça.” Raça, aqui, é genos: Pedro odeia o gênero feminino como um todo.
Não se trata de exagero interpretativo. Atos de Filipe, outro apócrifo, diz que Pedro “foge de todos os lugares onde haja uma mulher”. Na quarta parte de Pistis Sophia, Pedro volta a perder a linha: “Meu Senhor, que as mulheres parem de perguntar, para que nós também possamos perguntar”. Jane Schaberg (1938-2012), que foi professora de religião na Universidade de Detroit, associava essa fala a um trecho de 1 Timóteo, um dos livros do Novo Testamento: “Que a mulher aprenda em silêncio, em total submissão. Não permito que mulher alguma ensine ou exerça autoridade sobre um homem. Esteja, portanto, em silêncio”.
Em resumo, a Madalena dos apócrifos é a grande rival de Pedro, que dialoga de igual para igual com os apóstolos, quando não em posição superior no que tange ao conhecimento espiritual e ao afeto de Jesus.
Mas por que a imagem de Maria Madalena que acabou cristalizada na liturgia cristã não tem nada a ver com essa que vimos agora? Não é só por causa dos evangelhos canônicos, que mal a mencionam, mas também culpa de uma feroz disputa ideológica que explode no cristianismo primitivo.
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A linhagem sagrada
O controverso enredo de O Código da Vinci – que reacendeu as polêmicas sobre Madalena na cultura popular – é inspirado por outro livro: O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, de 1982. A Lenda Dourada funciona como ponto de partida. Ali, Madalena também vai para o sul da França, mas para esconder os filhos que teve com Cristo. Eles teriam se misturado às famílias nobres e se tornado, eventualmente, a dinastia Merovíngia, protegida por uma sociedade secreta chamada Priorado de Sião. O livro se pretendia uma obra de não ficção, baseada em fontes históricas. O problema é que as tais fontes eram os Dossiers Secrets d’Henri Lobineau, documentos forjados na década de 1960. O criador dos “dossiês secretos”, Pierre Plantard, inventou tudo para justificar que ele próprio seria descendente de Cristo. Quanta humildade.
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A Madalena medieval
A imagem de Madalena como prostituta arrependida ganhou território no século 4. No mesmo período, o cristianismo se transformava em religião oficial do Império Romano. Com isso, a facção cristã de Roma ganha um poder sem precedentes em relação às comunidades tão diversas do cristianismo primitivo.
Uma das consequências disso foi justamente a oficialização de alguns evangelhos e o abandono de outros textos, cultuados pelos grupos cristãos não romanos. Mas, para apagar as tradições dessas seitas, não bastava jogar seus livros para escanteio. Era preciso dissipar seus símbolos. E um deles, como os apócrifos deixam claro, era Maria Madalena.
Um dos motivos para isso é a visão que o cristianismo romano tinha de Cristo. Os bispos entendiam Jesus como um asceta – alguém completamente dedicado à espiritualidade, que rejeita os prazeres da carne. Logo, deixar que se espalhasse uma tradição que dizia que Jesus amava uma mulher acima de qualquer outra pessoa era um belo desserviço.
Bem mais importante que isso, porém, é o fato de a Madalena dos apócrifos desafiar abertamente a primazia e a autoridade de Pedro, o grande patriarca do cristianismo romano. É dele que emana toda a autoridade papal – até hoje. Para que um símbolo pudesse reinar sozinho, era preciso sumir com o outro. E, nisso, quem acabou de fora foi Madalena.
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Morria a líder dos apóstolos, nascia o mito da prostituta arrependida. Essa “nova Maria” chegou a ser oficializada por Sua Santidade: em 591, o papa Gregório Magno declara que Madalena, a prostituta de Lucas e a irmã de Lázaro são uma só pessoa.
A imagem de Maria Madalena como prostituta se fortalece na Idade Média. Num mundo sem novelas nem seriados, uma das poucas diversões disponíveis eram as vitas dos santos. Eram pseudobiografias, que tentavam saciar a sede por detalhes que não estavam nos evangelhos – mais ou menos como acontece hoje com as fanfics. E, também como nas fanfics atuais, as histórias de maior sucesso eram as que tinham a ver com sexo. Logo, Madalena virou personagem favorita dessas pseudobiografias. A mais famosa delas é a Lenda Dourada, uma coleções de tradições orais escrita por Jacobus de Varagine, arcebispo de Gênova, em 1260. Ali, Madalena é uma moça linda e rica, que é abandonada pelo noivo. Rejeitada, se entrega à prostituição. Depois, se converte e se torna seguidora íntima de Jesus. No fim da vida, ela se isola em penitência e é alimentada diariamente por anjos até a sua morte.
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O enredo é de blockbuster: o herói sofre um trauma e vai parar no fundo do poço. Só escapa graças à ajuda de um grande mestre. Então retorna mais forte e encontra a vitória, a suprema redenção. São esses elementos narrativos – que estão em Star Wars, Kill Bill, Rocky, Karatê Kid… – que tornam a Maria Madalena medieval tão irresistível. E o sucesso da aventura da prostituta redimida foi o golpe final para relegar ao esquecimento a líder política do cristianismo primitivo.
Mas qual dessas Madalenas é a real? Não há como saber o que aconteceu de fato na Galileia do século 1. Mal dá para cravar que essa mulher existiu. Todos esses textos – apócrifos, canônicos, vitas – são obras de doutrinação, não livros de história. Mas, assim como a história, a religião foi escrita pelos vitoriosos. A figura distorcida de Madalena é vestígio de uma luta que muitas comunidades cristãs primitivas perderam. E, junto com elas, foi-se o símbolo de uma companheira de Cristo bem mais forte do que a que acabou impressa nos evangelhos – e nas nossas mentes.
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