Texto: Bruno Garattoni | Design: Juliana Krauss
Terça-feira, uma da tarde. Estamos nos aproximando do Aeroporto Internacional Cristiano Ronaldo, na Ilha da Madeira, onde o pouso é um dos mais difíceis do mundo. A pista é curta, 2.781 metros, acaba no mar e tem um morro bem ao lado. Na década de 1970, aqui aconteceram três acidentes fatais, com 170 mortos. Meu Airbus A320neo, com o qual decolei de Lisboa, voa tranquilo e corretamente configurado para a aproximação: 2.100 pés de altura, velocidade a 160 nós, flaps em 20 graus. O tal morro impede uma abordagem direta e me obriga a dar uma volta de quase 180 graus. Completo a manobra, alinho o avião com a pista, e aí começa a verdadeira encrenca: tesouras de vento que fazem o Airbus dançar como se fosse um monomotor. Os computadores de bordo me ajudam como podem. Mas, quando chego a uns 3 km da pista, eles mudam de atitude e começam a protestar, soando aqueles alarmes ameaçadores que você já deve ter ouvido em filmes de desastre aéreo. Estou alto e rápido demais para pousar – inclusive porque, para piorar, chove forte. O avião toca o solo meio torto e só apruma depois de correr um terço da pista. Um décimo de segundo depois, no limite, freio e aciono o reverso: e as duas turbinas LEAP-1A, com 35 mil libras de empuxo cada uma (mesma potência dos motores Olympus, usados no supersônico Concorde), realizam o milagre de segurar as 67 toneladas do Airbus antes que ele caia no oceano. Foi por pouco.
Um piloto profissional certamente seria repreendido. O novo Flight Simulator, no qual estou voando, faz isso – informa que minhas manobras atrapalhadas merecem ridículos 226 pontos, contra 1,5 milhão se eu tivesse feito tudo direito –, mas logo me convida para outros voos: Madeira é apenas um dos 24 “pousos desafiadores” do game (a lista inclui coisas ainda piores, como a pista de Courchevel, em meio à neblina dos alpes franceses, e o “aeroporto” de Bugalaga, no meio de uma floresta na Indonésia). O simulador emprega fotos de satélite, inteligência artificial e servidores espalhados por dezenas de países para tentar fazer algo inédito: reproduzir, com imagens reais, 100% da superfície do planeta Terra. Todos os 23 desertos, 4 bilhões de hectares de florestas, 1 milhão de montanhas, 30 milhões de km de ruas e estradas. Todas as cidades, com todos os prédios, casas e monumentos, como realmente são. “Nós calculamos que, se você voasse com um Cessna (monomotor), 24 horas por dia e sete dias por semana, levaria 40 anos para ver tudo”, diz o engenheiro Sebastian Wloch, diretor da empresa francesa Asobo Studio, que desenvolveu o simulador com a Microsoft.
Se já é impossível visitar o mundo inteiro, seria ainda mais inviável tentar desenhá-lo manualmente usando ferramentas 3D, como é feito nos games tradicionais. Por isso, o simulador adotou uma estratégia nova: ele construiu, em grande parte, a si mesmo. O software copiou as imagens de satélite do serviço Bing Maps, que cobrem toda a superfície do planeta e totalizam 2 petabytes (2 milhões de gigabytes), e aplicou um algoritmo de inteligência artificial que identifica e reconstrói objetos 3D a partir dessas fotos. Os cenários já estão prontos, nos servidores da Microsoft, e vão sendo enviados para o seu computador por streaming conforme você voa. O resultado impressiona. Em alguns momentos, o Flight Simulator alcança o santo graal dos games: o fotorrealismo. Parece que você está vendo um filme, não gráficos gerados em computador.
É um salto gigantesco, que provavelmente pareceria inimaginável para o aviador e inventor americano Edwin Link, que em 1929 construiu o primeiro simulador de voo da história. Era um cockpit com meia dúzia de relógios e um manche, suspenso por macacos hidráulicos. Foi criado para a Força Aérea dos EUA, e não exibia imagens. Na década seguinte, o engenheiro Richard Dehmel, da AT&T, deu um jeito: desenvolveu um simulador que usava um pedaço de filme (com um cenário) que se mexia em frente a uma tela de acordo com o movimento da aeronave. Na década de 1960, a Nasa criou o primeiro simulador digital, usado para treinar os astronautas do Projeto Gemini. Usava três computadores DDP-224, que pesavam 910 kg cada um e juntos tinham apenas 300 kilobytes, ou 0,3 megabyte, de memória. O primeiro simulador doméstico, para computador pessoal, foi o FS1, lançado em 1979 pelo programador americano Bruce Artwick e seu amigo Stu Moment, piloto amador. Rodava no computador Apple II, e usava linhas retas para desenhar tudo o que aparecia na tela. Em 1982, ele foi comprado pela Microsoft, que o desenvolve até hoje.